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Quarentena obrigou "a olhar quem é você e como estava vivendo", diz psicanalista
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Quarentena obrigou "a olhar quem é você e como estava vivendo", diz psicanalista

Maria Homem fala sobre os impactos da pandemia na subjetividade, afetividades e política no Brasil de hoje
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Psicanalista Maria Homem fala sobre os impactos da pandemia na subjetividade, afetividade e política no Brasil de hoje (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Psicanalista Maria Homem fala sobre os impactos da pandemia na subjetividade, afetividade e política no Brasil de hoje

Psicanalista e escritora, Maria Homem adverte: estamos todos sob ameaça. Esse risco, contudo, é de ordem planetária. Começa na rua, no privado, no indivíduo, mas extrapola os limites do ego e se estende ao ecossistema global, cujas normas se colocaram em xeque na esteira da crise sanitária.

Autora de “Lupa da alma: quarentena-revelação” (editoria Todavia), Maria Homem é pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) e professora da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap).

Na obra, esboça um instantâneo dos meses sob o regime de pandemia e contenção em muitos âmbitos: coletivo, afetivo, social, cultural. De acordo com ela, a quarentena rasgou alguns véus em 2020, impondo a todos uma realidade mais crua e violenta, mas também propícia a mudanças.

Em casa, obrigou “a olhar quem é você e como estava vivendo”. Sobretudo: ao lado de quem. E jogou a pergunta: quanto do outro você suporta no dia a dia? É o que chama provocativamente de “quarentena-revelação”, processo mediante o qual identifica “uma explosão do retorno do recalcado”.

Além de questões ligadas à área em que atua, Maria Homem se detém sobre o cruzamento entre psicanálise e política do Brasil de hoje, de desigualdades escancaradas na saúde e no adoecimento. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

O POVO – A virada de página do calendário pode ter algum efeito simbólico positivo depois de um ano tão difícil como foi 2020?

Maria Homem – A gente, “humanos”, faz uma espécie de divisão quase simbólica entre o caos, eventos aleatórios e contingentes, e vamos buscando uma ordenação. Qualquer mito de criação, de fundação, mítico ou religioso, vai dizer: no início era o caos, e houve o momento da ordem. Essa dialética entre caos e ordem é uma luta contínua. A gente está o tempo todo buscando reordenar ou categorizar, “planilhar” ou planejar, colocar um Excel no caos da vida. A primeira coisa é saber disso, mas como a gente faz isso? E então Deus disse: “fiat lux”. Aí vamos nas nossas categorias, luz/escuro, ou duas grandes categorias de organização, como diria a filosofia moderna ou já os antigos: o tempo e o espaço. A gente diz: tem o aqui, onde está o eu, e tem o acolá, onde está o outro. Normalmente a gente faz tudo de uma perspectiva egoica. Querendo ou não, a gente tem lógicas subjetivantes, a gente é muito egocentrado. O claro e o escuro, a ordem e a desordem, o bem e o mal, o eu e o outro, o aqui e o lá, o dentro e fora; faz o passaporte, faz a regra de circulação, faz a categoria do familiar e do estrangeiro. E faz a categoria do tempo. Funda tempo e funda espaço. O tempo, de acordo com o eu, é o que vivi antes e o que vou viver depois. É só uma categoria, uma ficção. É “só”, mas aí é complicado porque o simbólico é uma invenção compartilhada. A partir do momento em que eu digo “ano novo”, eu crio essa categoria absolutamente ficcional para mim, para você, para ele e para ela, a gente compartilha dessa fantasia comum, e a gente talvez possa dialetizar com a ficção do ano novo. E, a partir daí, quem sabe, fazer uma possibilidade de transformação na gente mesmo.

OP – É possível “resetar” o ano, como fica sempre embutido nessa ideia de passagem?

Maria – Não. Não existe resetar, subjetivamente falando, socialmente falando. Isso é da ordem do imaginário, é uma fantasia compartilhada. É pensamento mágico, é achar que poderia recriar coisas e refazer a partir do quê? De uma ficção compartilhada, que é o tempo comum, que é uma conquista histórica. Criar espaço e tempo compartilhados. Hoje estamos num estágio avançadíssimo de interlocução humana. Embora a gente veja conflitos e guerras e uma torre de Babel no planeta, talvez a gente esteja num momento quase miraculoso, a ponto de eu dizer para você agora que são 14h25min e, como muita gente tem iPhone, não sei como, a partir de um tempo, o horário que eu tenho passou a ser o mesmo do relógio da rua. Por exemplo, o meu computador, que é o mesmo telefone, marca 14h26min. Que horas está dando no seu aí?

OP – São 14h26min.

Maria – Quando isso passou a existir? A invenção do relógio de Sol, que tem milhares de anos, dizia se estávamos no começo do dia, no pico ou no fim. Mas hoje a gente compartilha um tempo que a gente combinou de compartilhar, e as estruturas da vida (“Lebensform”, as formas de vida) são profundamente ancoradas em sistemas de significação, de ação, de normas e de regulação muito profundos, muito arraigados, muito estabelecidos. E, para mudar isso, é século para cima. Por exemplo: misoginia, homofobia, patriarcalismo, racismo, capitalismo, comunismo, essas coisas que a gente anda discutindo. Para mudar, para tentar pensar sobre como seria uma relação com o outro de uma forma mais humana, vamos colocar décadas. Então, quando a gente fala “ano novo, vida nova”, é um delírio. “Resetar” é pensamento mágico e transformar é difícil. É impossível? Não. Não estou com discurso cético-conservador de que vai ficar tudo no mesmo lugar inercial. Não. Eu trabalho com a transformação, com pessoas que estão num momento de angústia diante de um “setting” de vida que elas próprias construíram para si, consciente ou inconscientemente, querendo ou não, com mais ou menos atividade, com mais ou menos facilidade. Eu vou falar: dá pra transformar? Sim. Custa caríssimo, e, atualmente, estou achando que é para poucos. Não que a análise seja elitista. Mas você vê que tanta coisa acontece no Brasil, vai fazer pesquisa e o que vê: eu votaria no mesmo lugar. É uma trabalheira, é dificílimo. A nossa tarefa é hercúlea.

OP – O que acha que incorporamos de 2020 e de uma vida sob pandemia? Há um corte temporal, social, cultural, afetivo que foi dado ano passado?

Maria – Sim, acho que 2020 é um corte. Estamos numa dupla conjuntura historicamente inédita. Primeiro, estamos sob ameaça, e estamos significa todo o planeta. Nunca nenhuma pandemia foi tão rápida no seu espraiamento. É uma vivência coletiva de uma ameaça viral que pode eventualmente ser letal. Segundo ponto: a única coisa para lidar com isso, já que o vírus se espalha muito rápido, é a gente espalhar menos. A gente é obrigada a duas coisas: viver sob contenção e sob relação controlada, o que já pode, para alguns, parecer um aprisionamento, um enjaulamento. E, segundo, obriga a uma hiperconvivência, seja com você mesmo ou com aqueles com os quais você partilha esse espaço, que é o da sua vida. A gente tem esse problema, mas a gente continua a nossa vida. Foi uma dupla transformação que se colocou em jogo em 2020 e que faz necessariamente você ser obrigado a olhar quem é você e como você estava vivendo a sua vida.

OP – Em seu livro mais recente, “Lupa da alma”, você fala em “quarentena-revelação”. O que se revelou nesse processo de crise sanitária e coletiva?

Maria – A “quarentena-revelação” é quem somos nós e como vivemos em várias camadas, tanto individual quanto familiar, a relação do trabalho, sociabilidade, os amigos, a vida civil. E aí vai indo em espirais ascendentes e termina no planeta, a ideia do coletivo, o ecossistema, o ambiente, a natureza, a relação com os animais. Como a gente vai lidar com essas esferas da vida? Você pode pensar que eu quero voltar ao normal. A lógica nossa, inercial e reacionária, é profunda. Essa ação implica uma reação que é de retorno, nostalgia de retorno, de volta à norma. Pode ser? É uma maneira de você enfrentar essa angústia. Outra maneira, que eu acharia mais interessante, é suportar a pergunta: como é que eu vivo? E como é que eu quero viver? Como é que a gente vive e como é que a gente quer viver? Você tinha dúvida de que existia racismo e que isso mata? Que a polícia no Brasil é uma das que mais mata e que mais morre? Que mais gente mora na rua e que a desigualdade é um problema? Que a gente vota mal e estuda mal? Que a gente aprende mal, que fala mal e que debate mal? O que a gente vai fazer com tudo isso? Por que 2020 é um marco? Porque é como se fosse um caldeirão fervendo da vida e as operações de recalque em atuação. Põe debaixo do tapete, põe na caixinha de Pandora, deixa eu correr que eu tenho que trabalhar, tenho matéria, tenho academia, tenho balada, tenho boteco e tal. Quando todas as estratégias de aceleração e de anestesia da vida são refreadas, o que temos é o retorno do recalcado. Dois mil e vinte foi a grande explosão do retorno do recalcado. É interessante? Sem dúvida. Sem tirar as operações de repressão a gente não sabe nada, a gente está muito mais alienada. Acho muito interessante. Pode doer? Claro. Mais violência, mais compulsão, mais alcoolismo, mais feminicídio, mais droga, mais solidão, mais suicídio. Engordou mais, entrou na loucura, bulimia, anorexia, colesterol... Tudo bem, tudo bem. Para, não se mata. Está na beira do precipício, como é desenhada a paisagem. A partir daí temos um ponto de multiencruzilhada em que a gente fala: opa, vamos ver como a gente quer viver, acho que pode ter dado uma acelerada no processo histórico. Vamos tentar voltar porque temos defesas que são sempre de retorno, nostalgias do passado, que a gente tende a fetichizar, como a volta do AI-5, “por favor, ordem, mesmo com violência, mesmo com autoritarismo”. É a nostalgia de um passado fetichizado, repito. Mas, ao mesmo tempo, a gente, apesar das defesas, é obrigada a encarar mais a realidade, mesmo da morte, mesmo do adoecimento, da injustiça.

OP – E o que devemos fazer com tudo isso, com essa grande pergunta?

Maria – Acho que se todos trabalharmos nessa mesma direção, vai ser menos caótico. É o trabalho sem parar na direção do enfrentamento da realidade. Acho que se a gente está sofrendo de algo agora, é de muitas camadas de fantasias, muitos véus, que 2020 rasgou. Então aproveita que está doendo, chama-se realidade e sem ela você não muda de fato.

OP – A quarentena também evidenciou desigualdades. “As formas de viver e de adoecer” são diferentes, você escreve. O que ficou mais exposto?

Maria – Primeiro, há uma forma de poder olhar a diferença e até a desigualdade, vamos dizer assim. Acho que a gente não precisaria ser igual... Não é que a gente não precisaria, não somos iguais. A gente é uma matilha de mamíferos que se chama humanos e, como numa floresta, não tem um igual ao outro. Mesmo da mesma espécie, cada um vai desenvolvendo aquelas proteínas que vai gerar aquela vida. Não é que eu diria que o melhor conceito é o de igualdade, mas, ao mesmo tempo, temos a equivalência, equidade, igualdade de condições. Agora, a gente está podendo ter mais consciência de que a gente não parte do mesmo lugar, acho que não há mais muito debate quanto a isso. Mesmo os discursos atuais de meritocracia também estão ficando menos ingênuos. Claro que é interessante o conceito de mérito, mas os pontos de partida são diferentes. E a liberdade também é um conceito interessante, liberdade de pensar, de ir e vir, de ter e de não ter, de gozar e fazer o movimento que quiser, a família que quiser. A discussão sobre a lógica liberal e as liberdades individuais e coletivas têm um eterno problema de confronto estrutural. Não dá para um ser plenamente livre, é logicamente impossível, assim como na floresta nenhuma árvore pode ter sozinha todo o espaço e toda a água para ela, do contrário ela morre também. Ela precisa da presença da outra para ter menos calor, ficar mais fria, mais fresca. Há um equilíbrio do ecossistema grupal. Todas as discussões sobre justiça e injustiça, que é um conceito humano que envolve todos esses (igualdade, desigualdade, liberdade, direitos humanos, liberdades coletivas, distribuição, estado), todo esse debate é interessante e necessário, mas a gente precisa aprender a como fazer e em que linguagem. Sem dúvida não é na estapeação nem mandando matar. Acho que a gente precisa negociar. Os muito ricos talvez se dispusessem a abrir mão de uma parcela significativa de seu dinheiro, às vezes na casa dos bilhões, que é insignificante para a vida de um corpo humano, no espaço de uma vida. Não sei se eu quereria ter 180 cômodos na minha casa, não sei se isso me traria calor no coração. Talvez alguém com muito dinheiro quisesse, na roda da negociação, abrir mão de um tanto para falar “eu quero andar em paz na rua à noite ou de dia”. Assim como eu posso passear a pé em Londres, talvez eu queira passear a pé na minha cidade, e não só de helicóptero. Talvez eu goste de andar no calçadão e não posso, olhar o mar, olhar a praia, e não apenas em Cannes. Então, para que a mesa da negociação possa ser aberta, a gente precisaria achar uma linguagem. Será que a gente não faria isso de uma forma mais honesta? Isso é uma pergunta. A gente viu que a injustiça e a desigualdade são tais que as pessoas comem muito diferente, moram muito diferente e morrem muito diferente. Sem dúvida, um corpo mais velho, mais preto, mais pobre é mais estragado, mais frágil, mais vulnerável e morre mais cedo e com mais sofrimento. Tem dados para isso. Tem mais ou menos colesterol, mais ou menos amilase.

OP – Esse foi um ano em que a elaboração das perdas ficou bloqueada. Vivemos o luto incompleto. Qual o impacto disso?

Maria – É outro ponto da discussão: como fazer o luto de tudo que a gente perde? Da forma de vida, do entretenimento, de uma pessoa, da nossa própria rotina, do casamento, da relação com o filho, da capacidade de gerar um filho. Então, não sei se eu diria de uma forma assim tão simples que a gente não pode fazer o luto, porque o luto tem várias instâncias. Uma forma fundamental de fazer o luto é sempre psiquicamente elaborar a perda. A gente está elaborando lutos o tempo inteiro, a cada momento que a gente vê que perdeu um amor ou que ganhou três quilos. Está perdendo alguma coisa que fazia parte do eu na imagem do eu e do ecossistema da rede, da teia de relações que colocam aquele eu naquele lugar. A gente precisa estar de corpo presente num ritual funerário específico? Talvez ajude, mas não sei se é o fundamental. Às vezes a gente vai lá, faz toda a cena e não elabora, não subjetiva aquela perda. Acho que, em relação tanto à morte, à perda e ao luto, a gente precisaria tirar um tabu que pesa sobre isso. Assim como a gente deveria falar mais honestamente sobre desigualdade ou injustiça e relações de poder, a gente deveria desfetichizar, e tirar do lugar de não poder falar, a morte e a perda. E, claro, o corpo, o sexo, o gozo, sobre os quais a gente fala muito, mas menos do que talvez pudesse falar ou fazer. Falar menos e liberar mais. Ainda continua sendo tabu. Quais os grandes tabus da nossa cultura no século XXI e no ano de 2021? Acho que vale a pena se perguntar sobre isso também.

OP – Qual o custo psíquico que tem essa falta de fronteira entre casa e trabalho, público e privado, dentro e fora?

Maria – É uma pergunta interessante porque não tem uma resposta única. Sendo didática e simplificando a realidade, que é plural, em duas grandes categorias, eu diria que existem aqueles que dizem assim: nossa, me faz falta esse encontro com o outro, eu quero ir pra balada, tanto que agora a gente tem essa categoria de “festa clandestina”, o bar, o baile, o shopping, o ato de comemorar, comprar, passear, ir à praia. Tem toda uma forma de viver que se organiza nesse encontro contínuo com o outro (em meio à pandemia). Talvez, uma hipótese, para escapar do encontro consigo, que traz mais angústia. Tem um outro grande grupo, que é quase o contrário disso e eu colocaria noutro extremo, que diz: ainda bem que estou livre do embate contínuo com o outro. Só aqui, nesta análise, para você, eu posso confessar que ainda bem que eu não tenho que ir para aquele escritório, ver aquelas pessoas, posso ficar trabalhando em paz da minha casa, não preciso ir para a escola, não preciso ir para a faculdade, não preciso daquele monte de evento social, ainda bem que estou em descanso. Porque o grande embate não é consigo próprio e com uma certa solidão, o embate é no trato contínuo com esse outro. É cansativo, é demandante de energia real e subjetiva. Eu diria que há esses extremos, e a gente pode se orientar, se colocar e descobrir qual é a cota de outro que você sustenta, que você suporta ou que te faz bem. Acho que um termômetro interessante para o futuro é cada um saber o quanto de sol quer tomar que faz bem para você. Vai se esturricar? Talvez não. Mas nem um solzinho, nem aquele sol que é saúde? Do mesmo modo, quanto de alteridade você quer pôr na sua vida e com qual grau de proximidade? Vai tirar a roupa? Vai deixar jogar os fluidos que quiser, as penetrações que quiser, as palavras que quiser? Vai deixar ela bem longe? Vai fazer um trabalho de números e planilhas? Ou vai fazer um trabalho a partir de lágrimas e presença? Qual é o grau de proximidade e a constância de encontro com que você vai organizar a sua vida? Afinal, qual é o “quantum” de outro que você gosta? Qual é o tanto de sal na sua cozinha?

Currículo

MARIA Homem é psicanalista e pesquisadora do Núcleo Diversitas, da Universidade de São Paulo (USP). Também é professora da Faap. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII, Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP 

Livros

A CONVITE da editora Todavia, escreveu "Lupa da alma, a quarentena-revelação", na qual trata dos efeitos da pandemia na vida social e subjetiva, do âmbito coletivo ao individual, passando por amor, sexo e política. Maria Homem também é autora de "No limiar do silêncio e da letra", sobre a obra de Clarice Lispector 

Lives

DURANTE a quarentena, destacou-se por participar de inúmeras lives sobre o cruzamento entre psicanálise e filosofia no tratamento de temas como luto, doença, desamparo e outros assuntos relacionados ao enfrentamento da realidade pandêmica

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