Qual a imagem que fica de 2020? E qual a que pode definir o início de 2021? Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), historiadora e também artista, Giselle Beiguelman se pergunta, nesta conversa, se o ano que termina legou uma imagem capaz de traduzir a sua brutalidade.
De passagem, entre lives para entrevistas e preparações de aulas num semestre tumultuado, a pesquisadora reflete sobre os impactos sanitários, políticos, sociais e culturais da pandemia de Covid-19. Para ela, o pós-pandemia já é agora, e nenhum futuro será possível sem se levarem em conta as mudanças pelas quais o mundo passou na esteira dessa enfermidade.
Alterações tecnológicas e reconfigurações do espaço urbano e doméstico, transformações afetivas, novas políticas de vigilância, erupção no léxico e multiplicação de expressões tendo a “corona” como prefixo. “A pandemia já deixou suas marcas”, conclui.
Segundo ela, os padrões se recombinaram “numa escala muito maior e com uma transversalidade em todos os campos do cotidiano, do afetivo ao urbano, das nossas relações entre público e privado”. A professora arremata: “Não vai ser como se nós acordássemos de uma gripe no dia seguinte”. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista, concedida ainda em dezembro de 2020.
O POVO – O que podemos esperar da vida no pós-pandemia? Aliás, é possível falar num pós-pandemia?
Giselle Beiguelman – Eu acho que esse pós-pandêmico já é. Já é o nosso presente. Essa nossa expectativa de uma volta à normalidade, embora seja difícil de fazer conjecturas sobre o que será o futuro num momento em que nós não conseguimos ter esse horizonte sobre o depois, é criar uma utopia de que existe um corte entre um momento do coronavírus, o momento pandêmico, e o momento em que tudo se reinicia com uma certa volta ao que nós éramos antes da pandemia. A pandemia já deixou suas marcas. Eu faço parte de uma geração que viveu a chegada da Aids, que mudou e alterou completamente os regimes comportamentais, a sexualidade e modelou toda uma outra forma de relacionamento social para as gerações que nos sucederam. A ideia do parceiro único, o uso do preservativo... Não que essas coisas não tenham sido, em alguma medida, positivas, no sentido de cuidado de si, mas criaram uma outra ótica e uma outra experiência da sexualidade.
OP – Vai se dar o mesmo com a Covid-19, nesse sentido de reconfigurar o mundo?
Beiguelman – Numa escala muito maior e com uma transversalidade em todos os campos do cotidiano, do afetivo ao urbano, das nossas relações entre público e privado, essa pandemia não vai ser algo como se nós acordássemos de uma gripe no dia seguinte. Acho que todo o medo como paradigma do convívio social é algo que é muito lento de ser ativado. Esse é um aspecto que não é pequeno, ou seja, de que a pandemia trouxe medo do contágio, medo do outro, medo de estar em público. Nós sabemos que tem uma motivação, mas, depois de tantos meses numa escala global nessa situação, é bem plausível imaginar que isso se torne mais um dos elementos da nossa cultura paranoica. Das câmeras de vigilância, da sedição, do medo do assalto, do atropelamento, da morte e, agora, o medo do contato. Outro aspecto é, num recorte de classe, o teletrabalho e toda sua precarização da vida particular do sujeito e dos modos de se relacionar. E, por último, que não é menos importante, essa explosão do audiovisual, de viver na forma de imagem, como nós estamos vivendo. Isso certamente são três variáveis com as quais nós conviveremos por muito tempo. E ainda não se pode esquecer que a pandemia evidenciou e aprofundou toda uma divisão do espectro social a partir do digital também, criando um fosso entre os “rastreáveis” e os “não rastreáveis”.
OP – Isso tudo deve se incorporar ao porvir, já que a senhora sinaliza para a impossibilidade de um retorno a qualquer tipo de mundo pré-pandêmico.
Beiguelman – Retorno, não teremos. Teremos alterações a partir dessas derivadas. O retorno ao passado é impossível em qualquer situação, um retorno a como era antes da pandemia sempre será um depois com a pandemia, a partir da pandemia. É difícil prever, mas não é implausível pensar que a pandemia já criou novos paradigmas e que o que houver de alteração, daqui para a frente, será um conjunto de alterações a partir da experiência da vida no contexto pandêmico.
OP – Qual o maior impacto que a senhora percebeu no espaço público e no espaço doméstico em 2020, já que essa esfera privada foi também atravessada por uma lógica pública e essa divisão fora/dentro ficou mais diluída?
Beiguelman – Acho que nós temos que pensar que é a consolidação não do modelo “home office”, mas do modelo do “office home”. Nós passamos a morar no trabalho. É totalmente diferente de trabalhar em casa. Isso é algo que se constatou neste momento, todo dia é dia, toda hora é hora, não existem mais separações nem entre o lugar do repouso e do trabalho, nem muito menos filtros que permitam indicar quais são os momentos de trabalho e momentos que não são de trabalho, apesar de muito concentrado num espectro de classe. Porque não são todos os trabalhos que podem ser realizados a partir da casa. Isso é, apesar de toda a precarização, um privilégio, não podemos esquecer disso. Isso impacta de uma forma muito profunda o espaço público, que é esse lugar determinado do imprevisível, do confronto e do compartilhamento. O espaço público passa a ser o espaço mais regrado do que nunca, nós temos horários muito rígidos para o nosso lazer. E esse lazer é absolutamente previsto com antecedência, a que horas e a que dia vamos visitar uma exposição, quais são os dias que são possíveis de caminhar nas ruas. Esse esvaziamento, de uma certa forma, militariza o nosso modo de vida a partir do medo e, em última instância, do contato. Eu queria frisar que é paradoxal porque todas essas questões são também uma questão de saúde pública. Nós precisamos atentar para essas regras em prol do outro, e não só em benefício de si próprio. Mas muda muito. Nessa redução do espaço público, lidar com pessoas que não têm rosto mais, são só olhos. Então, numa análise urbana, são variáveis de uma mutação muito profunda.
OP – Isso acentua o caráter individualista do modelo de convivência hoje, presente principalmente na internet, de cada um muito particularizado e conectado ao mesmo tempo?
Beiguelman – Totalmente. Acho que vence um modelo muito perverso de vida online, que é o que chamamos de individualismo conectado. É a centralização absoluta em torno do sujeito, e o compartilhamento é feito a partir das prerrogativas individuais. Mas, de novo, isso num recorte de classe, de quem pode ficar em casa, de quem pode fazer o seu trabalho de casa.
OP – Como é que o confinamento que a gente ainda vive incrementou essa “vigilância algorítmica”, que é uma expressão usada pela senhora num livro recente? A pandemia vai legar um mundo mais controlado?
Beiguelman – Muito mais. Até porque a vigilância, que já havia se transformado muito no início do século XXI, por pressão das redes sociais, num modelo em que ser vigiado é ser presente – a nossa sociabilidade está diretamente relacionada a nossa capacidade de estarmos expostos voluntariamente nas redes sociais, despejando dados por todos os lados –, ela se torna também agora uma prerrogativa de sobrevivência. O corpo é a senha do novo normal. Nós somos rastreados a partir da nossa fisiologia, não mais da exposição da nossa intimidade. Esses dados que são recolhidos, pelas câmeras térmicas, pelos termômetros apontados para nossa testa, são dados que trazem consigo horários, coordenadas geográficas de onde estávamos. E uma das características do “big data”, dessa massa de dados, é sua capacidade de ser usado para vários fins. Nós não sabemos quais são as possibilidades de uso dessa massa inacreditável de dados que está sendo coletada dos corpos a partir daquilo que era a última fronteira de defesa de qualquer um de nós, que era nossa fisiologia: nossos batimentos cardíacos, os nossos estados de medo, muitas coisas podem ser filtradas a partir disso. Então tem uma vigilância algorítmica se impondo. Outra coisa é o monitoramento das quarentenas, que se valem de sinal de celular das pessoas. Apesar de ninguém ter sido consultado, se o Estado pudesse cruzar os dados da operadora de telefonia com os serviços públicos de saúde, eu duvido muito que alguém se negaria a dar, porque o monitoramento é agora também uma questão de sobrevivência. E isso é o que aprofunda a divisão digital sobre a qual falamos e discutimos desde os anos 1990. Quem tem acesso e quem não tem aceso ao digital. Aquele que não é monitorável pelo seu celular, que não é monitorável a partir da sua fisiologia, ele também não é visível perante o Estado como alguém que tem que ser cuidado. É uma vigilância muito perversa do ponto de vista social.
OP – Eu perguntaria se esse monitoramento pode se voltar contra a coletividade, mas a senhora começou a responder citando uma possibilidade real.
Beiguelman – Olha, eu acho que os governos dizem que esses dados coletados serão apagados ou arquivados e que não terão nenhum tipo de uso após a pandemia. O que me pergunto é se essa mesma variável vale para os fabricantes de equipamentos de leitura térmica, para as operadoras de celular etc. Será que isso é fato? Temos vários exemplos que corrobora a hipótese de que a política de privacidade de dados é muito falha numa sociedade em rede. É difícil até de pensar em dados que não sejam o tempo todo passíveis de apropriação. Acredito que há uma possibilidade, sim, de esses dados serem usados para outros fins. Não posso afirmar que serão, mas que é possível, é.
OP – A gente estaria diante de uma nova invisibilidade social, com esses cidadãos não rastreáveis pelo Estado?
Beiguelman – Com certeza, é uma nova camada na invisibilidade daqueles para os quais o Estado já voltou as costas há muito tempo. São os desabrigados, os muito pobres, aqueles que estão na periferia da periferia do sistema de gestão pública da sociedade.
OP – Uma das facetas do trabalho da senhora é sobre o léxico. A senhora coletou e recombinou alguns termos, criando conceitos como a “coronavida”, a coronacity. O que esse vocabulário revela sobre a forma como a gente lidou com esse período?
Beiguelman – Acho que isso é um ótimo indicador do quanto a pandemia se introjetou muito rapidamente na cultura urbana como um todo. Palavras que eram desconhecidas, como EPI (equipamento de proteção individual), ou pouco usadas, como álcool gel, protocolo, se tornaram palavras-chave da nossa experiência cotidiana. E as nossas particulares, como “comunavírus” etc. Além daquelas que ganharam uma conotação totalmente distinta, como máscara. Quem mais associa máscara com Carnaval? Máscara é um dispositivo de segurança, é a primeira imagem mental que vem. “Home office”, por exemplo, é uma expressão de nicho e hoje está em qualquer lugar. “Zoom”, até onde eu entendo, era algo que diz respeito aos mecanismos de trabalho com imagem. “Zoom” é hoje em dia, a priori, o lugar onde nós estamos. Então tudo isso mostra que o pós-pandêmico já está aqui, todas essas palavras ingressaram com força na nossa vida e numa velocidade de dias. Em escala global, é muito ingênuo não entender que esse léxico é a expressão da nossa história de agora.
OP – Outro tema sobre o qual a senhora reflete são os “memes”, o papel que eles têm na reconstrução, na rememoração desse período. Quando a gente precisar contar a história da pandemia, os memes vão ser uma ferramenta útil para entender o momento?
Beiguelman – Eu acho que só os memes deram conta desse momento, ele é tão alucinado, e tudo aconteceu e acontece com uma velocidade tal, que só o meme, culturalmente, tem capacidade de elaborar essa realidade. Não quero ofender jornalistas, e nem é minha ideia, quando digo que o meme é uma forma de jornalismo a “sangue quente”, que elabora em tempo real o acontecimento e multiplica esse acontecimento de uma forma viral, que se espalha. Isso acontece porque o meme de fato está traduzindo alguma coisa, aliás, a condição de ser meme é sua multiplicação sem controle. A multiplicação é justamente o indicador de que ele está falando com muitos. Alguns memes se tornaram globais, outros memes, como aqueles de teletrabalho, das pessoas com as crianças em casa, trazem uma linguagem que fala com todos. Já outros têm perfil muito local. Diante das reações do presidente Bolsonaro, por exemplo, de que é um atleta e que portanto estaria blindado contra a Covid – a história mostrou que não. O povo antivacina, que é contra vacina porque é contra qualquer tipo de mecanismo de preservação da vida. Só os memes dão conta disso. Acho que os memes contaram a vida e o cotidiano do que foi viver na pandemia, do impacto do isolamento social, até o teletrabalho, num recorte muito específico, numa incrível multiplicação e com uma diversificação enorme.
OP – Isso traz outra questão, que é a da visualidade. Houve uma multiplicação de telas na pandemia em 2020?
Beiguelman – Houve uma pandemia de imagens. Desde a própria imagem do coronavírus, que é uma imagem sintetizada em computador e tomada como a própria natureza, uma realidade sintética que se torna mais natural do que o próprio natural. Pra você e pra mim, é meio óbvio que é uma imagem sintetizada de um vírus em computador e que ela não sai assim do microscópio. Mas essa linguagem se transformou em algo mais real do que a própria natureza: este é o vírus, que é até engraçadinho, como se fosse um vírus da Pixar. A vida é mediada pela tela. Estamos aqui nós dois conversando com uma naturalidade que, há seis meses, não teríamos. Acerta a câmera, muda o link, o áudio, as pessoas sabem como se enquadrar, o que dá certo e o que não dá, checa luz, grava. É muito forte essa vida audiovisual. A gente assiste TV e parece que não saiu de dentro do computador ou o do celular, porque virou tudo a mesma imagem. E se eu tivesse que escolher uma imagem emblemática da vida em 2020, qual seria? São as imagens do próprio vírus? São as imagens do presidente Bolsonaro com a máscara a tiracolo? São as videoconferências e as lives? São os mutirões com as escavadeiras cavando as valas comuns para esses não rastreáveis sobre os quais estávamos falando? São as imagens dos cemitérios cheios de mortos e vazios de afetos, já que as pessoas não podem participar desse ritual tão característico da nossa cultura? Qual é a imagem da Covid?
OP – A senhora escolheria alguma?
Beiguelman – Acho que a das valas comuns, das escavadeiras naqueles terrenos fazendo os mutirões para enterrar uma quantidade de mortos muito maior do que os cemitérios, especialmente os pobres, operavam na sua regularidade e com vazios ao mesmo tempo. Cheios de mortos e vazios de gente. É uma das imagens que melhor traduzem a brutalidade do genocídio que está em curso em lugares como o Brasil nesse período pandêmico. É uma imagem de uma força mórbida, mas que me parece dar conta de tudo que a pandemia significou social e politicamente para nós. Para além de todas as questões culturais, há uma dimensão política e social que não podemos deixar escapar. Um mutirão, pela quantidade, e, sincronicamente, o terreno vazio de pessoas que, pela própria dinâmica, sabemos que não podem estar lá, e as valas rasas para corpos de empregados ou pobres para os quais o Estado desde sempre virou as costas. Talvez, infelizmente, essa seja a imagem da Covid. É a imagem icônica da pandemia. Ao menos para nós, no Brasil.
OP – Há uma outra imagem, que é o contrário dessa, que é a da vacinação. Pessoas emocionadas em lugares diferentes do mundo sendo vacinadas e se multiplicando como uma corrente. Uma cena que, até outro dia, era tão corriqueira. Seria a imagem de 2021?
Beiguelman – Exatamente. Isso é um clamor pela vida. De repente, começamos a ver imagem de que as pessoas estão emocionadas tomando vacina. É um grito pela vida, uma tentativa de recuperar a sua sociabilidade, as suas afetividades, na vida e na morte. A vacina é o contraponto a essa imagem de morte do cemitério vazio, a emoção é a evidência mais clara de que, a despeito do que pensam alguns, isso não é uma gripezinha e as pessoas estão em profunda dor e luta pelo direito à vida.
Perfil
GISELLE BEIGUELMAN é artista, curadora e professora associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Estuda o campo da arte digital e as políticas de retenção de memória em suportes digitais.
Artigos
DURANTE A PANDEMIA de Covid, escreveu série de artigos sobre as mudanças profundas marcadas pela doença em todos os âmbitos da vida em sociedade, da cultura à política
Livro
UM DESSES ARTIGOS foi publicado no livro "No tremor do mundo" (editora Cobogó), organizado por Luísa Duarte e Victor Gorgulho e publicado em 2020. No texto, Beiguelman trata da biopolítica em tempos de pandemia