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Marcelo Alcantara: "Matéria prima do elmo é solidariedade"
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Marcelo Alcantara: "Matéria prima do elmo é solidariedade"

Idealizador do capacete de respiração assistida que foi desenvolvido em tempo recorde fala sobre os bastidores da criação do invento cearense que está ajudando a salvar vidas
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Marcelo Alcântara, superintendente da ESP. Fachada e espaço interno da Escola de Saúde Pública (Foto: Aurelio Alves/ O POVOS)
Foto: Aurelio Alves/ O POVOS Marcelo Alcântara, superintendente da ESP. Fachada e espaço interno da Escola de Saúde Pública

Isolado dentro de casa em um dia de semana, Marcelo Alcantara foi entrevistado pelo O POVO enquanto convalescia de Covid-19. A doença que ele ajudou a combater enquanto se debruçava sobre o Elmo, mecanismo de respiração artificial não invasivo em forma de capacete que pode ser aplicado em pacientes considerados de baixa e média complexidade.

Dono de uma mente inquieta, a qual o levou a atuar em diversas áreas, o médico, professor, superintendente da Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP-CE), empresário, inventor, pai de quatro filhos e tricolor narra situações que ocorreram no processo de invenção de um equipamento 100% cearense, feito por muitas mãos talentosas que trabalharam para auxiliar o Ceará em um momento de carência de insumos durante a pandemia.

O capacete de respiração assistida rende, por si só, muitas histórias. Momentos de tensão, emoção, alegria e humor fizeram parte da escrita desse livro imaginário escrito com as tintas da inovação e da tecnologia acessível. Algumas são contadas aqui.

A história continua: para auxiliar os irmãos amazonenses que precisam de tratamento, o Elmo foi levado a Manaus no fim de janeiro, junto com uma equipe para treinar multiplicadores. É mais um cearense que ganha o mundo.

O POVO - Qual foi o dia no qual você percebeu que a situação da pandemia era gravíssima aqui?

Marcelo Alcantara - Em março, quando foi divulgado o primeiro caso em Fortaleza. Confesso que naquele dia me bateu um pânico, porque havia o risco real do sistema de saúde colapsar completamente, caso medidas muito duras de gestão não fossem tomadas. O governador, o secretário da Saúde e a ESP, como autarquia vinculada à secretaria, tomaram decisões muito arrojadas. O maior exemplo foi montar um hospital do zero, exclusivamente para pacientes com forma grave da Covid-19, caso do hospital Leonardo da Vinci, que até então não existia para o Sistema Único de Saúde. Salvou milhares de pessoas. Isso precisa ser muito bem reconhecido pela sociedade.

O POVO - O que o governo estadual poderia ter feito melhor, até agora?

Marcelo Alcantara - Em primeiro lugar, tenho uma crítica muito forte ao governo federal, o qual, até o momento, tem dificuldades extremas de lidar com a crise sanitária. Se o líder da nação, que é o presidente da República, não dá o exemplo, como outros líderes, seja de direita ou esquerda, fica difícil. Porque há uma fatia considerável da população que vai seguir as suas ideias. No âmbito estadual, acho que o governo acertou bastante. Se acho que pode melhorar? Claro, temos muitas fragilidades. Quando a pandemia veio, ainda estávamos montando o sistema de regionalização [do sistema de saúde] e criando a Fundação da Saúde, que vai fazer uma gestão mais modernizada. A pandemia pegou o processo na transição. Talvez, se estivéssemos mais adiantados, o enfrentamento teria sido melhor. O sistema de regulação precisa ser melhorado. Precisamos de um choque tecnológico e científico, algo que ainda está em processo. A pandemia até acelerou algumas coisas.

O POVO - Sua mãe [a médica pneumologista Márcia Alcantara] teve um papel importante na ciência médica do Ceará. Ela te inspirou a fazer medicina?

Marcelo Alcantara - Minha mãe foi uma inspiração ao longo da minha vida inteira, desde criança. Eu acompanhei minha mãe na época que ela descobriu uma doença que não era ainda descrita no Ceará, que foi a silicose. A doença acometia os cavadores de poços na Serra de Ibiapaba e teve contato com um paciente de lá, na condição de médica investigadora do Departamento de Pneumologia do Hospital de Messejana. Escolhi a medicina e decidi seguir a carreira muito por influência dela. Também fui muito influenciado pela literatura. Tínhamos em casa uma ampla biblioteca, e esses livros me abriram o mundo para várias coisas, incluindo a medicina, que é uma profissão abrangente, pois cabe tudo dentro dela, no sentido do conhecimento. Vai desde o conhecimento biológico, físico e químico, até à psiquiatria, passando pela epidemiologia e a tecnologia de ponta, que sempre me fascinou. Voltando a falar de minha mãe: ela é minha luz até hoje. Trabalhamos juntos na clínica privada. Ela me ajudou a ter uma mente curiosa e disposta a novas ideias. Minhas áreas de fascinação são a saúde e a educação. Ambas podem transformar o mundo para melhor.

O POVO - Por falar em novas ideias, como foi o dia de idealização do Elmo?

Marcelo Alcantara - Foi muito legal, vale uma historinha rápida. Estávamos na primeira semana de abril, mais uma daquelas tardes sofridas, logo no início da pandemia aqui, e aí recebo uma mensagem da Funcap. Era Jorge Soares, professor de inovação, pedindo pra gente articular uma reunião entre vários entes. Por eu ser pneumologista, veio a calhar de estar numa função gestora e ser especialista numa área de ventilação mecânica. Se você se lembra das manchetes da época, elas diziam que não tinha respirador no Brasil, e o mesmo problema acontecia no mundo inteiro. Me formei em 1992 e estudo isso [ventilação mecânica] desde a universidade. Fiquei pensando: "Rapaz, qual a solução que vamos encontrar aqui para a falta de respiradores?". Várias ideias foram colocadas na mesa, que reunia o pessoal do Senai, Fiec, Unifor e UFC. Só os dirigentes máximos dessas instituições participando. Colocou-se uma ideia de um respirador. Olhei aquilo e coloquei um X em cima dele e disse: "A gente jamais vai conseguir fazer um respirador mecânico. Não estamos conseguindo nem fabricar máscaras suficientes, quanto mais isso! Vamos olhar o que será possível fazer". Aí eu exibi a figura de um paciente nos EUA que em 2016 usava um capacete para auxiliar a respiração em um quadro grave de insuficiência respiratória parecido com a Covid. Em mais da metade dos casos, o dispositivo prevenia a intubação. Coloquei isso na tela e o pessoal ainda tava chateado comigo porque eu fui taxativo em dizer que não daria para fazer respirador (risos). Mas eles aceitaram a ideia porque o capacete permite que o sujeito continue respirando normalmente. Ele gera uma pressão ao redor da face, veda tudo. A pessoa pode tossir dentro do capacete que não contamina o ambiente, e essa questão era muito importante. Além disso, o Elmo consegue com que metade dos casos não precise de intubação, respirador e nem mesmo UTI, que era o que estava faltando na época. O Elmo é um capacete cearense com uma tecnologia que nem é tão sofisticada.

O POVO - E depois dessa reunião de conceito, como foi o processo de criação?

Marcelo Alcantara - Depois que dei a ideia de como seria, o nome veio algumas semanas depois. Sugeri Elmo, que é capacete em português, do inglês helmet. Depois disso seguimos o roteiro da inovação, tecnologia e da ciência. Fizemos o passo a passo com muita dificuldade. Criamos um laboratório com pessoas de várias formações, como fisioterapeuta, engenheiro e por aí vai. Algumas dessas pessoas inclusive adoeceram no meio do caminho. É importante falar dessas personalidades heroicas e o quanto elas se doaram. Ainda bem que ninguém adoeceu gravemente e teve de ser internado, apesar de ter sido por muito pouco. No fim de junho, aí sim, depois de testar mais de nove modelos, chegamos em um que dava para seguir adiante para o teste clínico. Levamos para o Hospital Leonardo da Vinci e fizemos o teste em dez pacientes para a prova de conceito, ou seja, para saber se de fato o capacete fazia o que se propunha. Resultado: ele se deu muito bem e os pacientes gostaram. Dos dez, sete melhoraram e não precisaram de intubação. Houve conforto e aceitação do equipamento por parte dos pacientes e profissionais. Houve resposta de oxigenação e assim por diante. O trabalho inclusive já está sendo publicado no meio científico. A Esmaltec se apresentou como empresa capaz de fazer a produção industrial e ela foi atrás de toda a documentação da Anvisa, por meio dos resultados dos testes clínicos obtidos pelo equipamento. Dezenas de pacientes no Ceará já usaram o Elmo, o que é muita coisa, porque esses pacientes eram considerados casos graves. Então imagina aí que metade se beneficiou e não precisou de intubação.

O POVO - Como está sendo a utilização do capacete no SUS, em outros estados?

Marcelo Alcantara - O Elmo é um modelo de inovação público-privado, no qual o setor público entrou com a ideia e a expertise e o privado, com a parte de produção industrial e comercialização — a viabilização, portanto, da execução do processo. Já foram doados ao SUS vários capacetes pelo Sistema Senai Fiec e eles já estão sendo usados nos hospitais públicos. O setor privado vai adquirir esses equipamentos porque eles são relativamente baratos. Claro, o equipamento ser barato não significa que ele dispense treinamento para a utilização correta, pois qualquer dispositivo novo demanda uma equipe muito bem treinada e que saiba usar. Existe um site e nele qualquer pessoa pode comprar o Elmo, que está em torno de R$ 1,2 mil ou algo assim. Ele precisa de alguns acessórios, coisa que os hospitais geralmente têm. Comparado a um equipamento mais sofisticado de UTI, ele é barato demais. Uma única dose de antibiótico no hospital pode custar esse valor aí. O site mostra detalhes do Elmo, que tem registro de patente e direito de propriedade, mas é claro que outras pessoas podem desenvolver capacetes similares a partir de ideias próprias. É o que se chama de avanço tecnológico e isso ninguém controla. A matéria-prima do Elmo é a solidariedade, mais do que qualquer outra coisa. Todas as pessoas que se envolveram nisso, o fizeram gratuitamente. Só depois conseguimos um financiamento via Funcap, Secretaria de Saúde e Senai. Mas no início, foi todo mundo trabalhando no sangue e no amor.

O POVO - Quais os estados já demonstraram interesse em adquirir o equipamento?

Marcelo Alcantara - O sistema Senai Fiec, por ter uma capilaridade muito grande, está disseminando essa informação, e nós também, da ESP, estamos divulgando. Os estados que se mostraram interessados, até agora, foram a Paraíba, Espírito Santo, São Paulo e Amazonas, além de demandas no Exterior, como as de Portugal.

O POVO - Por falar no Amazonas, vi em sua rede social uma postagem com críticas ao ofício enviado a esse estado pelo Ministério da Saúde. O que te motivou a postar isso?

Marcelo Alcantara - A postagem é a defesa da ciência, só isso. Acho que a verdade científica deve prevalecer e guiar os gestores, que têm uma obrigação moral e técnica de seguir a verdade científica. Fico muito triste quando isso não acontece. À medida que a verdade científica vai sendo publicada, divulgada e debatida com serenidade, sem essas polarizações ideológicas identitárias absurdas que estão fazendo atualmente com a pandemia, a gente vai andando no bom caminho. Infelizmente, não é o que está sendo feito no Brasil. Há uma carência de um diálogo embasado na ciência e na tecnologia. O ofício que motivou minha postagem falava de tratamento precoce e preventivo para a Covid-19. Isso poderá até um dia ser verdade científica, claro, não estou dizendo que não, até faço votos de que seja. O problema é que, atualmente, não há evidências que seja eficaz. Tomara que um dia descubramos um tratamento precoce, assim como foi para a influenza, que é a gripe: assim que a pessoa adoece, ela toma um comprimido de oseltamivir, que é a droga que previne a evolução da doença para casos mais graves. Infelizmente, para Covid-19, não há isso ainda. Quem fala em tratamento precoce ilude as pessoas e passa uma falsa mensagem e isso é pior quando vem de um gestor, seja municipal, estadual ou federal. Também é péssimo quando quem espalha a mentira é um líder de opinião. Fico preocupado quando vejo colegas médicos, que são pessoas intelectualmente capazes, alguns até renomados, difundindo mensagens como essas.

O POVO - Como o senhor responde nessas situações de colegas espalhando notícias falsas?

Marcelo Alcantara - A medicina está, por si só, dando uma resposta maravilhosa. Temos feito um trabalho excepcional, os profissionais da linha de frente estão trabalhando como heróis, e todos estão exaustos com tanta carga de trabalho e de risco. Apenas uma fatia de profissionais espalha fake news mas infelizmente, é uma fatia bem influente. A classe médica sempre foi uma classe de destaque na sociedade, desde os tempos clássicos da história, e temos uma responsabilidade muito grande. Quando usamos as mídias sociais ou os meios de comunicação para passar uma mensagem, é muito provável que seremos ouvidos, então a nossa responsabilidade aumenta. Tento divulgar a ciência em primeiro lugar, combatendo as fake news e dizendo que é mentira. A gente tem que ter coragem, não é mais momento de se esconder. O momento é de se posicionar. Eu, pessoalmente, me engajo nos movimentos que buscam combater esse fenômeno social.

O POVO - Mudando radicalmente de assunto: como está o seu coração tricolor, doutor?

Marcelo Alcantara - Preocupado! Estamos mal, né? O time precisa acordar, senão no ano que vem, vai jogar na série de baixo. Eu sempre fui muito ao estádio, levava meus filhos, mas acho que agora perdeu a graça com esse VAR. Acho que tirou boa parte da emoção, o bom era gritar na hora que saísse o gol, mesmo que tivesse erro. Sou contra esse negócio de VAR medir um milímetro de impedimento.

O POVO - O senhor está reclamando da tecnologia, doutor?!

Marcelo Alcantara - Ah, mas aí exageraram a dose, tiraram um tanto do tempero do futebol.

O POVO - O que o senhor está fazendo para espairecer nestes tempos de pandemia?

Marcelo Alcantara - Eu gostava muito de ir a restaurantes, antes da pandemia, mas agora parei tudo. Estou indo mais aos passeios ao ar livre ou fico mesmo na leitura, que me preenche muito, assim como a música e os filmes.

O POVO - O que o senhor está lendo?

Marcelo Alcantara - "Absalão, Absalão!", de William Faulkner. É uma história fascinante sobre o Sul dos Estados Unidos e tem temática racial e histórica. E também estou envolvido com séries. Estou acompanhando uma série francesa chamada "La Revolución". O curioso é que comecei a assistir sem saber que se tratava de um enredo com pandemia. Nesse caso, ela acontece em plena Revolução Francesa. A história é cheia de metáforas, fala da classe nobre e da plebeia durante uma pandemia. Em relação à música, tenho acompanhado algumas lives. Gostei muito da do Caetano, que tá envelhecendo de uma maneira brilhante, tocando junto com a família. Outra muito boa foi a dos Paralamas, bateu uma nostalgia.

O POVO - O senhor está com quantos anos mesmo?

Marcelo Alcantara - 52 anos. Cearense legítimo, nascido em Fortaleza, pai engenheiro agrônomo nascido na região do açude Castanhão. Minha mãe também é de Fortaleza. O traço que temos em comum na família é o gosto pela leitura e pela escrita. Isso desde os tempos do meu avô.

O POVO - O senhor pensou em escrever um livro? Sobre o que escreveria?

Marcelo Alcantara - Meu sonho é ter um ano sabático, poder sentar e escrever muito sobre o ano de 2020 e o começo de 2021. Nunca vivi tantas emoções na minha vida! Uma das maiores emoções que eu tive — essa história já foi publicada no O POVO, inclusive — foi cuidar de um colega, o dr. Weiber Xavier, que foi para a UTI com Covid. Quando soube que ele estava mal, peguei um Elmo, o único que eu tinha na minha casa, pois era um protótipo, e o encontrei em um domingo à noite na UTI. Eu mesmo instalei o equipamento nele, porque as condições dele realmente eram sérias e inspiravam cuidados. Fiquei ao lado dele, em claro, uma boa parte da noite, esperando ele dormir e checando se ele melhorava ou piorava. Foi uma história com final feliz, porque ele melhorou. Ele estava no grupo de pacientes que responderam ao tratamento. Vê-lo ativo e vivo foi algo que marcou a minha vida. Somos amigos de longa data, contemporâneos na medicina da UFC. Ele é uma pessoa que admiro. Tanta história triste que a gente viu nesta pandemia, não é? Essa foi feliz.

O POVO - O senhor pode falar alguma dessas histórias?

Marcelo Alcantara - Situações de pessoas próximas doentes — aliás, eu mesmo doente. Fiquei preocupado e com medo de ser hospitalizado e intubado, já que na minha faixa etária e por ser homem, o risco é maior. As histórias de colegas pegando a Covid e ficando entre a vida e a morte foram muito difíceis e elas aconteceram bastante. Um outro colega teve dificuldade, foi intubado e quase morreu. Passei um mês indo visitá-lo no hospital. A Covid é uma doença que desmonta a estrutura da gente.

O POVO - Para terminar esta entrevista: o que o senhor faria se não fosse médico?

Marcelo Alcantara - Boa! Hoje em dia, gostaria de ser escritor, porque deve ser muito bom fazer com que as palavras levem novos mundos às pessoas. Mas eu precisaria de muito tempo e leitura.

 

Perfil

MARCELO ALCANTARA é graduado em Medicina pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com residência médica e doutorado em Pneumologia pela Universidade Federal de São Paulo. É professor associado de Terapia Intensiva e Pneumologia do Departamento de Medicina Clínica da UFC

Descoberta

O CASO da descoberta da silicose no Ceará foi descrito no livro "Poço", narrativa em forma de romance escrito pela médica Márcia Alcantara, mãe de Marcelo.

Tecnologia

MARCELO Alcântara é o criador e desenvolvedor do simulador virtual de ventilação mecânica, o programa xlung, voltado especificamente para o ensino do tema a estudantes e profissionais de saúde. A empresa de mesmo nome desenvolve softwares e aplicativos para smartphones na área de ventilação mecânica.

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