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O primeiro cearense à frente da Cruz Vermelha Brasileira
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O primeiro cearense à frente da Cruz Vermelha Brasileira

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FORTALEZA, CE, BRASIL, 29.10.2020: Julio Cals, Presidente Nacional da Cruz Vermelha Brasileira, entrevista para Paginas Azuis. Em época de COVID-19.  (Foto: Aurelio Alves/O POVO). (Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves FORTALEZA, CE, BRASIL, 29.10.2020: Julio Cals, Presidente Nacional da Cruz Vermelha Brasileira, entrevista para Paginas Azuis. Em época de COVID-19. (Foto: Aurelio Alves/O POVO).

Criada em 1908, a principal organização humanitária do Brasil levou mais de um século para ter um cearense assumindo seu comando. Foi em 2017 que o alencarino Julio Cals passou a ocupar a presidência da Cruz Vermelha Brasileira. De família tradicional na política cearense, filiou-se ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) ainda na juventude e chegou a disputar candidatura para vereador de Fortaleza. Com o tempo, conta ele, "ficou muito desgostoso". Passou a buscar a mudança que deseja ver na sociedade a partir do trabalho humanitário.

Em conversa com O POVO, Julio conta sobre a importância da família na sua trajetória, lembra de experiências atuando em emergências humanitárias do País e avalia situações desencadeadas pela pandemia de Covid-19.

O POVO - Julio, o senhor é daqui de Fortaleza, certo? O que existia na sua infância e juventude que lhe inspirou a trabalhar com voluntariado e ações humanitárias?

Julio Cals - A família é a principal incentivadora dos jovens e a minha família sempre me incentivou a cuidar e a olhar para o próximo, para as pessoas que muitas vezes são invisíveis para a sociedade. E para minha família, para mim essas pessoas não eram invisíveis. O meu bisavô, César Cals, era médico e conhecido como médico dos pobres; ele atendia todo mundo de graça e fazia isso por amor. Ele ainda enveredou para o lado político também, mas era conhecido como médico dos pobres. Então eu acho que essa veia, esse sangue humanitário, de fazer o bem vem no nosso DNA e também vem através dos ensinamentos.

Quando criança, meus pais sempre me levavam em hospitais que atendiam crianças com câncer; para brincar, para olhar, para dizer como era. No Dia das Crianças, eu me lembro muito bem, a gente saia com o porta-malas da perua Marajó do meu pai cheio de brinquedos, doces e pipoca. A gente parava nas esquinas e entregava esse material para as crianças. Então fui aprendendo em casa a olhar para os invisíveis da sociedade e, principalmente, a entender que esses invisíveis são iguais a mim. São pessoas que estão em situação de vulnerabilidade, mas são seres humanos que merecem um olhar de amor. Isso hoje eu também passo para os meus filhos.

OP - O senhor é o primeiro cearense a assumir a presidência da Cruz Vermelha Brasileira. Como aquele jovem vê o Julio de hoje?

Julio - Primeiro é uma responsabilidade gigantesca. Não sou médico nem administrador, sou um comunicador formado em Rádio e TV e hoje ocupo a cadeira de Oswaldo Cruz, sanitarista reconhecidíssimo que foi o primeiro presidente da Cruz Vermelha aqui no País. Então sair do Ceará, que é um exportador de lideranças, para assumir esse lugar e ter essa responsabilidade é algo gigantesco, sabe? Às vezes, eu paro e penso: "nossa, hoje a maior autoridade humanitária no Brasil é o Julio! Então eu preciso ajudar as pessoas a ter tudo o que a Cruz Vermelha pode oferecer".

É também um sentimento de orgulho, principalmente por estar com toda a equipe que é a minha base. Tenho muito orgulho de ser cearense e de levar o nome do Ceará para o Brasil e para o mundo. Tenho muito orgulho porque a gente sabe o quanto nosso povo é resiliente e em cima dessa resiliência a gente ainda faz graça. E é um sentimento que espero criar nos cearenses também.

OP - Sua família tem uma tradição política e parte da sua trajetória profissional envolve a política partidária. Por quais razões o senhor deixou essa vida de lado para atuar por meio de organizações da sociedade civil?

Julio - Descobri que a política humanitária é uma política pura. Esse é o principal ponto que me fez sair da política partidária. Eu fiquei muito desgostoso de tentar algum cargo político, apesar de entender que as esferas de decisão são extremamente importantes para o desenvolvimento da nossa sociedade por meio da democracia. Mas esse poder que emana do povo e é dado a esses representantes não estava me fazendo tão bem. A gente não tinha bons exemplos.

OP - E hoje nós temos bons exemplos?

Julio - Hoje a gente não nota a ideologia realmente viva dentro dos partidos políticos. A ideologia partidária está ali apenas constando no estatuto dos partidos. E, outra coisa, hoje as disputas políticas estão muito acaloradas, existe muita falta de respeito entre todos os lados da política. Acho que as pessoas precisam se respeitar mais, independente de discordarem ideologicamente. É preciso entender que a verdade de cada um não é absoluta.

OP - O que seria uma boa atuação política partidária?

Julio - Acho que os políticos deveriam fazer um bem para o município, para o estado, para o país sem cobrar ou esperar voto em troca. Sem isso de "estou te ajudando para que você vote em mim" ou "estou fazendo essa melhoria no meu município porque quero de novo ter um mandato". Destinar emendas parlamentares para tal município para melhorar a saúde, por exemplo, é obrigação do político. Ele está ali para destinar emendas para melhorar saúde, educação, mobilidade urbana, né?

OP - Neste período em que o senhor está à frente da Cruz Vermelha Brasileira, o Brasil e o Ceará passaram por grandes tragédias, como o rompimento da barragem em Brumadinho e o desabamento do Edifício Andréa. O que foi mais desafiador para a atuação nessas ocasiões?

Julio - São alguns desafios, desde chamar todos os voluntários disponíveis até nos organizamos como base de suporte para os Bombeiros e outras autoridades públicas. Todos eles vêm sendo muito bem-sucedidos. Mas do ponto de vista pessoal, acho que o Edifício Andréa foi um desafio muito maior, porque eu estava na minha terra e a gente tem esse vínculo.

Quando desabou eu estava nos meus dois dias de descanso em Fortaleza. Estava brincando com meu filho de 1 ano e 7 meses e minha esposa me liga avisando que um prédio tinha desabado perto da nossa casa e que tinham vítimas. Na mesma hora, coloquei meu uniforme da Cruz Vermelha e parti para lá. Quando vi o tamanho do desastre, aquilo me tocou muito. Lembro que ajudei a tirar uma pessoa dos escombros e a única coisa que ela perguntava era "cadê o meu cachorro?".

OP - Graves situações humanitárias expõem diversos pontos, estruturais e subjetivos, de uma sociedade. Com sua experiência, o que essas emergências evidenciam sobre o que é o Brasil e o que são os brasileiros?

Julio - O que mais me salta que é o povo brasileiro é um povo extremamente amoroso. Eu chego às vezes em um estado, vou visitar algumas casas durante a operação e sempre me oferecem alguma coisa. Em Brumadinho, me ofereceram um doce de abóbora. Essas coisas me marcam muito. As pessoas doam de coração, dividem o pouco que têm.

E o que o Brasil me mostra? Que nós vivemos um abismo social assustador. No Amapá, fui para uma missão no meio de um igarapé e uma criança de seis, sete anos, veio me pedir alguma coisa porque estava com fome. Ela trabalhava junto com o pai subindo nos açaizeiros para tirar a fruta para ir vender e nessa situação de pandemia estavam sem venda e ela estava com fome. Isso uma criança que deveria estar estudando e aproveitando sua infância. E a mesma fome que tem nos países africanos, tão estigmatizados, tem aqui no Brasil.

OP - Durante a pandemia de Covid-19, a Cruz Vermelha Brasileira tem sido uma das organizações mais atuantes em todo o País. Entre todas as ações que estão sendo realizadas, quais as mais importantes?

Julio - Cada estado tem vivido situações muito particulares, mas no geral têm dois trabalhos que estamos desenvolvendo junto aos voluntários e organizações parceiras que fazem muita diferença. Primeiro, o trabalho para garantir segurança alimentar, distribuindo cestas básicas - principalmente nas situação da quarentena em que as pessoas ou não puderam trabalhar ou perderam o emprego. E depois o trabalho de educação em saúde, de educar as pessoas como se proteger, proteger seus vizinhos, proteger sua família e também de distribuir kits de higiene e Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). São as duas mais importantes ações que a Cruz Vermelha vem fazendo em nosso País. Tudo isso a Cruz Vermelha não faz só, empresas multinacionais e nacionais são extremamente importantes para que a gente possa cumprir nossa missão de diminuir o sofrimento humano.

OP - E essas parcerias são difíceis de conseguir? Ainda mais nesse momento em que as empresas passaram pelas próprias dificuldades financeiras.

Júlio - Pela nossa história e pela nossa credibilidade, a Cruz Vermelha é a segunda marca mais conhecida no mundo. Enquanto marca, estamos atrás somente da Coca-Cola. Nós tivemos e temos muito apoio de empresas pelo Brasil e em todo o mundo. Antes desse período da pandemia, existia uma certa dificuldade em conseguir recursos; mas nesse momento, as empresas tiveram um olhar carinhoso para que a Cruz Vermelha recebesse recursos e materiais.

OP - No início da pandemia, se dizia muito que as pessoas poderiam sair melhores desse momento tão difícil. Passados sete meses do novo coronavírus no Brasil a partir do ponto de vista dos trabalhos humanitários, o que as pessoas aprenderam?

Julio - A pandemia veio mostrar várias coisas; entre elas, que as pessoas precisam se engajar mais, ajudar o próximo e começar a enxergar os invisíveis que existem na nossa sociedade. Acho que esse foi um aprendizado. Existiu um aumento gigantesco de pessoas que estão ajudando e que querem fazer parte de uma corrente do bem. Maior que a curva de contaminação do novo coronavírus, foi a de pessoas querendo ajudar outras pessoas.

OP - E o que as pessoas não aprenderam?

Julio - Essa questão de aglomerações, sem uso de máscara, sem ter um cuidado consigo e com os outros. Muitas pessoas agem como se a Covid-19 fosse um aplicativo que liga e desliga e não é. A pandemia continua aí. Então, as aglomerações em campanhas eleitorais, as aglomerações em shoppings e praias, tudo isso está errado. Infelizmente, as pessoas ainda precisam entender mais o que está acontecendo. As liberações feitas pelos governos são tentativas de não quebrar a economia, mas a economia vai se tornar uma economia doente porque vai ter muita gente contaminada. As pessoas precisam ter mais cuidado, se cuidar e se amar mais.

Doações na pandemia

A CRUZ VERMELHA Brasileira já enviou mais de R$ 20 mi, entre donativos e despesas operacionais, beneficiando mais de 4 milhões de pessoas nos 27 estados do País. Somente para o Ceará, foram destinados R$ 845.847,27, usados na compra de kits de proteção individual, kits de higiene pessoal e coletiva, medicamentos, alimentos e materiais informativos.

 

Movimento internacional

A CRUZ VERMELHA BRASILEIRA integra o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. Junto dela estão o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), a Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho e outras 188 sociedades nacionais.

Sete princípios fundamentais

COM A MISSÃO de prevenir e aliviar o sofrimento humano durante guerras e emergências como epidemias, inundações e terremotos, as organizações seguem sete princípios fundamentais. Estes princípios são humanidade, imparcialidade, neutralidade, independência, voluntariado, unidade e universalidade.

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