"O Bechara é sangue bom", dizia o refrão da música feita pela organizada do Fortaleza para o jogador no começo dos anos 2000. O adjetivo vem bem a calhar. O volante, que depois passou a atuar como meia-atacante, é mesmo boa praça e tem nome respeitado, inclusive pela torcida do Ceará, apesar da identificação maior com o Tricolor. Aliás, Bechara foi um dos poucos jogadores que soube sair de um rival para o outro sem causar revolta ou deixar ferida aberta. Foi campeão por ambos, mas também ficou marcado por jogar na Dinamarca, país fora do eixo mais relevante do futebol na Europa.
Aos 40 anos, dividindo-se entre a cidade onde nasceu, Maranguape, e Fortaleza, nos fins de semana, Bechara está afastado da bola e concentra suas forças num empreendimento particular, no município de origem. Em entrevista ao O POVO, ele revela ter "uma ponta" de saudade do futebol, mas não mais por dentro do esporte. Falou também sobre a vida que leva hoje e comentou detalhes da carreira que construiu.
O POVO - Você decidiu muito cedo viver de futebol, morou no Pici quando era da base do Fortaleza, mas acabou se profissionalizando no Ceará. Como foi isso?
Bechara - O sonho era muito grande. Eu me lembro que com 11 anos eu falava que ia ser atleta profissional, eu tinha esse sonho. Vi aquele Flamengo de 1987, campeão com Zico, Renato (Gaúcho), Bebeto, Zinho, Leonardo e eu disse que queria ser jogador de futebol, então tive que correr atrás. E essa transição foi muito rápida na minha carreira porque eu pouco tempo fui base. O primeiro clube profissional que eu fui foi o Fortaleza, na base, juvenil, morei no Pici. Depois eu fui para o São Paulo fazer teste com o Telê Santana, na época tinha 16 anos, menino, passei no teste lá e o Fortaleza não me liberou. Puxa vida, fiquei frustrado. Aí eu tive que voltar para cá e recomeçar no intermunicipal (pelo Maranguape), com 17 para 18 anos. Apareceu a chance com o Emanuel Gurgel (ex-presidente do Ceará), que foi um anjo enviado por Deus, que acreditou no garoto do Interior. Aí começou em 1996 essa história como profissional, mas bem antes eu já sonhava com isso, era o que eu queria para a vida.
OP - No Ceará você participou da conquista de três títulos, chamou atenção do Santos e lá você teve uma briga com o técnico Leão, certo?
Bechara - Eu saí do Ceará consagrado, com 20 ou 21 anos, titular do time, capitão, campeão, tinha um certo respaldo, não chamo de ídolo — um respaldo com a torcida e tal. Aí eu fui para o Santos, que é outra realidade, é mundial, é o Pelé e a cobrança é enorme lá. O Santos não era campeão fazia muito tempo e eu fui para lá querendo jogar, com objetivo de jogar, só que na minha posição era nada mais nada menos que o Marcos Assunção e Narciso, os dois volantes da seleção brasileira (na época). Eu tive um problema com Leão e perdi, é óbvio, ninguém ganha de professor, nem de pai e com essa queda de braço com o Leão eu aprendi muitas coisas. Eu era muito jovem, né? Cheio de sonhos, cheio de coisas e talvez com a cabeça que eu tenho hoje eu teria segurado a onda, mas são coisas que acontecem. Eu tive o privilégio de voltar a falar com o Leão depois de um ano, nos encontramos, eu pelo São Caetano ele pelo Juventude e ficou de boa.
OP - A briga foi por alguma coisa que aconteceu no treino?
Bechara - Foi exatamente isso. O goleiro Fernando Leão (sobrinho de Emerson Leão) era o terceiro reserva do Santos, eu estava no time de baixo e no coletivo ele demorou a sair com a bola e eu disse: "Vambora, vamos rápido, vamos rápido", discuti com ele. O Leão se meteu e houve esse problema aí, infelizmente eu fiz isso. Se tem uma coisa que eu me arrependo no futebol é de ter discutido com o Emerson porque não se discute com nenhum treinador.
OP - Depois você passa por Botafogo-SP e União São João, mas retorna ao futebol cearense pra defender o Fortaleza. E nisso você foi modificado de posição, verdade?
Bechara - Essa história é boa. Estava acabando o Campeonato Paulista, eu fui lá para o União São João que era do Iko Martins, meu empresário, ao lado do José Mário Pavan. Tinha uma briga deles dois e eu fui para segurar uma onda. Acabou o Paulista e me ofereceram ao Ceará, que não quis porque estava com a Icatu (patrocinador) e com bala na agulha (dinheiro para investimento). Eu fiquei muito chateado porque eu era cria do Ceará, saí, fui vendido, gerei algum bônus para o clube e, quando precisei voltar, não tive oportunidade. Então apareceram o Sílvio Carlos e o Jorge Mota, do Fortaleza, e a frase que eu me lembro até hoje é essa: "Se nós vencermos o clássico contra o Ceará, nós poderemos te anunciar. Nós não temos muito dinheiro, mas a torcida vai pagar você". Eu disse: "Beleza, então". O Clássico deu 3 a 0 para o Fortaleza no Castelão, no segundo turno isso, e eles anunciaram depois do jogo. Eu fui ganhando bem menos do que se eu fosse para o Ceará. Quando eu falei que ia voltar para o futebol cearense, o Iko Martins disse o seguinte: "Que bom, você vai para o Ceará Sporting Club, o time está bem". Quando eu disse que ia para o Fortaleza, ele me falou: "Eu não acredito que você vai fazer isso na sua carreira. O Fortaleza não ganha de ninguém, está há três anos sem ganhar um turno, há sete sem ser campeão". Mas eu acreditava que ia ser campeão comigo. Eu tive a dádiva de vir para Fortaleza, cheguei aqui no dia 7 de maio, assinei o contrato, e no dia 14 eu estreei em um PV superlotado, decisão de turno, onde todas as coisas ajudaram para eu jogar. Dude estava machucado, Frasson estava suspenso e eu fui de volante. Aí o Ferdinando (Teixeira, então técnico do Fortaleza) me perguntou se eu jogava de primeiro volante. Eu disse que não era minha primeira posição, nunca foi e jamais será. Eu era segundo volante, saia para o jogo, fazia os gols, mas eu queria jogar aquela final porque eu sabia que podia ajudar, tanto é que fiz o gol do título. E aí eu tive que jogar mais na frente porque eu fazia muito gol, mas eu sempre gostei de jogar de segundo volante, de frente para o campo. Nunca gostei de jogar de costas. Eu não era um atleta que tinha muita agilidade, tinha um condicionamento físico muito bom, mas não era velocista. Nunca fui driblador. Eu sou fibras longas, bom passe, chego de trás, bater com a perna direita e esquerda, sempre fui bem nisso. Então começou essa história de jogar de meia-atacante, mas eu preferia jogar de segundo volante.
OP - Quando você voltou ao Fortaleza, em 2000, já era uma marca sua a cobrança de falta?
Bechara - Sempre foi. No Ceará também era assim, tenho muitos gols de falta pelo Ceará. Eu lembro que na Série B de 1997 eu fiz seis gols de falta em dez no total. O restante foi de cabeça, alguma coisa de chute. Então eu sempre me aprimorei, não existe o talento sem o aperfeiçoamento. Você tem que treinar e eu fazia isso exaustivamente, todos os dias, até aprimorar a batida. Não só falta frontal, mas a lateral, o escanteio, sempre tive a facilidade de bater na bola e era um perigo, né?
OP - Depois disso você foi para aquele São Caetano marcante, que foi vice-campeão brasileiro e da Libertadores. Fala um pouco desse time.
Bechara - Da Libertadores eu não participei, eu saí. Eu participei da Série A, que nós tínhamos um time muito certo, muito coeso, de grupo e até hoje nós mantemos amizade. O time era muito bom, o São Caetano tinha uma estrutura fantástica, era um clube bem à frente do seu tempo. O São Caetano pagava na quinzena, era um negócio fora de série, um time pequeno da região metropolitana de São Paulo, mas com potencial enorme de bastidores e de patrocinadores. Então foi montada a equipe para a Série A-2 (do Paulista), brigar para subir, Série B e Copa João Havelange. Depois seguiram com o time certinho, quando o Ailton (meia, ex-São Paulo) se machucou e eu tive que chegar para jogar no lugar dele. Isso de julho para agosto, quando tive a chance de ir para lá no segundo semestre. Joguei acho que 22 partidas e fiz sete gols. Fui o sétimo na Bola de Prata (premiação da revista Placar), com menos jogos. Para mim foi marcante porque o São Caetano foi aquele meteoro, chegou, fez a melhor campanha e no final perdemos para o Atlético Paranaense, que tinha time certinho já com Geninho. Foi uma vitrine, né? Espetacular, para mim.
OP - Na sequência, você jogou no Paulista, América-MG, Marília, Cabofriense-RJ e Portuguesa-SP. Não sei se algum desses clubes teve algo de especial para você, mas logo em seguida você abre carreira internacional. Teve um convite de um time da Arábia Saudita e naquela época não era tão comum ainda esse mercado. Como foi o choque de culturas?
Bechara - Essa passagem pelo Marília em 2003 foi espetacular. Nós tínhamos um time fantástico na Série B, que só dois subiam, então subiram Palmeiras e Botafogo, mas era sensacional, com Basílio, Camanducaia, Juca, Zé Luís, Everaldo. Era um timaço e foi muito importante, foi muito certinho. Um dos melhores clubes que eu joguei foi esse, o Marília de 2003.
OP - E na Arábia Saudita?
Bechara - Foi surreal. Primeiro porque é um choque cultural muito grande. Lá existe a religião, que eles levam muito a sério. Ao mesmo tempo é um aprendizado não só como atleta, mas como cidadão. Você cresce culturalmente. Nós tínhamos um intérprete que era muito gente boa, nos ajudava demais e a experiência foi única porque foi a primeira vez que eu saí (do Brasil). É engraçado que nós só treinávamos à noite lá, porque era muito quente e na época do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos, eles só saem de casa para se alimentar quando o sol está se pondo, então nossos treinos eram às 19 horas e, na época do Ramadã, começavam às 23 horas. Eles passaram um mês sem comer direito, sem se alimentar, então marcou demais porque é choque de cultura. Mulher não podia dirigir, não podia ir ao estádio, você não podia fotografar. Eu, por exemplo, morava em um lugar fantástico e não podia fotografar porque tinha polícia religiosa que impedia. Hoje não, a globalização chegou e mulher já dirige, já vai para o estádio.
OP - Você não podia nem andar com a esposa pelo mesmo lado da rua, não era?
Bechara - Não pode. Quando fui buscar minha mulher no aeroporto, eu tinha um amigo na imigração. Quando ela me viu, quis me abraçar. Ela estava de burca, chorando copiosamente, com medo e eu disse que ela não podia me abraçar. Ela falou: "Você não me ama mais". Precisei dizer que não podia ter carinho lá, manifestação, essas coisas. Agora, uma coisa é certa: onde o brasileiro chega, ele se adapta. As pessoas gostam da gente e o primeiro nome quando eu cheguei lá era o do Ronaldinho Gaúcho. Eles adoram jogadores que driblam bem, que dão espetáculo, mas não esquecem do Pelé. É um negócio fora de série, uma referência impressionante.
OP - Seu nome não é comum. De onde vem Bechara?
Bechara - Essa história é muito massa. Meu pai fez um curso de investigador criminal e o professor lá, o nome do cara era Bechara Jalkh. Aí meu pai colocou Bechara. Aí eu fui jogar no Líbano, Copa da Ásia, contra um time do Líbano. Quando cheguei no aeroporto o cara olhou para o meu nome e falou "o teu nome é libanês". Eu falei, "que legal e o que quer dizer?". "Bechara significa uma grande surpresa que virá", ele disse. E como eu estava de barba na época os caras falaram "você não é brasileiro, você é saudita".
OP - Você fala árabe?
Bechara - Não, algumas palavras apenas, foi um ano só (que joguei lá), é muito difícil. Só o treino, amanhã, se Deus quiser.
OP - Do mundo árabe você vai para a Noruega. Quais as principais mudanças de um lugar para o outro?
Bechara - Primeiro de tudo a mudança do clima. Eu fui para uma cidade que chovia por seis meses no ano, cidade linda, Alesund, e para um time que estava mal na tabela. Fui por indicação de um amigo. "Olha, eu não posso ir para aí mas eu tenho um cara que pode ajudar vocês", ele disse, aí perguntaram como eu era: "Ele é batedor de falta", meu amigo falou isso. Eu fui para um time que não ganhava nada há muito tempo, brigava para não cair e fiz 13 partidas e 6 gols, sendo cincos de falta. Eu fiz o gol do ano, de falta, lá, com 37 metros de distância, uma pancada. O nosso campo já era de grama sintética naquela época, em 2005. Com aquele frio na cabeça, eu jogava todo empacotado. O time não permaneceu na primeira divisão e eu também não permaneci.
OP - E como apareceram os convites dos clubes da Dinamarca?
Bechara - Apareceu a Dinamarca na Noruega. Os caras me viram jogar, fazendo gols, existiu esse interesse, só que eu vim para cá (Ceará) de férias e acertei com o Fortaleza para o Cearense 2006. Fiz um torneio mais ou menos, renovei, mas o Fortaleza perdeu o campeonato para o Ceará, aí veio Odense. Eles já estavam me observando desde 2005, me ligavam direto e eu disse para eles que saía apenas com três anos de contrato, porque eu já estava com 30 anos. Eles vieram ver Fortaleza e Paraná Clube, Série B. Eu confesso que não joguei bem, mas os caras adoraram. Eu não fiz gol, não dei passe para gol, foi normal, não fiz nada espetacular e empatamos com o Paraná. Aí o Kim Brink (representante do Odense) foi falar comigo e perguntou se tinha a possibilidade de assinar com eles. Eu falei que sim, mas queria assim, assim, assado e logo que ele voltou para Copenhague me mandou a proposta. Naquela época foi por fax. O Fortaleza já estava numa situação que era o Márcio Bittencourt o treinador. Ele já tinha caído para voltar o Hélio dos Anjos e tinha um pacotão que ia sair e o Márcio havia me confidenciado que muitos atletas sairiam e eu me antecipei, falei que ia sair, que o Hélio não queria contar comigo e fiz um acordo. Fortaleza foi muito generoso comigo, como sempre, sou muito grato. E fui para Dinamarca.
OP - Em 2006, antes de você ir para Dinamarca, teve um episódio curioso no Fortaleza com o Igor, que é lembrado até hoje.
Bechara - Aquilo é uma coisa horrível. Quem ia bater a falta era eu, então eu não sabia que ele ia passar na minha frente, literalmente não o vi. Quando ele passou eu chutei e pegou no calcanhar dele. Só que eu bato de chapa, se eu batesse assim (peito do pé), seria fratura exposta, então deu só uma trincada. Eu achei que ele estava dando "migué" (exagerando), aí acabou o primeiro tempo, eu chego no vestiário do Castelão e o Igor se contorcendo de dores. O meu emocional foi lá para baixo. Foi um acidente de trabalho, eu fui doutrinado para chutar aquela bola, treinava 50 faltas por dia para ter aquela oportunidade, tanto é que nós vencemos o São Caetano com duas faltas minhas cobradas na área, um miniescanteio e outra para o Alan, que sobrou pra eu cruzar, e foi 2 a 1, mas independentemente do resultado, foi um dia triste para mim porque quando acabou o jogo o Igor ficou mal, teve que operar, foi uma luta. Tive que ir embora e todas as vezes que ele operava era uma preocupação porque é um pai de família, um profissional do futebol e, de qualquer forma, foi eu que adicionei aquele problema.
OP - Quando você chegou em Odense o futebol da Dinamarca ainda era bem visto, certo?
Bechara - A Dinamarca jogou a Copa de 1998 e 2002, então a seleção tinha um nome. Fui para o Odense em julho de 2006, dois anos de contrato e fui para a coletiva de imprensa. Quem me indicou para lá foi o Júnior Pipoca, ele estava jogando lá foi vendido para o Malmö, por um milhão de euros, na época, para substituir para o Afonso Alves. (Na coletiva) me perguntaram o que eu tinha ido fazer na Dinamarca, já que eu estava jogando a primeira divisão do Brasil, país do futebol. Falei: "Vim aqui para ser campeão", em inglês e todo mundo riu. Pensei, será que falei alguma coisa errada aqui? Acabou a coletiva de imprensa, chamei o nosso assessor de imprensa e perguntei "Rasmus, o que que eu falei de errado? E ele respondeu "Bechara, é porque o time não é campeão há 12 anos". Isso foi em 2006, quando foi no ano seguinte (fim da temporada 2006/2007) nós fomos campeões com um gol meu, de cabeça e os caras lembraram disso, do que eu havia falado naquele dia. "Deus não esquece seus filhos", eu disse. Então marcou o meu tempo na Dinamarca. Fomos campeões depois de 12 anos, colocamos o time na Copa da Uefa, foi bacana. Quando chego em Odense é tapete vermelho, sabe. Depois que eu saí, nunca mais o time foi campeão. Chegou a ser vice.
OP - E por que você trocou de clube na Dinamarca?
Bechara - Acabou o contrato de dois anos, eu queria mais três para encerrar a carreira no Odense. O Kim Brink, que me levou, disse que só poderia dar mais um ano e eu falei que não queria, daí fui para o Vejle, time com mesmo nome da cidade, que fica a 70km de Odense, cidade linda. Tinha um brasileiro que era empresário, hoje agente Fifa, Antoni Alexandrakis Alexandre, foi lá e fez como eu queria, três anos de contrato, salário do jeito que eu quis. Agradeci ao Odense, na minha despedida foi feita uma festa no estádio, com presentes, a torcida aplaudindo, diferente daqui. Aí fui pro Vejle, recém subido para a primeira divisão e o meu primeiro desafio foi com o treinador, que queria que eu falasse dinamarquês. Eu tive que estudar, aprendi pelo menos bom dia. O Vejle fez um time bacana, pegou uns caras destaques dos outros times e fez uma equipe para brigar, só que na minha segunda partida machuquei o joelho, lesionei. Tinha três anos de contrato para cumprir, eu vi que lá não ia curar, fiz a cirurgia lá em julho e não ficou legal. Fiquei até novembro sofrendo, fisioterapia que não existe, porque nossa (brasileira) medicina esportiva é a mais avançada do mundo, tanto é que os caras lá de fora vêm operar aqui. Aí eu tive que pedir para vir ao Brasil para tentar tratar aqui. De forma amigável encerramos o contrato faltando dois anos e seis meses para acabar meu contrato. Passei seis meses em Vejle, tinha feito a mudança da casa e tudo.
OP - Essa lesão de joelho te acompanhou até o fim da carreira? O que era exatamente?
Bechara - Eu não produzia mais o líquido sinovial, que é aquela lubrificação entre os ossos, então era osso com osso. E o joelho não fica mais o mesmo depois que faz a primeira cirurgia. Fiz três, tive que operar aqui no Brasil, com o doutor Michael Yuri aqui em Fortaleza e já ficou beleza. Aí, em 2010 eu operei com o doutor Renê Abdalla, que é o top dos caras que manjam de joelho no Brasil. E fiquei de boa, foi o último ano que eu joguei futebol profissional, no Fortaleza.
OP - Jogando na Arábia, Dinamarca e Noruega foi possível fazer o "pé de meia"?
Bechara - Sim, o futebol foi muito generoso comigo. É bem verdade que hoje está muito mais volumoso, a cotação do dólar hoje está R$ 5,50 ou R$ 5, na minha época o dólar era R$ 2,30, o euro R$ 2,50, hoje o Euro está R$ 6. Hoje se paga bem melhor que antes e assim sucessivamente, daqui a dez anos pagarão melhor ainda. Mas eu sou muito grato ao que o futebol me proporcionou. Sempre falo que ele me deu muito mais do que eu merecia. Tenho uma vida tranquila, de boa, sempre fui um cara com os pés no chão, nunca tive esse lance de viajar na maionese. Todas as minhas férias morando na Europa, podendo ficar por lá, vinha para minha casa aqui em Maranguape, rever meus amigos, trazer caixas e caixas de tênis, bolas para dar presente. Isso que me deixava feliz.
OP - Depois da carreira como atleta, você escolheu o lado da comunicação, não seguiu dentro do futebol. Por quê?
Bechara - Foi porque eu vi um espaço na nossa crônica de um ex-atleta para falar de futebol, que falasse o que o atleta sente de dentro para fora. Vocês da crônica conhecem de fora para dentro. Eu não, eu sei o que passa um atleta. Se fosse fácil jogar futebol jogariam 50 mil e 22 estariam aplaudindo na arquibancada, mas é o contrário. Esses caras pagaram para ter essa história, correram atrás. Eu via muito comentário infeliz. Futebol é assim, quando o cara joga uma partida que termina meia-noite, ele não consegue dormir. O cara se frustra quando perde o pênalti, quando perde a partida, fica mal, vai dormir de manhã para treinar à tarde, para pegar um voo. Pergunta para os meninos que estão jogando aí hoje se é fácil pegar um voo para São Paulo, três horas e 15 de viagem, para descer e "descarregar um caminhão carregado de abacaxi" contra o Corinthians, contra o Palmeiras, contra o São Paulo, para voltar no outro dia no avião para jogar 48 horas depois. Isso não é fácil, então eu valorizo a história desses caras aí. A história do Bruno (Melo), que é um monstro do Fortaleza. Esse Fernando Sobral, que saiu lá de Sobral.
Não é todo mundo que é mau caráter, como dizem, tem um monte de gente sério e profissional, dedicado, que abre mão da família para correr atrás dos objetivos. Eu não nasci para ser treinador porque eu sou muito bonzinho. Trabalharia no administrativo, treinador não, nem como agente; um administrativo, um elo entre atleta e direção.
OP - E de gerente de futebol?
Bechara - Hoje não mais. Já pensei alguma vez. Hoje não tenho mais tempo mesmo, minha vida está ligada a outros negócios e isso me preenche. Eu sinto falta de comentar futebol.
OP - Sua carreira no futebol não foi marcada por polêmicas, nunca se ouviu falar de problemas com balada, enfim, sempre foi muito discreto. Futebol é, acima de talento, cabeça?
Bechara - As pessoas contratam pelo caráter, hoje, também, não é só a bola. Então eu sempre falo para os amigos que jogaram comigo que não é importante que você seja ídolo dentro de campo, você seja referência dentro de campo, eu nunca me preocupei com isso, eu queria jogar futebol, fazer meus gols e tal, mas eu sempre me preocupei com a sociedade. Qual é a emoção que eu estou provocando para os mais jovens, para as crianças que nos observam. Eu sempre procurei provocar emoções positivas nas pessoas. Os valores morais, respeitar pai e mãe, está tão fora de moda hoje, mas tem que acontecer. É a educação que eu tenho da minha casa, uma professora primária que me ajudou e tal, tive que correr atrás para ser alguém na vida. Eu circulava em bons lugares, com boas pessoas, com boas amizades. Isso era interesse? Não, cara-pálida, só que eu escolho com quem eu ando. As más companhias corrompem os bons costumes. Eu sempre andei com gente bacana, que agregava valor, que era relevante na sociedade. Esse é meu papel hoje, como ex-atleta. Quando eu passo na rua, não me empolgo quando o cara fala "Bechara, você jogou muita bola" mas quando o cara fala "esse cara é um cidadão, ele é espelho pra juventude da cidade dele", cara, isso me enche de orgulho. Para mim é uma dádiva. Isso é a maior riqueza que um homem pode ter. Isso é para poucas pessoas.
OP - Quem bate faltas como o Bechara hoje?
Bechara - Procura aqui no Brasil quem está batendo falta. Eu procuro. Me ajuda aí, são raros. Tem o Juninho que bate falta, do Fortaleza. O Vina, que bate bem na bola também, tem feito muitos gols de bola parada. Assim, esses caras que eu estou vendo mais próximos aqui, mas se você abrir o leque. São Paulo tem um batedor de faltas? Palmeiras tem? Grêmio tem? A seleção brasileira tem batedor de falta? É um fundamento que parece que os caras não gostam de treinar.
OP - E o que o Bechara faz hoje?
Bechara - Eu sou formado em educação física, trabalho na educação há cinco anos, na parte administrativa de um colégio privado aqui de Maranguape, o Colégio Olímpico. Estou há cinco anos aprendendo, talvez a maior bandeira do mundo. Talvez não, absolutamente é a bandeira mais importante do mundo, a educação. O que seria de um país como esse sem educação. Porque a educação transforma, muda, você transforma as pessoas, proporcionam esperança através dos saberes, isso que me motiva hoje. Cuido da parte administrativa de uma empresa grande, somos uma empresa grande aqui em Maranguape. Sou literalmente feliz de aprender, a gente aprende todo dia com as crianças, com os pré-adolescentes. É um jogo de conhecimento muito massa.