Completando 73 anos nesta segunda-feira, 27, padre Julio Lancellotti é coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, mas não apenas isso. Hoje, o religioso é visto como um dos principais agentes de defesa dos direitos humanos no Brasil. O agravamento da crise sanitária, social e econômica, neste ano de 2021 — com pandemia a redução do poder de compra da população devida à inflação —, fez aumentar as necessidades por moradia, comida, água e roupas.
O cenário, alheio a quem tem muitas poses, é muito presente no cotidiano de padre Julio. No trabalho junto a pessoas em situação de rua, o religioso oferece auxílio por meio de um olhar mais sensível aos problemas da população mais desassistida de uma metrópole de mais de 12 milhões de habitantes. Distribuição de agasalhos e comida a pessoas em situação de vulnerabilidade social fez parte das ações durante o ano do sacerdote, assim como a tentativa de driblar e se impor a ataques de políticos — alguns deles que fizeram do religioso um alvo de constantes críticas.
A atuação do coordenador da Pastoral do Povo de Rua, hoje, não se restringe a São Paulo. Por meio das redes sociais, padre Julio também atua denunciando casos de aporofobia — quando há repúdio, aversão ou desprezo pelos pobres — em todas as regiões do mundo. A internet também é um meio onde ele promove campanhas de combate à pobreza e à fome e compartilha ações dos assistidos.
Apesar da fala mansa e a idade avançada, Julio Lancellotti descarta dar uma pausa ou parar com as atividades de atenção às pessoas mais pobres. Ele argumenta que a miséria não parou, a injustiça também não cessou, e que a discriminação e o preconceito continuam presentes. Portanto, ele segue necessário. São esses os fatores que dão forças para ele continuar com a luta, principalmente durante o segundo ano da pandemia da Covid-19. Pessoas que necessitam de ajuda e podem contar o sacerdote podem se considerar iluminadas por receber apoio de uma liderança tão forte como a dele, um religioso de idade avançada, mas com energia suficiente para pegar uma marreta em mãos para derrubar iniciativas de arquitetura hostil — quando entes públicos ou privados tentam reprimir a presença de população desassistida por meio de intervenções estéticas agressivas.
Ao O POVO, padre Julio Lancellotti remonta o longo ano de 2021, fala sobre os principais desafios das suas campanhas contra aporofobia e como lidou com as críticas e hostilidades durante seu trabalho com moradores de rua. O sacerdote também traz uma análise sobre os governos federal e municipal de São Paulo na temática do combate à fome e à pobreza e, aponta o que ele espera de 2022, ano eleitoral que promete ser acirrado no Brasil.
O POVO - Entre campanhas de combate à fome e à aporofobia, como a iniciativa de quebrar pedras instaladas pela gestão do então prefeito Bruno Covas (PSDB), sob viadutos de São Paulo, em fevereiro deste ano, como forma de afastar moradores de rua dos locais, como o senhor define seu ano de 2021?
Padre Julio Lancelloti - É uma luta de semear esperança. É uma luta difícil, desgastante, cansativa, mas é uma (causa) solidária que tem que ter empatia, proximidade e convivência. É uma luta que se constrói na convivência. Há um aumento de compromisso, de sensibilidade, mas também há um aumento de insensibilidade e de indiferença. Acho que são duas coisas que a gente vai conviver sempre, passo a passo de uma luta constante.
O POVO - Como o senhor analisa a relação do Governo Federal e da Prefeitura de São Paulo no combate à pobreza? Eles ajudam ou atrapalham?
Padre Julio Lancellotti - O Governo Federal não combate a pobreza, o Governo Federal aumenta a pobreza. E em nível municipal, a cidade (São Paulo) está cada vez mais empobrecida e, digamos, numa crise humanitária.
O POVO - O senhor já foi criticado por algumas figuras políticas por conta das suas campanhas. Como é sua relação com isso?
Padre Julio Lancellotti - Ah, faz parte da luta. Não tem luta sem conflito, não tem luta pela vida sem conflito com a morte. Faz parte da luta. A gente não pode achar que essa luta não vai ter situações conflitivas. Lutar é conflito.
O POVO - Há muita hostilidade de outras pessoas com o senhor pela realização do seu trabalho de atenção aos mais pobres? Como o senhor lida com a situação?
Padre Julio Lancellotti - Há muita (hostilidade). Eu sei que faz parte, elas ferem, mas não destroem. Elas machucam, mas nos tornam insensíveis. Elas detêm alguns momentos, mas não impedem o caminho.
O POVO - O senhor que vive muito à uma realidade violenta e com vítimas da violência, que são os moradores de ruas, como lida com a insegurança?
padre Julio Lancellotti - Há insegurança, mas essa nossa luta, esse nosso caminho é feito de insegurança. Eu não posso fazer um caminho imune ao sofrimento, e não posso estar junto dos que sofrem sem sofrer também. Sobre a minha relação com eles, tem de tudo, assim como o relacionamento com outras pessoas. Tem desafios, tem conflitos, tem acertos e tem erros. Ninguém tem um relacionamento perfeito e uniforme. Relacionamentos são construídos. Há amizade, proximidade, há outros que são mais distantes, é uma situação que não tem um tédio, ela sempre é diferente e nova.
O POVO - Nas suas redes sociais, as denúncias de ações de aporofobia são recorrentes, presentes em regiões do Brasil, como também no cenário internacional. Como o senhor analisa a utilização do meio como forma de intensificar as campanhas contra à pobreza?
O POVO - Durante o ano, o senhor liderou diversas campanhas contra a fome e a pobreza, além da atenção aos dependentes químicos nas ruas. Como o senhor analisa a questão médica contra a questão moral no atendimento aos dependentes químicos?
Padre Julio Lancellotti - Em relação à dependência química, não existe nenhuma receita infalível e nenhuma proposta dogmática. As pessoas respondem a diferentes propostas. Há aqueles que aderem aos 12 passos (programa contra dependência dos Narcóticos Anônimos), outros aderem a redução de danos (programa voltado a dirimir os males associados a dependência) e outros que aderem a abstinência completa. Depende da pessoa, depende das circunstâncias, por isso não dá para absolutizar nenhuma forma como a única e verdadeira. Todas elas são possíveis e impossíveis ao mesmo tempo.
O POVO - Qual o desafio de lidar com extrema probreza que, nesses últimos anos, aparentemente aumentou?
Padre Julio Lancellotti - É um desafio tão grande que a gente precisa de encorajamento constante de renovação de compromisso constante para superar.
O POVO - O senhor já pensou em dar uma pausa ou parar com as atividades de atenção aos mais pobres?
Padre Julio Lancellotti - Não. Por enquanto, estamos envolvidos na luta, então não tem porque parar. A miséria não parou, a injustiça não cessou, a discriminação e o preconceito continuam presentes. Isso tudo dá forças para continuar com a luta. Ou dá forças ou dá desânimo, eu prefiro que me dê força.
OP - O senhor se define como “Pai dos Pobres"?
Pe. Julio - Eu prefiro ser irmão deles.
OP - Existe momento importante na sua vida em que foi o ápice para iniciar uma atenção maior para as pessoas que vivem nas ruas?
Pe. Julio - Não tem um começo, um momento inaugural. É um compromisso que a gente vai construindo a cada dia, renovando o compromisso. O início e a continuidade fazem parte de um mesmo processo. É um caminho e, muitas vezes, é um caminho sem volta.
O POVO - A Comissão de Desenvolvimento Urbano, da Câmara dos Deputados, aprovou, o projeto de lei “Padre Julio Lancellotti” que proíbe o emprego de técnicas de construção hostil nas cidades, que utilizem de equipamentos físicos para afastar e restringir o uso de espaços públicos principalmente por pessoas em situação de rua. Como o senhor se sente em relação a esse projeto de lei?
Padre Julio Lancellotti - - Acho que é um projeto de lei importante. Acho que é difícil que ele prospere, mas é importante. Ele existe em nível federal, a nível estadual em São Paulo e em vários municípios. A gente tem esperança de que vá em frente, mas eu acho bastante difícil. A aporofobia está ficando cada vez mais explícita e essa utilização das intervenções arquitetônicas está cada vez mais claro.
Eu acredito que nós temos que lutar dentro do critério de defender os pobres, os fracos e os esquecidos. Esse deve ser o nosso critério, e não entrarmos no jogo da retórica do ódio.