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Italiano de Nápoles radicado no Brasil, o professor Fabio Gentile é rigoroso ao analisar a terminologia fascista quando associada ao governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Estudioso do populismo e de outras formas de regimes autoritários no seu país natal e em terra brasileira, Gentile classifica o atual ocupante do Planalto como um "populista com traços fascistas e autoritários". Mas fascista clássico, não.
Gentile tem formação em Letras Modernas pela Universidade L'Orientale, de Nápoles, e PhD em Filosofia e Política pela mesma instituição. Cursou pós-doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP).
Ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), o pesquisador analisa ainda as nuances presentes nos termos em voga no debate público - entre eles, o próprio fascismo, sua especialidade. Também estabelece relações entre a ascensão de políticos autoritários no mundo atual, como Donald Trump nos Estados Unidos e seu colega menos famoso, Bolsonaro.
É essa imagem que talvez tenha começado a mudar, segundo Gentile. Hoje, o conservadorismo passou a se tornar referência para movimentos de extrema-direita na Europa, invertendo o fluxo de ideias consagrado na relação centro-periferia.
Na conversa, feita por videoconferência na quinta-feira da semana passada, Gentile traçou paralelos entre as operações Mãos Limpas e a Lava Jato. Em ambas, afirma, o Judiciário invadiu o espaço da esfera política e desestruturou o sistema vigente, abrindo um vazio depois preenchido por populistas: Berlusconi na Itália e Bolsonaro no Brasil.
O POVO - O senhor é italiano e mora no Brasil, é um estudioso do fascismo e dos regimes de força nesses dois países. Vê pontos de contato e conexões históricas entre esses movimentos de direita no mundo, como Trump nos EUA e Bolsonaro aqui, e aquele movimento fascista que marcou a metade do século passado. Há características similares?
Fábio Gentile - Sem dúvida há aproximações entre o fascismo clássico e esses movimentos de direita hoje, que estão crescendo muito no mundo ocidental, na Europa, nos próprios Estados Unidos. E o Brasil, infelizmente, se tornou um laboratório desses movimentos. A primeira reflexão que faço é que nós precisamos pensar os modelos e o fenômeno da direita na Europa e o crescimento da direita no Brasil de uma forma um pouco diferente de como se pensava alguns tempos atrás. Geralmente, décadas atrás, se a gente pensa nas ditaduras militares, em 1960 e 1970, a ideia era que esses modelos autoritários de uma certa forma copiavam um pouco os modelos clássicos do fascismo europeu. As coisas mudaram muito nos últimos anos.
Hoje estamos acompanhando o Brasil como laboratório de ideias e modelos que depois voltam para o centro produtor, que é a Europa, e são utilizados pelos movimentos de direita. Um exemplo: Bolsonaro e o bolsonarismo são referência para as extremas direitas europeias. Alguns anos atrás, isso era impossível. Era impossível pensar que um movimento brasileiro pudesse ser referência para modelos de direita ou de esquerda. Apenas o Lula havia sido antes, mas para a esquerda europeia, já que sua vitória foi realmente uma referência, eu estava na Itália naquela época. Então, a lógica centro-periferia não funciona mais para dar conta dessa situação. A meu ver, já não funcionava muito para pensar o vínculo entre América Latina e Europa na década de 1930.
O POVO - Como esse paradigma histórico dialoga com o atual governo?
Fábio Gentile - Tentando entender um pouco hoje, há o surgimento de novos modelos, alguns que podemos dizer que são de autoritarismo, outros que são neofascismos, outros são populismos, outros extrema-direita. Cada um desses conceitos apresenta aproximações, mas também diferenças. Eu diria que existem sem dúvida elementos de associação entre a ascensão da extrema-direita no Brasil e o fascismo clássico da Europa e da Itália, de forma específica. Por exemplo, não há dúvida de que o fascismo é um modelo para todos esses regimes e todos esses partidos porque o fascismo criou um modo de organização do estado e da violência, de racismo, de discriminação. Realmente é um modelo para todos, não tem jeito, e há essa aproximação com as novas direitas.
Tem outro elemento fundamental: o fascismo e movimentos de direita pretendem organizar a sociedade de massa. Fascismo, democracia liberal representativa e populismo são três modelos de organização da sociedade de massa. Estou querendo dizer que a sociedade em que vivemos tem suas raízes na sociedade de massa que o próprio fascismo quis organizar diante da crise do liberalismo. O populismo e a direita extrema querem fazer a mesma coisa. Tem outra coisa importante que aproxima fascismo e extrema-direita hoje: o uso da manipulação da mídia, coisa que a esquerda não sabe fazer bem. Não sabe ocupar as redes, não sabe manipular bem as notícias, acho que sobre isso a direita realmente conseguiu ganhar muito espaço. Tem um uso muito esperto das redes de comunicação e também da criação de fake news, de uma grande mentira que tem expansão ilimitada nas redes.
"Tem outra coisa importante que aproxima fascismo e extrema-direita hoje: o uso da manipulação da mídia, coisa que a esquerda não sabe fazer bem"
O POVO - Essa manipulação da informação já era uma marca do fascismo clássico?
Fábio Gentile - Sim, era uma marca fundamental. O fascismo foi o primeiro regime de massa que conseguiu fazer essa manipulação da mídia e um uso da tecnologia bem mais sofisticado e voltado para a criação de uma "fake", de uma ideologia, de uma verdade falsa compartilhada pela sociedade. Acho que aqui temos pontos realmente pontos de aproximação entre fascismo e governos hoje. Uso da mídia, manipulação da informação, projeto de organização da sociedade de massa, uso da violência em alguns casos, da discriminação, racismo. São todos elementos que aproximam elementos contemporâneos desse fascismo clássico. Agora, temos também diferenças que precisamos levar em consideração.
A primeira é o contexto. O fascismo surgiu dentro da crise do estado liberal da I Guerra Mundial. Esse fascismo clássico, o regime de massa, militarista, acho que não vai voltar da mesma forma. Em segundo lugar, acho interessante que, enquanto o fascismo criou um estado social autoritário ou totalitário para tentar, de uma certa forma, limitar o conflito de classe, de pôr um freio na crise do capitalismo na década de 1920 com um estado autoritário, o populismo atual da extrema-direita atual se coloca dentro de uma onda neoliberal de desmonte do estado. Isso me parece uma diferença muito importante. Se nós vamos pensar Bolsonaro, é um governo que vai dentro da onda do neoliberalismo, de desmonte do estado social.
O fascismo não faria isso, e aqui temos uma diferença. Outra coisa, essas direitas e movimentos populistas de uma certa forma aceitam a competição eleitoral, mesmo recusando a política e falando que a política é corrupta e precisa acabar. De certo modo, aceitam essa via eleitoral. Quer dizer, eles querem esvaziar a democracia, mas pelo caminho eleitoral. O exemplo clássico é quando Bolsonaro, naquela reunião do conselho dos ministros que foi liberada, fala que o povo está ao nosso lado, o povo está conosco. Isso é populismo, esse vínculo com o povo. Vamos acabar com as instituições e o Supremo Tribunal Federal, os partidos da oposição porque o povo está com a gente e fomos eleitos pelo povo.
No fascismo clássico não tem isso porque ele ataca a democracia e quer destruir totalmente as instituições, mas de fora, não se apresenta para as eleições, porque se se apresentasse, não ganharia. Quer atacar a democracia de fora, é só pensar no fascismo e no nazismo alemão. Já os autoritarismos e populismos contemporâneos participam das eleições e o objetivo é depois destruir os princípios fundamentais do estado da Constituição, o ataque ao estado social. Aqui temos essas diferenças entre esses projetos.
O POVO - Como o senhor classifica o governo Bolsonaro: fascista ou populista?
Fabio Gentile - Esse governo mistura muitos elementos e sem dúvida incorpora características do fascismo clássico, mas não acho que vai criar esse regime fascista clássico porque não temos mais as condições históricas e acho que a democracia brasileira tem ferramentas para poder dar um freio nesse projeto. Não tem também a conjuntura internacional para fazer isso porque o Brasil ficaria isolado por se tornar um país fascista, enquanto os outros países têm uma democracia. Alguns estudiosos classificam hoje o Brasil como um "autoritarismo competitivo", ou seja, que apresenta elementos da competição eleitoral e pessoas competindo por essa via.
Outros cientistas apresentam o Brasil como uma democracia marcada por autoritarismo, tem toda uma herança atrás. Outros preferem falar de populismo para pensar Bolsonaro: um governante populista que ataca a democracia, mas que se apresenta nas eleições. Tem uma linguagem e uma narrativa populistas, mas tem um problema fundamental. O populismo, quando está no poder, precisa governar, não funciona mais ter apenas uma narrativa antipolítica ou contra a política tradicional. Pode até atacar sem parar seus inimigos políticos, por exemplo o PT e o Lula. Pode continuar atacando, mas depois tem que governar o país. Quando não pode governar, não tem mais nenhuma narrativa que funcione porque a sociedade fica insatisfeita, manifesta essa insatisfação. Me parece que, nesses primeiros quase dois anos de governo, o país não teve nenhum benefício.
O crescimento está totalmente parado, o Real, a moeda, está desvalorizada, estamos assistindo a um desmonte do estado, ataque à educação, destruição das universidades federais. Enfim, não enxergo nenhuma coisa boa feita por esse governo. É difícil, mesmo sendo um governo neoliberal e autoritário. Sempre houve na história governos assim que conseguiram fazer alguma coisa. Esse me parece que não está fazendo nada.
O POVO - É um governo populista, então?
Fabio Gentile - É um governo populista com traços fascistas e autoritários.
O POVO - Existe um fascismo à brasileira?
Fábio Gentile - Como trabalho com o conceito de transnacionalidade, tento entender como o fascismo foi apropriado no Brasil, ainda na era Vargas. Costumo falar de uma apropriação criativa do fascismo, e não apenas de uma cópia. Existe um fascismo à brasileira, sim, e ele se chama Integralismo, que teve papel importante na década de 1930. Foi o primeiro partido de massa da América Latina. Suas lideranças, entre elas Plínio Salgado e Gustavo Barroso, que era inclusive cearense, eram todos fascistas e queriam fazer alguma muito parecida com o fascismo aqui no Brasil. Esse movimento, que depois foi destruído pelo Estado Novo de Vargas, continuou sobrevivendo, teve uma permanência, ainda na década de 1950, na ditadura militar e até hoje, na forma de um neointegralismo.
O desempenho desse movimento apresentou lideranças, eram pessoas até com boa formação intelectual, hoje menos. Hoje tem até um desempenho nas redes sociais. Eu diria, portanto, que existe um fascismo à brasileira e esse projeto Integralista continua e teve desempenho interessante no apoio ao Bolsonaro, porque tem uma matriz religiosa que vem do integralismo português. Esse grupo teve papel na expansão da figura do Bolsonaro nas redes e naquelas manifestações de São Paulo, de cunho neofascista. Claro que não estamos falando de um fenômeno de massa, mas que tem seu papel no bolsonarismo.
O POVO - Existe outro ponto que queria colocar: o militarismo. Militares ocupando espaço quase que prioritariamente e lugares onde antes havia civis. Avalia que há risco de retrocessos? Há paralelos entre essa situação e outras vividas no Brasil ou na Itália?
Fábio Gentile - Com a Itália não há muito paralelo porque o regime fascista foi uma ditadura civil, também com papel dos militares do Exército, mas não foi elemento determinante para o fascismo no poder. Já na América Latina há uma tradição de militares e de militarismo em todas as conjunturas. Na criação da República, na revolução de 1930 e, depois, na ditadura civil-militar de 1964. Essa ditadura, no entanto, é uma ruptura na história do país porque os militares criaram uma ditadura sem devolver o poder aos civis. Mas acho que não há condição para que possa ter um golpe militar ou ditadura pelas razões que acabei de falar.
A conjuntura é diferente, é uma conjuntura marcada pelas democracias liberais representativas. É difícil que um país saia desse eixo para se apresentar como ditadura porque não funciona mais assim. Porém, preocupa realmente a presença de muitos militares nos cargos do governo Bolsonaro, inclusive em cargos que realmente não seriam de competência de militares, como na saúde e na educação. É preciso entender bem quais são as relações entre Bolsonaro e os militares. Claro que a presença de muitos deles na democracia brasileira acaba afetando a qualidade da democracia. Isso me parece uma coisa sobre a qual não há dúvida. São figuras que estão lá fazendo um papel mas que não têm competência para gerir, lidar com uma pandemia ou o problema da educação pública. Não têm competência para isso.
"Preocupa a presença de muitos militares nos cargos do governo Bolsonaro, inclusive cargos que não seriam de competência de militares, como na saúde e na educação"
O POVO - Como estudioso do tema, o senhor vê relação entre aquele "mar de lama" descrito por Vargas nos anos de 1950 e esse Brasil de hoje, com discurso marcado pela corrupção, um elemento que tem preponderância na nossa vida pública?
Fábio Gentile - Eu diria que a corrupção marca quase todas as conjunturas, inclusive porque no caso brasileiro ela está associada com a própria forma do estado, que se apresenta, de acordo com algumas leituras clássicas, como um estado patrimonialista. Quando se pensa o estado como patrimônio, e há apropriação desse patrimônio, claro que há uma tendência à corrupção e a um nível de corrupção elevado dentro do estado e nas relações entre estado e capital, a classe empresarial. Se vamos comparar as duas épocas, eu diria que um dos pontos importantes está associado a um discurso populista anticorrupção ligado a uma ideia de persecução dos comunistas.
Óbvio que a qualidade do anticomunismo na década de 1950, no meio da Guerra Fria, é diferente, mas, de uma certa forma, a corrupção é um elemento da narrativa contra a classe política no poder (nos dois períodos). Isso foi feito pelo próprio Vargas e também está sendo feito pelo Bolsonaro, com diferenças porque mudaram as condições. Por exemplo, no caso do Vargas existe a ideia de combater o comunismo para criar um estado social fascista, corporativista e autoritário que retoma o modelo italiano. Já na gestão Bolsonaro a gente tem um ataque ao modelo de estado pensado pelo PT e pelo Lula, culpados pela corrupção e de terem tomado totalmente o controle do estado e criado uma rede de corrupção. Enquanto no Vargas esse discurso depois se torna um projeto nacional-desenvolvimentista, de cunho autoritário, tendo como prioridade a industrialização do Brasil, Bolsonaro não tem o mesmo projeto. Pelo contrário, quer abrir o Brasil à exploração neoliberal e a uma globalização sem controle. Não há um projeto de estado.
A corrupção então se torna um elemento unicamente de narrativa, inclusive porque o próprio Bolsonaro pertence a um velho sistema, por ser ele político que teve uma longa trajetória nas instituições brasileiras. Ele também está associado a um processo de corrupção. Se a gente pensar em fazer uma aproximação com a Itália, mais do que com o fascismo ele se aproximaria com o discurso do Berlusconi, que, na década de 1990, se apresenta como um político limpo, mas já era um empresário corrupto. Aproveitou-se da Operação Mãos Limpas, que no Brasil foi inspiração da Operação Lava Jato, mais ou menos com o mesmo modelo e discurso, de combater a corrupção que existe na política e abrir um vazio que geralmente é ocupado por figuras assim, tipo Bolsonaro ou Berlusconi, que levam adiante essa narrativa anticorrupção mesmo sendo eles mesmos pertencentes a esse sistema econômico corrupto.
O POVO - Quero aproveitar a referência à Lava Jato e pensar essa relação. Lá como aqui, a operação parece se encaminhar para um desfecho depois de ter sido criada em 2014. É o mesmo script que a Mãos Limpas percorreu?
Fábio Gentile - Há bastantes aproximações, mas também algumas diferenças. Em primeiro lugar, precisamos dizer que o Poder Judiciário invade o poder político, o Legislativo e o Executivo, quando tiver uma conjuntura que vai dar fôlego. Por que digo isso? Existe um nível de corrupção fisiológico, voltando àquela questão, em qualquer democracia associada ao capitalismo, qualquer democracia de mercado. Isso faz parte das relações e das mediações entre interesses empresariais e políticos. Quando a Justiça entra nesse mecanismo? Quando, por algumas razões, enxerga que este mecanismo gera um nível de corrupção muito acima do que seria tolerável. Isso acontece ou por uma pressão endógena, da população ou dos outros poderes, ou por uma pressão até externa, por uma grande conjuntura.
No caso italiano temos dois elementos: a grande mudança com o fim da Guerra Fria e do comunismo, em 1991 - a operação Mãos Limpas começa em 1992, um ano depois que a União Soviética desmorona. Termina aquela guerra que estava sustentando a aliança entre um partido conservador e Partido Socialista no poder com o Partido Comunista na oposição. O Judiciário entra com tudo, destrói esses dois partidos, o Cristão Democrata e o Socialista, e faz aquela limpeza, abre um espaço esvaziado no qual entra Berlusconi com discurso populista, antipolítica e anticorrupção. E aí o próprio jurista que conduziu a operação vai para a política, só que na centro-esquerda e não na centro-direita. Uma vez que cumpriu o papel de destruir o sistema, a operação vai se esvaziando. Me parece aqui que há uma semelhança com a Lava Jato, mas a LJ está numa conjuntura diferente. Não estamos mais no fim da Guerra Fria. Agora, existe uma pressão de setores da sociedade brasileira, setores políticos e interesses empresariais. O que estamos vendo: uma vez que Bolsonaro ganha as eleições, a Lava Jato vai se esvaziando. Não é mais o argumento central. Figuras saem da operação, esvazia-se da sua carga e do seu potencial de criar ideal de um Brasil mais justo, e nisso temos aproximação com a Itália.
E o Poder Judiciário recua mais uma vez porque não tem mais aquela força e pressão, também porque já foi preso, então a Lava Jato cumpriu sua missão ideológico-política. Por isso perdeu força, bem como a Mãos Limpas perdeu força depois de destruir o velho sistema e criar condições para um novo, que também não é novo porque já nasce velho, assim como o sistema político atual é velho no Brasil, com um monte de gente velha, de outros mandatos. A diferença é que aqui no Brasil a Lava Jato é mais politicamente marcada por um viés conservador, enquanto a Mãos Limpas não era tão marcada. Era politizada, mas não dessa forma. Tanto que o próprio Berlusconi se tornou inimigo da Mãos Limpas, enquanto Bolsonaro não é inimigo da Lava Jato.