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Com gratidão à Barra do Ceará
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Com gratidão à Barra do Ceará

| Seu Alberto | Dono de um tradicional restaurante, Alberto virou sinônimo do bairro mais antigo de Fortaleza e conta uma história de família que poderia ser a de muitos conterrâneos seus
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FORTALEZA,CE, BRASIL, 15.09.2020: Paginas azuis com Alberto de Souza , dono de restaurante tradicional na Barra do Ceará.  Fotos:(Fabio Lima/O POVO) (Foto: Fabio Lima)
Foto: Fabio Lima FORTALEZA,CE, BRASIL, 15.09.2020: Paginas azuis com Alberto de Souza , dono de restaurante tradicional na Barra do Ceará. Fotos:(Fabio Lima/O POVO)

A mãe de Francisco Alberto Lopes de Souza era doméstica, dona de casa. O pai, de quem herdou o nome, era comerciante em Pacoti e, um dia, veio tentar vida melhor na Capital. Pelo rádio da casa, o pequeno Alberto soube que seu pai havia se instalado na Barra do Ceará, estava trabalhando e esperava a chegada da família. Daí em diante, começa uma história de muito trabalho, muito esforço e nenhum glamour. Uma história, como muitas, de gente simples que luta pra viver. Alberto, o filho, ainda conserva o jeito matuto, simples de interiorano, mas se tornou um rosto, um sorriso fácil, uma força popular num bairro que vive entre a riqueza natural do rio Ceará e o flagelo das facções. Nem uma coisa nem outra passam despercebidas ao olhar do seu Alberto, que segue trabalhando, fritando seus peixes e sonhando com dias melhores para a região que adotou como sua, onde casou, criou filhos e deu continuidade à história dos pais.

O POVO - Quero começar sabendo sua história. Francisco Alberto Lopes de Souza, onde e quando você nasceu?

Alberto - Eu nasci no dia 17 de junho de 1959, em Pacoti, região serrana. Lá a gente morava na beira do rio. O pai tinha uma mercearia lá, era comerciante também. E o comércio foi se acabando, praticamente. Ficando difícil pra ele, aí surgiu a oportunidade dele vir pra Fortaleza, trabalhar aqui no Clube de Regatas. O doutor Oswaldo Isaac, que foi o primeiro presidente do Clube, tinha sítio lá. Aí, ele (o pai) veio primeiro e todo comerciante faz tudo, né? Mas ele é comerciante. Então, em pouco tempo, ele buscou um lugar aqui e encontrou na beira da praia. E já era aqui (onde hoje é o restaurante)! Aí ele foi ficando, fez ali um espaço pra que pudesse morar e chamar a família. Ficou eu e a mãe lá, meus irmãos já nasceram aqui.

O POVO - Você é o mais velho, então?

Alberto - Sou o mais velho, de quatro irmãos. Um belo dia, eu tô ouvindo o rádio, no programa uma mensagem lá pra dona Maria que o seu Alberto estava na Barra do Ceará e que ela viesse. Rapaz, eu aqui com o rádio, ó! Meu pai conservava um radiozão Philips, que se orgulhava por que pegava até a BBC de Londres, meu amigo. A mãe dizia que, lá no Pacoti, quando era 18 horas, ia todo mundo pro comércio dele pra ouvir rádio. Até hoje eu sou apaixonado pelo rádio, é por conta dele. E daí nós viemos pra Barra do Ceará. Chegamos aqui à noite e isso foi uma história.

O POVO - Por quê?

Alberto - O ônibus só vinha até ali a Francisco Sá, não tinha pra cá. Era noite, uma neblinazinha. Eu tinha 5 anos. Nós paramos na casa da dona Maria, a mãe é Maria também, pra perguntar se ela conhecia o seu Alberto. "Conheço, inclusive meu marido trabalha com ele no Clube de Regatas. Mas dona Maria, é muito longe pra senhora ir pra lá". Olha, da Francisco Sá pra cá, naquele tempo, era muito distante! "Durma aqui". Aí, perfeitamente, ela armou lá uma redinha e aconteceu um fato inusitado. Ela tinha um filho também, o Tulinho, que estava dormindo nessa hora. Ele era, mais ou menos, da minha idade. Ela criava umas galinhazinhas no quintal e um pau de chuva cantou e aí, meu irmão, ela teve que botar as galinhas pra dentro e o Tulinho sofria de asma. Aí ninguém dormia mais, por que ele era alérgico.

O POVO - E seu pai já estava aqui, né?

Alberto - Ele veio um pouquinho antes, acho que em 1963. Aqui, onde hoje é o restaurante, era uma vila de pescadores, aproximadamente de umas 30 famílias. Essas famílias saíram por conta dessa avenida José Lima Verde. Quando o Evandro Aires de Moura construiu essa avenida, indenizou parte desse pessoal e nos deixou aqui. Ficou meio distante, não atrapalhava, nós fomos ficando e crescendo. Quando nós viemos, meu pai já estava instalado, com uma merceariazinha, um barzinho, vendendo aos domingos. Era um bar-mercearia, ele servia a essa comunidade. Ele já tinha saído do clube. É aquela coisa do comerciante. Ele era caixeiro-viajante, depois montou o comércio lá no Pacoti e casou com minha mãe.

O POVO - Algum dos seus irmãos trabalha em comércio?

Alberto - São três irmãos: Alberto de Souza Filho, Maria Teresa Lopes de Souza e Angela Maria Lopes de Souza. Não, nenhum é do comércio. Apesar do meu irmão trabalhar hoje num mercantil, ele é empregado, não é o dono.

O POVO - Qual foi impacto que você teve quando chegou aqui na Barra e viu esse cenário? Como era essa área aqui?

Alberto - Meu amigo, era uma coisa linda! Não tinha ponte, aqui era só uma areinha. O rio Ceará divide Fortaleza de Caucaia, né? Do lado de Fortaleza, tinha uma praia belíssima que a diversão da gente era jogar bola aqui. O stress da gente era tirado jogando bola. Era uma coisa fantástica. O rio com muita água, diferente do rio Pacoti, que quando nós viemos estava praticamente seco,  a maré batendo aqui. Até hoje a gente guarda na memória. A Barra do Ceará tem um encanto, uma magia muito grande sobre a minha pessoa, sobre o pai. O pai foi muito feliz de encontrar um lugar e vir pra uma beleza dessas. Aqui foi uma convivência maravilhosa.

O POVO - Você chegou aqui em 1964, quando o Brasil entrava no governo militar, na ditadura. Você era uma criança, mas lembra se isso interferiu de alguma forma na vida de vocês?

Alberto - Aqui na orla marítima, quem tinha o domínio era a Marinha do Brasil. Ela que fiscalizava, fazia todo esse controle da orla. Então, pra se construir - uma técnica daquele tempo e acredito que até hoje nos locais praianos ainda exista - o pai fez a casa de taipa, a marinha vinha e derrubava. Quando era de noite, o pai fazia de novo. De manhãzinha a marinha vinha e derrubava. O pai não entendia muito porque já tinha aquela colônia de pescadores. Um belo dia, o oficial veio aqui e disse: "seu Alberto, nós vamos ser transferidos e vamos deixar de lhe aperrear. Nós estamos vendo que é a moradia do senhor". O cara teve uma luz, né? Antes disso, quando eles vinham e derrubavam, geralmente levavam o pai meio que preso. Não era bem preso, mas era uma forma de amedrontar e dizer "não faça". Acho que ele queria ver se o pai precisava mesmo, se não é um especulador. Quando viram que era uma necessidade, nós fomos ficando. E foi melhorando, daquela paliçada, passou a ser de taipa e depois ele foi construindo de alvenaria. Na década de 1970, já estava bem arrumadinho o Alberto (restaurante), bem bonitinho. Mas a maré derrubou.

O POVO - Aí foram fazer tudo de novo...

Alberto - O Jornal O POVO do dia 10 de março de 1970 registrou. Passa um filme disso até hoje na memória. Eu já tinha 11 anos, foi um dia de domingo. Dia de casa cheia. De repente nós ficamos... Eu já tinha dois irmãos, tivemos que ir dormir na casa de um parente. Mas seu Alberto ficou aqui por que tinha que levantar quando a maré baixasse (fala emocionado). Aí veio o seu João Barbeiro, que nas horas vagas era pedreiro, veio ajuda-lo. Um amigo, inesquecível. Eles faziam de noite, de manhãzinha a maré derrubava. Passaram uns cinco dias nisso. Quando a maré baixou, ele levantou novamente, mas nunca mais foi o mesmo. Por que ele perdeu tudo, foi embora toda a mercadoria, todo o estoque a água levou. Eu cresci assim, vendo o pai nessa luta, nunca reclamar, nunca se lamentou, sempre agradeceu. Nisso eu copio muito ele, detesto negócio de lamentação. Meti aqui na cabeça: no dia que eu tiver condição, eu vou fazer um bar novamente. Vou fazer uma estrutura legal.

O POVO - E como esse plano começou?

Alberto - Menino, eu pastorava carro aqui no Clube de Regatas. Dia de domingo, eu ajudava. Eu ficava entrançando no meio do comércio. Em 1974, passa a avenida aqui e a gente ficou distante e sem energia. Então ficou aquela dificuldade. Tudo era querosene. Iluminação, geladeira, tudo era querosene. Até meus 20 e poucos anos, nós não tínhamos energia aqui. Até 1980 e pouco, não sabia o que era energia. Mas tinha um cliente aqui, que era amigo, e disse: "rapaz, vamos botar energia aqui". Mas tinha que comprar um poste e era caríssimo, né? Um belo dia, ele me disse onde trabalhava, e eu me mandei pra lá. (Alberto pergunta) "Como é isso aí, rapaz? O que você pode fazer pela gente pra colocar essa energia?". (O amigo responde) "Vou encontrar uma forma de parcelar isso aqui, fazer bem suave aqui pra você. E eu vou lhe ajudar. Vou lá beber e tal". Deu a maior força, né? Quando eu voltei, que cheguei, disse: "pai, vai chegar energia aqui" (batendo forte com o dedo na mesa). Comecei a criar marra, né? "Meu filho, e como é que nós vamos pagar isso?". (Alberto responde) "Pai, nós vamos vender mais cerveja". Mas eu tinha esquecido que a gente não tinha nem um freezer, e quem é que vai comprar os freezer? Aí o seu Botelho, outro cliente, disse "rapaz, eu estou vendendo uma geladeira doméstica. Mas na seguinte condição: a cerveja do congelador é minha" (gargalha). E eu disse: "seu Botelho, vamos fazer um negócio. O senhor vai vender, me facilitar, mas eu tenho um compromisso com o cara da Coelce, da Light. Por que foi ele que me ajudou a colocar essa energia aqui. Então vamos fazer o seguinte, são duas cervejas do senhor e duas dele. As do congelador".

O POVO - E daí, quais foram os planos?

Alberto - Eu sempre com um sonho de fazer uma ampliação no restaurante. Mas nesse meio, eu crio outras atividades. Ali (aponta pro outro lado do rio), antes da ponte, tinha um movimento muito grande. E aqui tinha um outro cliente, o seu Evandro, e eu ouvi ele dizer que trabalhava na Ypióca. Aí me surgiu uma ideia. "Pai, vê se o homem aí financia cinco caixas de cachaça pra mim". (O pai responde) "Meu filho, pra que você quer isso?". "Pai, eu quero que ele me arranje cinco caixas de cachaça e um guarda-sol. Eu vou me sentar ali, que é a passagem tanto pro outro lado quanto pro polo de lazer. E é 1 real o litro de Ypióca". Rapaz, num é que deu certo. Deu certo e o pai me apresentou pra ele. (Evandro) "Perfeitamente, meu filho. Eu vou abrir esse crédito pra você". A Ypióca ainda era pequena e ele era tudo na empresa. Ligeiro eu vendi essas cinco caixa de cachaça. Liguei pra ele muito satisfeito com o dinheirinho dele no bolso. Naquele tempo, a Ypióca dava 30 dias pra pagar. Eu já tinha o dinheiro, quis pagar logo pra pegar mais. "Queria que o senhor mandasse mais cinco (caixas)". Vendi ligeiro, rapidamente de novo. Aí passou o Zé de Paiva que tinha uma barraca no outro lado. "Meu filho devia me vender uma caixinha de cachaça pra eu fazer caipirinha lá do outro lado, que sai muito lá". Eu vislumbrei outra ideia. Aí eu já vendi cachaça pra todos os barraqueiro do lado de lá. De cinco (caixas) eu passei pra 50.

O POVO - Você virou revendedor da Ypióca...

Alberto - Virei revendedor. E naquele tempo, não tinha Coca-Cola aqui em Fortaleza, passou dois anos só com a Pepsi Cola. Devido a uns problemas técnicos, a Coca tomou a concessão da pessoa da época. Aí o Tasso Jereissati bota a fábrica da Coca-Cola lá em Maracanaú. O Zé de Paiva já disse: "Rapaz, você devia vender outras coisas". E eu me lembrei da Coca-Cola, né? Me mandei pra lá, mas com dinheirinho curto. Fui ver se ele me vendia umas 10 caixinha e tinha a questão do vasilhame, né? Pego a fila lá do emprego. Quando chegou minha vez, o rapaz disse: "meu filho, aqui é só pra emprego. Mas eu vou te indicar a pessoa que você vai procurar". Rapaz, ele me mandou direto pro gerente lá, eu não sei o nome dele. Cheguei lá, contei essa história pra ele, que eu precisava transportar de canoa, que lá só tinha Pepsi-Cola. (O gerente) "E o meu filho pretende o que?". "Umas dez caixinha, mas eu tô com dinheiro pra pagar as 10 caixas. Mas eu não tenho condição de comprar o vasilhame". Era caríssimo. Ele fez aqui um bilhete. (O gerente) "Vou mandar 50 caixas pra você de graça, viu? Com tudo". Cheguei em casa, contei pro pai que ficou todo animado.

O POVO - Aí você já tinha a Coca-Cola e a cachaça...

Alberto - E naquele tempo cerveja era muito difícil. Quando comprava cerveja, tinha que comprar refrigerante também. Aí eu falo aqui com meu vendedor pra ver se ele me fornece pra lá (do outro lado do rio).

O POVO - Você ficou trabalhando dos dois lados do rio nessa época.

Alberto - Lá, era só despachar. Eu vinha atender aqui, ajudar o pai, né? De tarde é que eu ia cobrar. Era um serviço que dava bem certinho. Aí eu falo com o rapaz da Brahma e ele diz que lá já tem vendedor. Tá certo. Um dia, eu tô aqui numa segunda-feira, aí passa um carro com cerveja que não era da fábrica. Eu estava sentado lá embaixo e o cara para o carro. Deram umas rotas pra ele vender cerveja em todo canto. E eu disse: "rapaz, eu não tenho condição. É muito caro. Agora, eu tenho umas vendas lá. Se você me vender pra pagar no apurado". (O vendedor responde) "perfeitamente". Então bota 50 caixa aqui e vamos pra frente. Com isso eu fui juntando uma merrecazinha e sempre com aquele desejo de ampliar isso aqui, né? Começou a querer dar umas ocupações por aqui, por que ficou todo esse terreno. Então, começaram a querer invadir e tal. Aí eu disse que tava na hora de demarcar terreno. "E vamos melhorar o negócio aqui, pai". Eu disse isso, mas ele não deu muito cartaz não por causa de dinheiro, né? Eu insisti e disse a ele que estava com 5 mil. "Dá pra nós começar?". "Perfeitamente" (o pai respondeu). Aí ele faz esse desenho aqui, aproveitando que o terreno era desnivelado. Não fizemos nenhum aterro. Foi uma engenharia legal.

O POVO - O senhor estudou?

Alberto - Eu fiz até o segundo grau. Comecei aqui na Escola Estado de Alagoas, que é aqui na Barra do Ceará, e depois fui pro Wilza Diogo de Oliveira, e depois fui pro Esquema.

O POVO - Nunca se interessou de prestar vestibular?

Alberto - Rapaz, eu ainda tentei. Tentei Psicologia, que diziam que era o mais fácil (gargalha). No dia da prova, me juntei com outro cabra safado e nem fomos pra fazer a prova. Desisti (risos).

O POVO - Quem são as pessoas que frequentam teu restaurante, Alberto?

Alberto - Rapaz, eu tenho cliente aqui de quando eu era menino. Clientes que eu pastorava o carro. Agora, com a pandemia, eu andei perdendo uns clientes, né? Mas eu me orgulho de vir os filhos deles. Sempre chega um e diz: "rapaz, o papai gostava de vir aqui". Agora mesmo morreu uma senhora que vinha sempre com o esposo dela. Todo domingo, eles tinham que vir aqui comer uma postinha de cavala, um peixezinho frito. Depois que ele morreu, ela já não vinha mais. Eu fui visita-la e ela disse que encontrava uma dificuldade por que era uma lembrança dele. São pessoas com quem eu conversava, da minha convivência, entendeu? Eu sempre gostei de conversar e de aprender também. Como seu José Botelho Barbosa, que era funcionário do Banco do Brasil e trabalhava no Rio de Janeiro. Quando tirava férias, ele vinha de fusquinha. Depois ele veio pra cá, trouxe a família, se separou, mas sempre dia de sábado, domingo e feriado era quatro dosesinha de whisky ou quatro cerveja, a posta de peixe, que só a mãe fazia. E o José Botelho era muito culto, costumava chegar aqui com uns três ou quatro jornais debaixo do braço. Então, como eu ficava por ali, ele me cobrava por que ele queria falar do Brasil em geral, mas queria alguém pra conversar. É o jeito eu ter que comprar o jornal. Então, eu gosto de jornal por que ele me influenciou.

O POVO - Esse seu espaço foi tombado provisoriamente há dois anos pela Secultfor. O que que isso significou pra ti?

Alberto - Estava praticamente perdido o espaço. Com um processo de quase 20 anos com o Ministério Público querendo nos tirar, quando já não se tinha mais nem uma luz, eis que o prefeito Roberto Cláudio chega aqui - isso já com tudo noticiado, que eu só tinha mais 15 dias pra sair - e diz: "Alberto, o que é que tá havendo?". "Infelizmente, querem me tirar daqui. Será se dá pro senhor me ajudar?". Ele chamou os assessores e disse que estava difícil, "mas vamos ver o que a gente faz". Aí ele encaminhou esse procedimento para que a gente tentasse fazer o tombamento. Aí eu chamei o cantor e compositor Bernardo Neto, um amigo aqui da Barra do Ceará que conhecia a nossa história e ele deu entrada nesse procedimento. Foi aprovado lá, provisoriamente, e o significado disso é que praticamente eu nasci aqui. Eu não digo que nasci aqui por que eu não nego meu Pacoti. O interior nunca saiu de mim. Eu me orgulho, eu tenho saudade de brincar na capoeira lá com os meus primos. Mas essa oportunidade de ficar aqui foi tudo na minha vida. A Barra é um recanto belíssimo, aqui eu fiz a minha família. Não viveria mais distante disso aqui. Seria uma coisa muito triste eu ter que sair daqui

O POVO - O que o senhor mais gosta aqui na Barra do Ceará?

Alberto - De tudo (risos). Até a cachaça é boa. Aqui tudo é bom, rapaz. De fazer esse passeiozinho no rio Ceará? Uma coisa fantástica! Há mais de 20 anos, nós descobrimos essa atividade de passeios ecológicos, a importância de preservar esse rio, de preservar os manguezais... Tudo isso contribuiu ainda mais pro bem querer pela Barra do Ceará. Eu sou um privilegiado. Eu não admito reclamar de nada.

O POVO - E como esse período de pandemia pro senhor?

Alberto - Eu nunca fechei isso aqui. Nunca passei um dia de folga na minha vida. De repente, eu me vejo quatro meses fechado? Eu precisava viver pra ver isso. Isso a gente não esperava, né? Mas acho que aprendi uma coisinha, umas lições.

O POVO - O que o senhor aprendeu, seu Alberto?

Alberto - A dar valor à vida, né? A importância de outras pessoas... A gente viu muita solidariedade. Aqui, por exemplo, vieram pessoas, instituições que me trouxeram (coisas) e eu já pude dar pra outras pessoas. Eu gosto muito de solidariedade. Eu gosto de gente, eu gosto das pessoas, eu gosto de viver. Então foi maravilhoso esse tempo que a gente passou a refletir. Pessoas que nem falavam com você. "Rapaz, seu Alberto, eu não tenho o que comer não". E eu com isso aqui fechado. Fechado! "Venha aqui que eu ganhei isso aqui de fulano". Essa rede de solidariedade foi uma coisa fantástica. Coisa que eu, modéstia a parte, já fazia porque eu sempre gostei desse envolvimento comunitário. Aqui surgiram vários projetos sociais. Meu espaço sempre esteve disponível, não é porque hoje é tombado, mas sempre esteve disponível para a comunidade. O serviço de salvamento do Corpo de Bombeiros eu me orgulho de ter surgido aqui dentro. Movimentos pra discutir o bairro, aniversário do bairro, é no Alberto. Esse trabalho cresceu tanto que hoje a gente é mais do que comerciante.

O POVO - Duas coisas marcam quando se fala hoje na Barra. Um é o aspecto histórico que essa região tem pra Cidade como um todo. Outro é a violência. Como você se relaciona estando no meio desses dois pontos?

Alberto - É, a Barra carrega esse estigma. Quando nós chegamos aqui, na década de 1960, que lá no interior do Pacoti correu o boato que o seu Alberto tinha vindo pra Barra do Ceará, se apavoraram. Porque, há uns anos atrás, tinha havido um crime. Mas o crime não tinha sido na Barra do Ceará, mas vieram enterrar aqui. Então a gente sempre carrega esse estigma. E vizinho tem Pirambu, Vila Velha e ligou também a Caucaia. 300 mil pessoas a gente tem por aqui. É inegável que o bairro tem sua violência e nem poderia ser diferente. Com o IDH lá embaixo! Ainda estamos em processo de desenvolvimento. Agora, se você me perguntar se eu tenho medo, não, graças a Deus. Nunca ninguém disse nem que eu era feio aqui. O que era até normal de dizer (risos).

O POVO - E como fica em relação aos seus clientes?

Alberto - Sei que os clientes têm medo. Todo mundo pergunta. "Rapaz, e não é perigoso não?". E eu digo: vamos lá ver. Hoje eu luto pra transformar isso aí. Eu saio com grupos, nos passeios ecológicos, saio com fotógrafos. São equipamentos caríssimos. Agora, vamos programar pra ir pra cima do morro. Então, a gente vai dizendo que violência tem, mas eu acho muito tranquilo. Hoje, aqui a Barra do Ceará passou a receber um batalhão de polícia. Antes era uma companhia, era mais escasso os policiais. Hoje você vê que cresceu muito, tem policial pra todo canto. Mas na Beira Mar tem violência e é policial se batendo um com outro. Então, independe de policiamento.

O POVO - A abertura do Cuca mudou alguma coisa da tua rotina?

Alberto - (pensa bastante) Rapaz... Tem que falar, né? Claro que mudou, né? Poderia, pode ser mais. Claro que é importante, mas o sistema agora é outro. Diferente do meu tempo que surgiu o Sesi (Serviço Social da Indústria). No meu tempo nessa idade que o Cuca recebe, tinha o Sesi. Naquele tempo, você podia andar pra qualquer canto. O garoto daqui podia ir lá. Hoje, o garoto que mora ali no Polo de Lazer não pode vir no Cuca. Então, nós precisamos descobrir de que forma nós vamos mudar esse jovem. Devido a essa guerra besta de facções, o menino perde uma oportunidade de estar aí dentro. Um equipamento que eu... Quando é que eu imaginava de ter um cinema perto da minha casa, a 100 metros? Eu tenho o privilégio de ter um cinema! Um teatro! Coisa que é fundamental pra formação de um jovem. Eu tive esse outro privilégio com meu pai. Meu pai me levou a um circo, a um teatro pra assistir a Paixão de Cristo, o Theatro José de Alencar, me levou pra ver Pelé no Castelão, Ginásio Paulo Sarasate pra ver os Globetrotters, um circo... O cara era um monstro, o seu Alberto. Um homem semianalfabeto? Mas ele era um cara acima do seu tempo, né? E hoje, um menino bem ali não pode vir aqui. Então é um desafio para o próximo governante ir mais lá, insistir, ter um agente de educação pra ir lá. O Cuca está aberto, mas é uma dificuldade. Se fosse no meu tempo, eu ia morar aqui dentro do Cuca, que nem eu morava no Sesi.

O POVO - O que o senhor foi fazer no Sesi?

Alberto - Eu fui naquele tempo pra fazer futebol. Eu dizia, "eu vou ser jogador do Ferroviário. Então, o Sesi vai me proporcionar isso. Eu vou aprender algumas técnicas de futebol". Chego no Sesi, com um amigo, e não tinha mais vaga. Todo mundo sonhava ser jogador do Ferroviário na década de 1970. Mas a moça disse que só tem basquete e judô. Aí, eu voltando, encontrei um amiguinho todo vestidinho, com um fanabôzinho que o Sesi dava, uma camiseta e um calçãozinho. Aí, nós conversando e ele disse que estava no futebol. (O amigo pergunta) "Vocês se inscreveram?". Não tinha mais vaga não. Aí eu perguntei como é lá. "Lá é bom demais. Agora, o bom mesmo é uma merenda que dão". Aí nós voltamos pra fazer o basquete e o judô. Eu voltei na mesma pisada (risos). Aí (no Cuca) tá faltando a merenda e ir buscar esse pessoal. A sociedade tem que buscar um meio nas periferias pra ver se vai trabalhar o social. Por que você faz um equipamento dessa envergadura, mas como é que nós vamos ocupar ele? Certo que o Cuca é na Barra, mas não é da Barra. Eu sei disso, mas eu gostaria de ver a transformação num garoto vulnerável. Queria ver o garoto lá do morro recebendo o certificado de cidadania. Uma casa que tem feito essa transformação aqui na Barra do Ceará é a Casa de Vovó Dedé. Com o negócio dessas cestinhas básicas e tal, liguei pra irmã Luciene. Ela veio e eu disse: "irmã, cadê sua menina? A Letícia?". A irmã Luciene era assim do bagaço, e você imagina o que você ia pensar dos filhos dela. Ela olhou assim pra mim, caiu umas lágrimas. "Seu Alberto, a Letícia é multi-instrumentista da Casa de Vovó Dedé". Tu tá brincando, Luciene! Aí eu falei com o cidadão da Casa de Vovó Dedé. Parabéns, porque aí é transformação, porque ali você abre uma esperança numa família. E não é só na família dela, porque a Letícia tem as coleguinhas dela. Se a Letícia pode, por que eu não posso? Aí fui ver a página da Casa de Vovó Dedé e é menino lá na Itália, coisa que o Sesi fazia. Hoje, um amigo meu, o Paulinho, é da Orquestra Sinfônica da Paraíba. Porque o Sesi trouxe os melhores professores do País pra cá. Até aquela Ana Botafogo andou por aqui! Hugo Bianchi! E com isso transformou muita gente, transformou o lugar. E eu quero ver essa transformação nas pessoas. Quero me orgulhar de dizer "é da Barra do Ceará". A Letícia é da Barra da Ceará! Num lugar desse com gente passando fome, infelizmente aqui tem muita pobreza, você passa fome.

O POVO - Qual sua expectativa pra eleição esse ano?

Alberto - A gente espera sempre mudança, né? Avançar, né? Fortaleza é uma cidade muito desigual. Pra você ver, eu tô falando de um capítulozinho. Precisa se avançar, dar mais oportunidade. Eu que sou de periferia e da zona praiana, acho que a gente poderia avançar mais com esses meninos no surf. Todo menino é um peixe do rio e o surf é um esporte olímpico, então é uma forma de incentivar e tirar esses meninos da ociosidade. Acredito que devemos avançar cada vez mais pela educação. Não dá pra transformar sem educação, sem ir buscar aquele menino que fica ali. "Rapaz, por que tu não está na escola? Bora, cara, tem uma bolsinha aqui, tem uma merenda!" O que me entristece, eu ir aqui no morro, eu ver um menino sem nenhuma perspectiva de nada. Essa Fortaleza, da Praça Portugal pra lá, não conhece isso aqui. Não vem! Não vem! Não vem! Aí você vê essas pessoas sem nenhuma perspectiva. Precisa de ir buscar essas pessoas, precisa se importar com elas. Dá pra mudar, que nem a Leticiazinha. Como é que descobriram a Letícia bem aí, morando num buraco? Como sabiam que ela tinha esse tom, esse talento de multi-instrumentista?! Quer dizer que só tem o olheiro pro futebol? A prefeitura tem que ter pessoas pra acreditar. Ainda é preciso que a gente pense numa Fortaleza humana, é preciso avançar pensando nas pessoas. O desafio do próximo prefeito é escutar cada vez mais as pessoas, as peculiaridades de cada lugar.

O POVO - Seu Alberto, o senhor vem falando do quanto seu restaurante mudou, cresceu e hoje ocupa um outro espaço aqui na Barra. Mas qual a sua especialidade? Quem vem aqui procura o que?

Alberto - Minha especialidade, desde menino, é o peixe. É o que eu gosto de vender. Já fiz três churrasqueiras e já derrubei a última. Pode até ser que amanhã eu seja dono de uma churrascaria, mas eu gosto de vender o peixe. Um pargo frito, uma peixada de arabaiana, a tradicional. Eu respeitava um cara comercialmente, do meu ramo, o Alfredo. A peixada é uma comida tradicional nossa, cearense. Então, não poderia faltar num restaurante nosso, de Fortaleza, uma peixada.

O POVO - É o senhor quem cozinha aqui?

Alberto - Não, é minha esposa.

O POVO - Mas o senhor sabe fazer?

Alberto - Sei, sei. No dia a dia, eu sei. Tem alguns clientes que às vezes vinha no meio da semana e eu fazia uma postinha da cavala, uma farofinha. A cavala eu acho um dos peixes mais saborosos. Só não gosto de peixe de água doce, eu não como cará. Eu me habituei a comer peixe de água salgada. Hoje, um peixe que se agregou ao cardápio foi a tilápia. É uma febre! Hoje, um restaurante, por mais luxuoso que seja, não sobrevive se não tiver uma tilápia. Mas, como disse um amigo meu que foi pra Israel, lá pediu um peixe, que eles chamam de "Peixe de Pedro", e veio uma tilápia. Depois, ele comendo lá: "sou mais o do Alberto. Esse aqui não tá com nada".

O POVO - Seu Alberto, ao longo dessa conversa, o senhor falou várias vezes dos seus pai e se emocionou. Hoje, com 62 anos, o senhor se preocupa em quem vai substituir o senhor aqui no restaurante?

Alberto - Pois é, rapaz... Agora você me arrepiou todinho. Meu filho mais novo, Jeferson Maia de Souza, é engenheiro eletricista, foi ser professor do IFCE. O outro, o Alberto Júnior, foi ser oficial da polícia. E o terceiro, o Eder, que é o mais velho, é consultor imobiliário. Quer dizer, é o que tem uma tendência mais comercial. Mas, por ser evangélico, talvez ele não venha pra cá. Talvez fique aí prum neto desses, eu tenho cinco (netos). Eu tô preparado até pra fazer uma parceria por que já fica pesado pra mim. Eu tenho conversado, ido a locais, pra ver como eu poderia fazer uma parceria com gente nova. Hoje já se formou muito chef de cozinha em Fortaleza. Quer dizer, você tem uma gama de jovens com outra visão de mundo. E eles vieram fazer uma pesquisa aqui comigo sobre o bairro, por que eles querem agregar alguns valores à cozinha deles, e eu sonho aí da gente fazer uma parceria. Eles estavam trabalhando com o pessoal do Colosso, fazendo aqueles jantares temáticos. Eu quero ser ousado aqui, eu sempre gostei de ser empreendedor.

O POVO - O senhor é rico, seu Alberto?

Alberto - Às vezes as pessoas não compreendem e dizem assim: "Alberto, o senhor era pra ter ganho muito dinheiro ou estar ganhando muito dinheiro aqui". Eu quero dizer que eu sou milionário. Rapaz, tu não imagina a família que eu tenho, os filhos que eu tenho. São só orgulho. Tem gente que só entende ser bem sucedido se tiver dinheiro. Você vir pra cá, relatar todas essas dificuldades que nós passamos aqui, e formar um filho! O cara ser professor de uma escola técnica federal! Isso é um privilegiado. Ser um oficial, amanhã o cara um comandante da polícia. O outro um consultor imobiliário, todos estudaram em colégio bom. Quer dizer, um pouquinho do que meu pai fez por mim, eu fiz mais um pouquinho por eles. E a responsabilidade disso aqui vai ser deles. Claro que é deles, eles vão dizer o que querem fazer. Meu pai dizia: "meu filho, vá estudar". Eu não quis estudar, quis ser comerciante. E o comércio tem altos e baixos. Então, eu vou entregar a eles e eles é que vão saber o que fazer.

O POVO - Mas isso não é uma preocupação agora?

Alberto - Não, não. Cada preocupação no seu tempo, né? Ainda vai longe...

 

Cuidados

SEU ALBERTO abriu o restaurante numa segunda-feira só para receber a equipe do O POVO. Desatentamente, o repórter esticou a mão para cumprimentar o entrevistado na chegada. Ele retribuiu com um forte aperto de mão e já foi avisando: "tem álcool gel ali, pode passar à vontade". A entrevista aconteceu com todos de máscara e guardando uma distância recomendável. A máscara só foi tirada para as fotos.

Fama

DURANTE a entrevista, mesmo com o restaurante vazio, mesas empilhadas e parte da porta fechada, chegaram clientes perguntando se estava funcionando. O aplicativo de táxi não reconheceu o endereço do restaurante, mas os dois motoristas, da ida e da volta, disseram: "basta dizer que é pro Alberto".

Pandemia

O restaurante Alberto funciona de terça a domingo, das 10h às 20 horas. Durante a pandemia, ele só abre aos domingos, das 10h às 18 horas, ou na semana mediante agendamento.

Simpatia

Seu Alberto tem a fala bem explicada, gosta de citar os nomes das pessoas que o ajudaram e sempre o nome e a profissão dos seus clientes mais fiéis. Sempre simpático, ele riu e gargalhou em várias passagens da conversa. Ao falar dos pais ele se emociona e, repetidas vezes, deixa clara a gratidão. A única apreensão foi na hora de falar na violência do bairro.

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