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Falta de perspectiva: a maior crise que o Brasil poderia passar
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Falta de perspectiva: a maior crise que o Brasil poderia passar

O fundador da Central Única das Favelas e CEO da Favela Holding, Celso Athayde, defende transferência de renda para movimentar a cadeia econômica nas favelas
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Celso Athayde (Foto: divulgação)
Foto: divulgação Celso Athayde

 

 

Fome, desemprego, desalento... As dificuldades enfrentadas por muitas pessoas que vivem em situação de déficit de serviços públicos básicos, foram as mais variadas. Nos piores momentos da pandemia, chegamos ao ponto de decisão. Era preciso formar uma corrente positiva que fosse em prol dos pobres moradores de favelas. Foi isso que evitou que o Brasil enfrentasse o que de pior poderia acontecer, a falta de perspectivas com o futuro. A reflexão acima é do fundador da Central Única das Favelas e CEO da Favela Holding, Celso Athayde.

Em entrevista exclusiva ao O POVO, Celso defende um Brasil com menos desigualdade, capaz de dar suporte aos que ainda precisam crescer e de mais respeito com quem vive nas favelas. Ex-morador de rua e forte ligação com favelas cariocas, chegou a passar fome durante os seis anos em que viveu na rua. Apesar de ter em sua história período em que defendeu posturas revolucionárias, hoje ele não acredita que se vá eliminar o fato de que existem os que ganham mais e os que ganham menos, mas é preciso que haja harmonia entre a favela e o "asfalto", para que a reprodução das históricas desigualdades brasileiras que tanto atrasam a construção de um país rico e desenvolvido sejam superadas.

Ao responder sobre o que almeja, simplifica: que todos tenham uma vida digna. "Podemos viver num país em que o filho dos dois sonhem com a mobilidade social, em que o fato de ser porteiro não me faça passar fome por isso, ou morar numa favela tenha que ser chamado de carente, pois eles são profissionais!"

Para Celso, a favela produz muito conhecimento, muitas ideias, mas que acabam não sendo transformadas em negócios, pois falta networking, alguém que viabilize. "Nenhum favelado fala que é empreendedor, mas que ele se vira, dá seus pulos, mas, na prática produz e empreende por necessidade." Com mais empreendedorismo na base, ele acredita que seria possível aproximar os jovens das favelas da realidade de negócios, tornando viável que "nossos filhos não sejam coadjuvantes do 'asfalto'".

Em 2015 ele deixou o comando da Cufa para o cearense Preto Zezé, mas ainda trabalha como voluntário para a Central Única das Favelas e é empreendedor no Favela Holding, que hoje conta com mais de 20 empresas e que trabalha fomentando esse ecossistema. "São vários negócios, todos eles localizados em favelas e os favelados na condição de sócios", explica.

O POVO - Como foi o início da trajetória de Celso Athayde?

Celso Athayde - Eu sou do Rio de Janeiro, nascido em uma favela chamada Cabral, num bairro chamado Olinda, localizado na cidade de Nilópolis, que é a mesma da escola de samba. Eu saí dessa cidade quando tinha seis anos de idade e meu irmão tinha sete anos, quando meus pais se separaram. Meu pai era alcoólatra, minha mãe também e brigavam todos os dias... brigas sangrentas. Até que ela resolveu sair de casa. Por isso, meu irmão e eu fomos morar na rua. Eu imaginei que minha mãe voltaria para casa no dia seguinte ou, no máximo, na semana seguinte em função da realidade que é a rua. Essa relação é um limite que só é transposto pela morte. Aquele cheiro (da rua) era horrível e, por mais que a gente fosse pobre, a gente tinha um teto, um barraco para ficar. E a rua tinha um cheiro horrível, mas que no segundo dia já não era mais tão horrível assim. O cheiro no outro dia até que dava pra levar. Até que uma semana depois aquele era o meu cheiro. E aí você passa a fazer parte daquilo.

Durante seis anos eu morei na rua, vivendo de pequenos furtos, sendo pedinte e, de certa forma, até vendendo algumas coisas que conseguia na rua. Depois fui morar num abrigo público, chamado Pavilhão de São Cristóvão. E, por fim, aos 14 anos, voltei a morar na favela, a Favela do Sapo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Fiquei ali, trabalhando numa rinha do tráfico, que não era uma rinha de galo, mas de gente, em que lutavam apostado. E depois de tanto apanhar, resolvi servir cafezinho nessa rinha.

O tempo passou e eu passei a empreender, vendendo limão na feira, praia, trem, ônibus, refresco no Maracanã. Era de época, se tivesse chovendo vendia guarda-chuva, se tava sol, vendia suco. Eu volto para Madureira para ser camelô e também era o meu reencontro com o bairro em que eu passei seis anos morando na rua, debaixo do viaduto. Me tornei "empresário" naquela época também, "sócio" de duas grandes marcas, Adidas e Nike - eles nunca souberam disso, inclusive... Fui pirateiro mesmo. Ia a São Paulo, comprava malhas para minha mãe e a gente montava as peças. Depois eu lancei uma festa, debaixo daquele mesmo viaduto para entreter os camelôs em momentos festivos.

 

" E a rua tinha um cheiro horrível, mas que no segundo dia já não era mais tão horrível assim. O cheiro no outro dia até que dava pra levar. Até que uma semana depois aquele era o meu cheiro"

 

O POVO - Qual foi o momento da virada?

Celso Athayde - Nessa época, meu irmão foi assassinado, mas continuei tocando aquilo, que se transformou num baile de charme. Passou o tempo e eu quis ser revolucionário. O baile de charme era bacana, mas a lógica era que os pretos dançassem de forma harmoniosa e não brigassem, como se a briga fosse a nossa principal característica. Então eu quis fazer essa revolução, coisa que tinha aprendido na época do Bagulhão, que era o traficante da favela onde foi fundado o Comando Vermelho e era a favela onde eu morava. Aquelas pessoas, no começo, tinham a ideia de revolução, de ouvir falar de Tolstoi, de Guerra e Paz, embora não tivesse lido, um inspiracional de revolução, que me fez deixar de trabalhar com o charme e ir em direção ao rap. Formamos um grupo e lançamos muitas bandas, passamos a empresariar outras várias, como MV Bill, Racionais MCs.

Passou o tempo, eu fui crescendo e passei a não querer mais ficar restrito ao discurso do rap, mas fazer uma revolução de fato, pois até ali, a gente era conhecido como os pretinhos que protestam. Mas eu queria ficar conhecido como o preto que realiza. Se precisasse rever todos os meus conceitos, saber onde eu precisava mudar, que eu fizesse isso, porque assim não estaria apenas criando uma indústria da denúncia sem propor ou solucionar absolutamente nada. Então montei a Central Única das Favelas (Cufa), que começou debaixo desse viaduto, em Madureira, e começamos a expandir para o País inteiro e depois para o mundo. Hoje estamos em mais de 20 países com representações. Esse é o Celso, que foi transformando sua realidade sem pensar, que na rua não tinha um business plan para saber o que fazer no dia seguinte sequer. Acordava e procurava o que fazer e venho seguindo essa mesma lógica: não sei para onde ir ou o que fazer, mas faço aquilo que o sentimento e as circunstâncias vão apontando.

 

 

Favelas

O POVO - Sobre essa vida de construção diária, como o senhor observa o desenvolvimento da Cufa, sua importância para as comunidades hoje e o caminho até esse status?

Celso Athayde - Quando eu resolvi criar a Cufa, via o movimento no Rio de Janeiro e de outros locais - após ter viajado o País inteiro com os Racionais MCs, mas ainda não tinha um pensamento sobre o conjunto da obra. Eu não sou um engenheiro ou arquiteto com uma planta, mas vou pegando tijolinho por tijolinho que estão ao meu alcance e vou construindo baseado no que eu estou vendo. É muito mais por instinto. E a Cufa foi se formando desse jeito, de juntar as pessoas do hip hop e a partir disso mais pessoas viriam, com novas ideias que oxigenam os nossos propósitos. Hoje ainda é assim, o que mudou foi a escala, mas continuamos cada dia tentando entender e, talvez, possamos comparar o crescimento da Cufa com um jogador que começou treinando na escolinha, em que quando acaba jogando uma partida do time principal, toma um susto, mas é um processo natural, pois foi preparado para aquele momento.

E olhando esse processo, vejo o quanto a gente conseguiu construir, como quando chegamos em Nova York para assumir três cadeiras na ONU, compreendemos que conseguimos bastante coisa ao ponto de ser reconhecido nesse lugar por essas pessoas. Nós termos uma sede da Cufa no Bronxs, com 6 mil m². Lembro do tempo em que não tinha uma casa para morar, mas hoje temos um espaço físico institucional, onde agregamos uma série de valores internacionais, formamos gente, qualificamos gente em inglês. Sentimos que é como um milagre operado todos os dias. A Cufa se tornou um grande movimento, a cada dia mais reconhecido pelo que faz e causando mais surpresa pela qualidade que entrega.

O POVO - O que o senhor considera como o trabalho mais importante da Cufa?

Celso Athayde - O que é fundamental da Cufa é formar, qualificar pessoas na base da pirâmide. Aceitamos ajuda dos intelectuais do "asfalto", que eu chamo carinhosamente de "asfaltistas", mas não queremos simplesmente reproduzir suas lógicas e suas narrativas, mas ser protagonistas da nossa história. E para isso a gente não pode abrir mão desses princípios que fazem com que a gente caminhe por um caminho mais longo por conta do déficit de formação, déficit cultural e outros déficits além, mas a única maneira da gente fazer direito é a gente começar fazendo. Nem que precise de 100 anos para fazer,. Nós já percorremos 25 anos.

Celso Athayde é fundador da Central Única das Favelas (Cufa) e atualmente é o CEO da Favela Holding.(Foto: Juan Cogo)
Foto: Juan Cogo Celso Athayde é fundador da Central Única das Favelas (Cufa) e atualmente é o CEO da Favela Holding.

O POVO - Havia uma desconfiança das grandes organizações em formar parcerias com as ONGs das favelas. Como a Cufa lidou com isso?

Celso Athayde - Existem tipos diferentes de ONGs. Existem as ONGs de favelas ou de periferias, que são coisas diferentes. Periferias são grandes espaços periféricos formados por bairros e favelas são espaços físicos onde vivem pessoas em desvantagem social, que estão nesses bairros. Às vezes as pessoas confundem e dizem que periferia é favela. Mas a periferia é sinônimo de subúrbio. A Rocinha, por exemplo, não fica na periferia, mas é uma favela localizada no bairro mais nobre do Rio, que é São Conrado. Já a Cidade de Deus, que fica na Zona Oeste do Rio, no bairro de Jacarepaguá, é uma favela que fica localizada na periferia, mas que naquele bairro não moram só pobres, mas ricos também.

Dito isso, existem dois tipos de organizações sociais. Aquelas idealizadas por quem se aposenta e quer utilizar todo seu conhecimento em alguma área. E outras são formadas por pessoas da base da pirâmide, que precisam dar respostas objetivas e rápidas para a realidade que está vendo e convivendo. São dois tipos de ONG: de empresas que fundam organizações com estrutura, financiamento, networking e que conseguem viabilizar recursos para essa instituição tendo o compliance dessas organizações sociais, tendo expressões das mais diversas. E existem organizações da favela, de pessoas bem intencionadas que formam crianças na oficina do marido aos sábados e domingos. Alguém que tem um salão de cabeleireiro e dá reforço escolar. São iniciativas de pessoas que não aguentam mais esperar ou ter todo conhecimento de mercado para realizar, pois estão numa situação em que elas reagem ou são abatidas.

E, portanto, fazem com certo grau de equívoco, mas no timing da necessidade daquele lugar e são verdadeiros heróis, que não realizam esse trabalho em busca de retorno financeiro. Isso só reforça o pensamento dessas empresas, que querem ter relação com organizações sociais, mas fica um gap entre as entregas que essas ONGs fazem com essa necessidade de mercado dessa relação de medição de impacto que essas empresas exigem. Então elas acabam viabilizando recursos para as ONGs que falam a linguagem do "asfalto", que falam os mais diversos idiomas, que têm modelo de gestão com lógica de gestão empresarial em que todos são do "asfalto", tanto as ONGs quanto as empresas que vem ajudar a favela não são da favela.

Acho importante, relevante e legítimo, porém eu acho que a revolução social só vai existir plenamente quando aqueles que sofrem as consequências da injustiça social reagirem e forem os protagonistas. Do contrário, serão os bem-sucedidos ajudando os pobres enquanto querem ou enquanto podem e, quando não quiserem ou puderem mais, param e nada terá mudado, porque, efetivamente, não foi passado o networking, não passou conhecimento e estrutura. Teria sido reproduzida apenas bondade, mas não qualificação e financiamento para essas pessoas, por isso algumas ações sociais são estéticas para manter o modelo (status quo) de uma forma mais carinhosa.

 

 

Desigualdades

O POVO- O senhor fala muito sobre essa relação da favela e do "asfalto" e vivemos em um país muito desigual. Como podemos analisar a relação entre a favela e o "asfalto" hoje?

Celso Athayde - Se você me pergunta como alguém de imagem pública, vou te dizer que tenho muita esperança que a gente resolva tudo isso o mais rápido possível e que caminhamos para o fim ou diminuição das desigualdades. Mas quando olhamos os números, vemos que houve uma diminuição da desigualdade no início do século até 2013 - e nem falo de épocas de governos, mas foi quando a periferia cresceu mais, a economia da favela alcançou R$ 119 bilhões anuais em consumo. Mas ao mesmo tempo, quando olhamos a quantidade de favelas que surgiram nos últimos anos, percebemos o aumento da desigualdade.

O rico olha mais pro pobre? Sim, mas ele sempre olhou, nem que fosse como fornecimento de mão de obra. Eles estão mais próximos? Sim, basta ver as regiões de praia das capitais, em que os ricos estão nos grandes condomínios e no outro lado da rua temos uma favela. E é de lá que vai sair alguém para fazer as obras, guiar seu barco de luxo, fazer o churrasco da festa de Réveillon... Todos esses serviços precisam estar ao alcance do braço e, se as pessoas morarem muito longe, não conseguirão atender bem a essas necessidades básicas na condição de status que se têm. Essa aproximação se tornou mais próxima na pandemia, pois havia uma ruptura - não só no Brasil, mas em todo mundo -, em que há a parcela mais abastada da sociedade e nós aqui servindo a essas pessoas. Essas favelas existem por negligência na oferta de serviços públicos porque ninguém mora na favela porque é bom de morar, mas elas existem e vão se desenvolvendo.

O POVO - Como seria essa maior aproximação?

Celso Athayde - Quando chega a pandemia, o rico e o pobre ficam mais próximos, mas, basicamente, pois estamos nos aproximando de uma anomalia, uma verdadeira convulsão social. Sempre soubemos que a sociedade se divide dessa forma, sempre soubemos da ruptura, uma fratura exposta. O que houve na pandemia foi o risco de uma convulsão social, em que não haveria pessoas querendo roubar o seu carro, mas muitos querendo roubar a sua geladeira. Enfim, o que vai adiantar ter muito dinheiro em meio a uma anomalia social? Todo mundo ajudou todo mundo para que isso não acontecesse.

E, na favela, não é novidade nenhuma o tal do isolamento social, pois ela sempre foi socialmente isolada. E a favela sempre aceitou esse isolamento, pois mantinha a fé num futuro melhor. Por mais que você aceitasse esse isolamento social, o apartheid, a repressão social, você achava que seu filho teria uma vida melhor e ajudaria a família, que a sua fé permitiria isso. Mas quando chega a pandemia se aponta para a maior crise que a gente poderia viver, que é a de falta de perspectiva. Quando um grupo muito grande fica sem perspectiva, aí se joga a toalha. E ninguém vai querer morrer de fome havendo um supermercado cheio de mantimentos perto da sua casa, sob a narrativa de que aquelas coisas não lhe pertencem e que portanto se tomar aquelas coisas estaria agindo com comportamento irracional.

Mas nesse contexto o que está em jogo não é mais a moral, mas a sobrevivência do homem e de seus filhos, pois ele não está trabalhando, não tem renda, não tem a quem pedir porque 50% de quem mora em favelas sobrevive de trabalhos informais ou autônomos e eles tiveram que fechar suas portas ou deixar de sair às ruas atrás do pão de cada dia. As diferenças sociais existem, sempre existiram e devem continuar existindo, porém nós temos um desafio neste pós-pandemia que é: nós jogamos a boia de salvação para essas pessoas da base da pirâmide. Mas cabe a decisão de deixar essas pessoas ao mar morrendo de frio ou alçá-las para o navio, ainda que ali ainda permaneça um espaço de privilégios. Não precisamos deixar essas pessoas morrendo na água.

Celso Athayde é fundador da Central Única das Favelas (Cufa) e atualmente é o CEO da Favela Holding.(Foto: Juan Cogo)
Foto: Juan Cogo Celso Athayde é fundador da Central Única das Favelas (Cufa) e atualmente é o CEO da Favela Holding.

O que acho é que não precisamos viver num país em que todos serão Sílvio Santos e ninguém vai vender o carnê do Baú da Felicidade, isso não vai acontecer. Vai sempre existir o dono do prédio e o porteiro. Mas podemos viver num país em que o filho dos dois sonhem com a mobilidade social, em que o fato de ser porteiro não me faça passar fome por isso, ou morar numa favela tenha que ser chamado de carente, pois eles são profissionais! Quando uma pessoa que mora numa favela vai num shopping center, toma um ônibus ou metrô, vai num jogo de futebol, ela paga o ingresso e impostos da mesma forma que qualquer um e não ganha desconto algum por ser morador da favela. Isso não existe, portanto, sabemos que existem realidades sociais diferentes.

Mas esses ricos, que tanto ajudam os pobres, gerando emprego, eles podem ajudar mais essas pessoas não mais apenas doando cestas básicas para que não enfrentemos uma convulsão social em que todos perdem, mas eles podem ajudar a fazer um país que cresça economicamente e distribua melhor a renda. Se não, vamos continuar com os mesmos discursos sociais, mas reproduzindo as maiores atrocidades econômicas e morais.


"O que acho é que não precisamos viver num país em que todos serão Sílvio Santos e ninguém vai vender o carnê do Baú da Felicidade, isso não vai acontecer. Vai sempre existir o dono do prédio e o porteiro"

 

O POVO- Como o Auxílio Emergencial foi importante no pior momento da pandemia e o quanto as indefinições de cenário ainda o tornam uma necessidade?

Celso Athayde - Quando a gente olhava o Bolsa Família há alguns anos, muitas pessoas criticavam, pois era como se fosse a manutenção de uma lógica de rebanho político. Então, quando se começava a elaborar o Bolsa Família, houve críticas, mas sempre fui defensor, pois era uma forma direta de colocar dinheiro na base da pirâmide e aquele dinheiro circular nas mãos das pessoas e oxigenar a economia da favela. Quando vemos o Auxílio Emergencial, tivemos o Congresso forçando para que o valor chegasse a R$ 1.200, numa situação que entendo que deveria ter partido do Governo... Mas o que podemos ratificar em toda a crise é a coerência do presidente: Se você não acredita na pandemia ou em suas consequências, não tem porque você ajudar a resolver um problema que você entende que não existe.

O fato é que o Auxílio Emergencial sempre existiu em governos de direita. A diferença é que nos momentos de crise, como nos pós-guerras, os auxílios emergenciais foram destinados às companhias aéreas, grandes empresas, simplesmente protegendo essas empresas, equilibrando as relações. É preciso que se entenda que as pessoas da base da pirâmide sempre pagaram imposto, contribuíram no INSS para que em momentos como esse o estado brasileiro pudesse dar alento às pessoas, é uma obrigação. Então, era importante que existisse o auxílio e ele deve durar enquanto o País e a sociedade se equilibram, do contrário estaremos saindo de uma pandemia, mas esquecendo das consequências sociais e econômicas, com a explosão do número de desempregados. Quando olhamos para os mais de 600 mil mortos, quantos pais e mães de família morreram ou os que ficaram com alguma sequela? Temos um quadro que transcende o impacto econômico direto.

 

"A fome não é coisa nova no Brasil. Mas a escalada da fome é preocupante. Quando olhamos para as ruas a quantidade de novas famílias que estão ali porque perderam seus empregos e não tem condições de pagar seus aluguéis, foram postos para rua, é um número muito grande"

 

O POVO - A fome tem se tornado uma realidade triste e presente no Brasil. Como o senhor observa esse ponto e que ações faltam ser tomadas por governo e organizações?

Celso Athayde - A fome não é coisa nova no Brasil. Mas a escalada da fome é preocupante. Eu passei fome na minha vida por seis anos. Quando olhamos para as ruas a quantidade de novas famílias que estão ali porque perderam seus empregos e não tem condições de pagar seus aluguéis, foram postos para rua, é um número muito grande. Aí você observa pessoas normais que estão na rua com uma roupa melhorzinha, que não desgastam totalmente, são pessoas que simplesmente deixaram os seus trabalhos. Estamos vivendo uma situação social muito tensa. Temos um número de pessoas em condição de fragilidade alimentar muito grande, o País batendo os 14 milhões de desempregados.

O que é mais desmoralizante para uma pessoa é ela depender de algum desconhecido para lhe dar comida. No período em que morei nas ruas, todas as noites recebia uma quentinha e aquilo era uma forma de me humilhar, mas era uma necessidade que eu tinha. Agora, não temos tempo de montar uma tese de mestrado sobre isso, mas precisamos entregar as quentinhas, porque as pessoas precisam comer, sobreviver nessa fase e fazer essa travessia. Acho que as empresas precisam continuar ajudando, pois quando vemos essas imagens que vemos na televisão - de pessoas revirando lixo em busca de alimentos -, alguém pode argumentar que é a TV tentando fazer marketing negativo na conta do governo ou simplesmente sensacionalista. Mas para mim, que vivo dentro das comunidades, sei que aquela imagem não é exceção, é uma reprodução real do que está acontecendo em muitos dos lugares.

 

 

Renda

O POVO - Um programa de transferência de renda fortalecido poderia ser a solução?

Celso Athayde- Quando se é um atacadista que decide montar cestas básicas para doar na favela, ninguém discute porque as pessoas estão precisando. Vão aceitar obviamente. Mas, de certa maneira, acaba matando o ecossistema econômico daquele lugar. Já com a transferência de renda permite que se mantenha vivo toda a cadeia econômica local por causa do consumo, mantendo essa cadeia toda funcionando. Entregando uma cesta básica para alguém entendemos que estamos atendendo às necessidades básicas de uma família. Mas se naquela família houver a necessidade de um absorvente, um remédio, o gás de cozinha... Imagine doar um quilo de feijão para uma família que não tem gás para cozinhar.

Então, a transferência de renda dá autonomia para que as pessoas tomem decisões de forma racional. E não podemos ter o raciocínio preconceituoso de achar que a pessoa vai pegar o dinheiro para comprar drogas, pois se ela quiser mesmo, vai trocar a cesta básica por droga da mesma forma. O raciocínio é que, recebendo esse recurso, as famílias terão compromisso. Essa mãe que recebe esse recurso é a mesma mãe que recebia um Auxílio Emergencial ou Bolsa Família.


"E não podemos ter o raciocínio preconceituoso de achar que a pessoa vai pegar o dinheiro para comprar drogas, pois se ela quiser mesmo, vai trocar a cesta básica por droga da mesma forma"

 

O POVO - Essa falta de dinheiro circulando na economia impacta muito a favela, com engrenagens potentes em gerar renda. Falta formação para esses empreendedores das favelas?

Celso Athayde - Totalmente. Deixei o comando da Cufa em 2015 para o Preto Zezé (cearense) e sou voluntário da Cufa e empreendedor de um projeto chamado Favela Holding, que hoje conta com mais de 20 empresas e trabalha fomentando esse ecossistema. São vários negócios, todos eles localizados em favelas e os favelados na condição de sócios. Com isso eu quero dizer que apesar de eu ser hoje premiado pela revista IstoÉ Dinheiro como o Empreendedor do Ano ou ser considerado pelo Fórum Econômico Mundial como o Homem do Ano em Responsabilidade Social 2021 - vou a Davos em janeiro próximo receber esse prêmio -, eu não sou do mercado. Não sou aquele que fala a linguagem do mercado, o que significa dizer que eu sempre fui empreendedor e mesmo crescendo tenho dificuldade de falar a linguagem do mercado porque faltam escolas de negócios na favela que dê uma base de formação.

A favela produz muito conhecimento, muitas ideias, que acabam não sendo transformadas em negócios, pois falta networking, alguém que viabilize. Nenhum favelado fala que é empreendedor, mas que ele se vira, dá seus pulos, mas, na prática produz e empreende por necessidade. Certamente esse empreendedorismo na base seria muito mais relevante se houvesse conhecimento, o desafio é como aproximar os jovens das favelas dessa realidade de negócios, formando uma nova realidade, para que nossos filhos não sejam coadjuvantes do "asfalto".

O POVO - No dia 4 de novembro se comemorou o Dia da Favela. Queria que o senhor revelasse qual é o seu desejo para as favelas?

Celso Athayde - Meu desejo é que não houvesse mais favelas no Brasil. É de que a Cufa não tivesse mais nenhum sentido, que a gente tenha um grande projeto de governo em que o déficit de habitação suma e projetos de segurança e transporte plenos em que você more longe do trabalho, mas não seja infeliz por isso. Em que sua habitação popular não seja tomada pelo tráfico ou milícias e o estado simplesmente fique de braços cruzados. Tudo isso é parte do meu sonho, que é ter as favelas como algo do passado. No futuro lembrarmos como as pessoas moravam no Brasil, mas que a realidade mudou, felizmente.

Então, meu sonho é que possamos construir um movimento em que o favelado não se orgulhe de morar na favela, mas se orgulhe de rever esses espaços físicos e transformá-los em bairros, com acessos e possibilidades. Que a gente não cante a super baixa renda, que não fiquemos romantizando um território que está abaixo da linha da pobreza e pessoas que na verdade não são formadas, são "sub" em absolutamente tudo. Isso só atrasa o País, essa desigualdade toda breca o desenvolvimento. Então, não devemos ficar orgulhosos de ter uma pequena elite, mas que lutemos para que poucas pessoas estejam na base da pirâmide se ela precisar existir. No Dia da Favela não comemoramos a existência das favelas, mas a resiliência das pessoas, a força de trabalho e dignidade, a cultura e as suas diversas manifestações sociais, culturais e esportivas que vem desses lugares, temos que comemorar a honestidade que essas pessoas têm. E não podemos deixar de comemorar que se a favela não tivesse permanecido trabalhando, o País teria quebrado, pois foram eles que lotaram os três, ônibus e metrôs no momento mais tenso da pandemia atendendo às demandas do País.

Acho que na medida em que a favela avança, se diminui o preconceito sobre essas pessoas, elas se assumem e caminham mais rápido, passam a aumentar seu grau de exigência em relação ao que o estado oferece a elas e o que podem exigir e conquistar. Não podemos ser tratados como coadjuvantes, mas somos potência econômica por aquilo que ela contribui para o País. Ou mudamos essa lógica, dividimos a riqueza que os pretos e a favela geram ou vamos continuar admitindo os efeitos da miséria que a elite sempre produziu.

 

Livro

EM 2014, Celso Athayde e Renato Meirelles lançaram o livro Um país chamado favela. Os autores acabam por desmistificar as favelas, apresentando-as como áreas de grandes oportunidades.

 

Espaço

ANTES DE ENCERRAR o papo, Celso disse esperar que as pessoas que concordem ou discordem de qualquer posicionamento, independentemente da posição em relação às ideias, que elas ajudem a construir soluções.

 

Mobilização

CUFA CONSEGUIU mobilizar durante a pandemia cerca de R$ 600 milhões nos seus mais diversos programas. Chips para celulares, alimentação, cesta básica ou sacas de alimentos não perecíveis, gás de cozinha, além de transferência de renda.

 

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