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"Bolsonarismo pode resistir a uma derrota nas urnas"
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"Bolsonarismo pode resistir a uma derrota nas urnas"

Professor de Filosofia discute formação do bolsonarismo e sua capacidade de resistir a uma possível derrota eleitoral em 2022
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Do transe à vertigem, de Rodrigo Nunes (Foto: Ubu Editora / divulgação)
Foto: Ubu Editora / divulgação Do transe à vertigem, de Rodrigo Nunes

Em “Do transe à vertigem”, o filósofo e professor da PUC-RJ, Rodrigo Nunes, percorre o bolsonarismo a contrapelo. Nos ensaios escritos nos últimos três anos, Nunes radiografa componentes do que, para ele, é “um fenômeno social resultado de dinâmicas de longo prazo que adquirem uma expressão política comum a partir de 2018”.

As marcas desse movimento, acrescenta o pesquisador, pré-existem a Jair Bolsonaro (PL), candidato cuja derrota possível neste ano não representaria um ponto final nessa energia que convergiu anos atrás.

Nessa hipótese, o capital político do presidente continuaria ativo, sendo então disputado por atores que hoje dividem o palco com o chefe do Executivo, a exemplo dos filhos do presidente e de outros personagens.

Bolsonaro poderia até perder a disputa eleitoral em 2022, mas as forças sociais que emergiram na esteira de sua chegada à Presidência não cessariam.

Em entrevista ao O POVO da Alemanha, Nunes reflete sobre esse quadro, discute as principais categorias que formam o bolsonarismo e por que, mesmo depois da pandemia e de crimes como os cometidos na Amazônia, o presidente segue apoiado por um núcleo coeso que o ajuda a chegar competitivo no pleito.

O POVO – Queria começar a partir do título do seu livro, “Do transe à vertigem”. Essa ideia de transe remete a Glauber Rocha e a outro momento político. Que aproximações existem entre os contextos da ditadura e o que a gente vive hoje?

Rodrigo Nunes – O título do livro é tirado de um dos ensaios, embora no ensaio tenha um sentido diferente do que tem como título do livro. O que quero dizer com “Do transe à vertigem” é, com o transe, a adesão à extrema-direita e às histórias fantasiosas que essa extrema-direita tem para contar sobre o mundo em que a gente vive hoje e a maneira como essas histórias ao mesmo tempo reconhecem o estado de coisas cada vez mais preocupante, mas reconhecem de uma maneira distorcida, em certo sentido. Sair desse transe criado por essas histórias fantasiosas, que se expressam no Brasil sob esse fenômeno social que denomino de “bolsonarismo”, para a vertigem de encarar os verdadeiros problemas que a gente tem hoje, sobretudo com o crescimento da desigualdade econômica desde o final da década de 1970 e, como consequência, o crescimento também da desigualdade política, de poder, de capacidade de influenciar nossos rumos coletivos, como comunidades políticas reunidas em países e como humanidade como um todo; e, finalmente, a grande questão que se coloca para o mundo hoje, que é a do aquecimento global, ou seja, o que fazer diante dessa janela de tempo exígua que os cientistas nos dizem que a gente tem para agir de maneira a evitar efeitos ainda mais catastróficos do que aqueles que já estão contratados pelas decisões que a humanidade vem fazendo desde o início da era moderna. O transe se refere ao “Terra em transe”, do Glauber Rocha, e o vertigem ao “Democracia em vertigem”, da Petra Costa, que são os que tomo como os dois principais filmes, tanto em qualidade como na importância que adquiriram nos debates, nesses dois períodos de derrota política para a esquerda brasileira: o golpe de 1964 e o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016. E eu comparo justamente esses dois momentos para apontar de que maneiras o momento mais recente parece ler o momento anterior de uma maneira estranha. Essa comparação com 64 não é uma comparação que eu estou fazendo, mas que circulava muito naquele momento do golpe de 2016, e é feita explicitamente pelo “Democracia em vertigem” e por vários outros filmes dessa época. O que me chamava a atenção é que parecia que essa comparação que se buscava com o período pós-64 lia aquele período com sinais invertidos em relação à maneira como esse mesmo período era lido pelas pessoas que estavam vivendo, como o Glauber Rocha e o modo como ele processa aquele trauma do golpe no “Terra em transe”, em 1967. De que maneira e em que sentido os sinais eram invertidos? De maneira bastante esquemática, a gente poderia dizer que, em ambos os momentos, a gente teve governos conciliadores à esquerda, que foram derrubados por uma reação do capital nacional, da elite política nacional, dos militares e assim por diante. Só que o governo João Goulart cai exatamente no momento em que anuncia publicamente a sua decisão de radicalizar, no comício da Central do Brasil, os programas das reformas de base. O João Goulart parece finalmente se decidir por um dos lados e se dar conta de que seu apoio agora vai estar daqui pra frente na esquerda e é esse o programa que tem que assumir.

OP – E com a Dilma, como se deu?

Rodrigo Nunes – Com a Dilma o governo parece cair porque não tem mais pra onde recuar. Vai recuando, vai recuando, já desde 2014. Aliás, a gente poderia dizer que o primeiro governo da Dilma já seria, em vários aspectos – por exemplo, na política de cultura –, um recuo em relação aos governos Lula. E mais ainda com o choque fiscal que vem depois da eleição, que ela tinha prometido que seria a única candidata que não faria. É nesse contexto que ela cai. Então tem uma coisa muito estranha nessa comparação, que se soma ao fato de que a lição que todo mundo parece estar tirando naquele momento pós-64 é: nós pagamos o preço de ter feito concessões, nosso erro foi ter feito concessões. Ao passo que em 2016 a consequência que se parece poder tirar de vários desses filmes é ao contrário: com todas as concessões que a gente fez, com tudo de que se abriu mão, ainda assim o governo foi derrubado. Logo, parece ser a inferência que se segue daí, no futuro será necessário fazer ainda mais concessões. E esse recurso ao passado, esse recurso a um passado que é meio fantasiado e mal compreendido, me parece que é muito sintomático da reação da esquerda a esse trauma de 2016. É como se fosse necessário olhar para um outro trauma mais antigo para evitar o processo de ter que fazer o trabalho de luto dessa derrota mais recente. Outra coisa que é muito sintomática nesse caso é a iconografia da esquerda, principalmente a partir do período do impeachment. Ela é dominada por duas imagens: uma da Dilma diante dos juízes na década de 1970 e a outra do Lula preso nas greves do ABC. É como se os impasses aos quais se chegou por uma política deliberada de concessões, e que ainda assim resultaram numa puxada de tapete por parte da elite econômica e política; como se, na incapacidade de processar o que aconteceu e extrair as lições desse momento recente, a esquerda precisasse se consolar com as imagens de uma radicalidade passada. Mas não para extrair as conclusões do passado para a necessidade de radicalizar, e sim para tirar conclusões para a necessidade de fazer mais concessões no futuro.

Ex presidenta Dilma Roussef. (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Ex presidenta Dilma Roussef.

OP – Que norte teórico e que ideias essa mesma esquerda vai apresentar agora, nas eleições de 2022? O que seria uma resposta, fazer concessões ou não fazer concessões? Radicalizar um projeto utópico ou radicalizar o pacto lulista?

Rodrigo Nunes – Um dos grandes objetivos gerais do meu livro é ajudar a sair dessa maneira de colocar a oposição, de nos ajudar a sair de uma oposição entre fazer concessões ou radicalizar. Porque o que estou tentando apresentar como grande argumento de fundo é justamente a ideia de oposição entre agir dentro dos limites do possível e fazer aquilo que nós acreditamos ser necessário. Tanto em termos de Brasil quanto em termos globais, o que o momento nos dita como necessário é necessariamente radical. Porque estamos falando de reverter uma tendência de quatro décadas no mundo inteiro de concentração de renda num quadro de estagnação global da economia capitalista, agravado pela crise de 2008. A gente está falando de repensar os nossos mecanismos de participação democrática num mundo que é marcado por esse processo de concentração de renda, um mundo em que essa participação e o poder político estão extremamente mal distribuídos. Basta pensar no poder que meia dúzia de empresas tem sobre a política global porque elas roteiam a maior parte da informação que a população mundial consome. E a gente está falando de uma ação muito rápida e muito contundente diante do desafio do aquecimento global. Então o que é necessário fazer necessariamente se apresentará como radical neste momento. É evidente que é impossível fazer qualquer coisa a qualquer hora, mas o fato de que é impossível fazer qualquer coisa a qualquer hora não precisa significar que a gente deve abrir mão seja dos nossos princípios, seja dos fins que nós identificamos como necessários. Porque, e essa é uma questão-chave, o foco da política no fim das contas é sempre a transformação do limite do possível. A oposição entre fazer concessões e ser radical é falsa porque supõe que se estaria agindo sempre em um nível: ou se estaria agindo dentro dos limites do possível ou se estaria buscando o impossível. Mas na verdade sempre se dá nesses dois níveis ao mesmo tempo. Faz-se o que é possível, mas se faz o que é possível neste momento com vistas a ampliar o limite do possível em momentos futuros, mais lentamente ou mais rapidamente. No nosso caso, a gente precisa que isso seja rapidamente, segundo tudo aquilo que a nossa melhor ciência nos diz hoje, pra se aproximar daquilo que se identifica como aquilo que tem que ser feito.

OP – O livro contém um grande esforço de compreender o que é o bolsonarismo, o que está em sua base, os elementos que o constituem. Por que é difícil encontrar nomes que deem conta desse fenômeno? Bolsonarismo é um conceito suficiente para abarcar tudo isso?

Rodrigo Nunes – Ele é suficiente e é útil para apreender uma parte do que está nos acontecendo, e isso pra mim é um ponto de partida absolutamente essencial. Pra mim, qualquer pessoa que se ponha diante do que aconteceu no Brasil na última década e diga que a explicação é “x” – que a explicação é o imperialismo, a explicação é os militares, a explicação é a crise do sistema político –, estará errando de partida. Todos os bons analistas, e a gente tem vários muito bons que procuraram nos ajudar a entender o que aconteceu na última década, partem desse mesmo princípio. A gente tem uma série de fenômenos acontecendo ao mesmo tempo, em escalas temporais diferentes, se conectando e convergindo, se opondo, correndo em paralelo, se relacionando das maneiras mais diversas. Compreender isso que acontece é restituir esses processos a sua complexidade ao invés de reduzi-los todos a uma causa única. Foi uma grande conspiração dos militares, foi tudo um plano dos EUA pra tomar o pré-sal, esses reducionismos analíticos que a gente encontra muito. Onde o conceito do bolsonarismo, tal como eu o entendo, entra nessa história? Uma das coisas que procuro fazer de saída é justamente tentar propor uma definição do bolsonarismo, construir o bolsonarismo como conceito. Nessa seara de debate sobre o bolsonarismo, tem gente que faz etnografia, que faz análise sociológica quantitativa, que faz análise de dados nas redes sociais. Eu não faço nada disso, sequer tenho treinamento para fazer. Mas na filosofia uma das coisas em que a gente é treinado a fazer é construir conceitos, e é isso que eu tento. De que maneira? Em primeiro lugar, apontando o bolsonarismo, ele mesmo, como uma coisa complexa. Partindo de diferentes fontes etnográficas, eu identifico um conjunto de fatores que convergem no bolsonarismo, fatores que têm muito em comum, tendências sociais que têm uma gramática, inclusive moral, em comum. Convergem num ponto enquanto identidade política no contexto da campanha do Bolsonaro. Nesse sentido, chamar isso de bolsonarismo é inteiramente contingente. Por que então se chama de bolsonarismo? Porque foi no contexto da campanha presidencial do Bolsonaro que essas coisas se encontraram e que a sua identidade comum e política se consolida. O desafio é definir esse conceito como uma coisa que é ela mesma complexa e uma perspectiva, ou seja, é vista de dentro de maneiras diferentes conforme a posição que se ocupa nela. É entender o bolsonarismo como um fenômeno social e, portanto, um fenômeno que não se confunde com a eleição do Bolsonaro, embora essas tendências diferentes convirjam e consolidem sua identidade nesse momento da campanha. Mas todas essas tendências pré-existem ao Bolsonaro, são tendências de longo prazo que têm a ver com a história do Brasil.

Bolsonaro convoca apoiadores a entrarem com (Foto: EVARISTO SA/AFP)
Foto: EVARISTO SA/AFP Bolsonaro convoca apoiadores a entrarem com

OP – Por exemplo? O autoritarismo seria uma tendência?

Rodrigo Nunes – Sim, o autoritarismo ou militarismo que se expressa no discurso sobre a segurança pública e que se identifica, por exemplo, no malufismo, há décadas. Esse era um elemento muito forte, essa ideia de que bandido bom é bandido morto. Mas também o empreendedorismo, que pode significar coisas bastante diferentes se você pertence à classe alta ou se pertence à classe baixa. Por isso, para pensar no significado que o empreendedorismo adquire nas classes mais baixas, eu emprego o conceito de “neoliberalismo desde baixo” (formulado pela cientista política argentina Verónica Gago). O anticomunismo, que é um discurso da Guerra Fria, é ressuscitado durante os governos do PT e acaba tendo uma função bastante importante de amarração dos diferentes elementos que compõem o bolsonarismo na medida em que, junto com o discurso anticorrupção, ele identifica um inimigo comum, que seria o comunismo/mamata, duas coisas mais ou menos intercambiáveis, que se fundem e se confundem.

OP – É possível haver um bolsonarismo que resista a uma eventual derrota do Bolsonaro nas eleições?

Rodrigo Nunes – Sem dúvida, e não é uma ideia original minha. Muita gente que estuda o fenômeno já alertava para isso justamente porque entende o bolsonarismo como um fenômeno social que é resultado de dinâmicas de longo prazo que adquirem uma expressão política comum a partir de 2018. E, portanto, dado que o contexto em que adquirem essa identidade é o contexto da campanha do Bolsonaro, evidentemente ele passa a ser o agente político que tem a maior capacidade de controlar e direcionar essa identidade política comum. Mas, uma vez ele retirado do cenário pela derrota eleitoral e talvez também pela cadeia, esse potencial eleitoral, esse capital, deve seguir lá, e tem bastante solidez, bastante coisa em comum entre essas tendências que convergiram no bolsonarismo para mantê-las juntas por um bom tempo na ausência do Bolsonaro. E aí esse capital político passará a ser disputado por outros agentes. Os filhos, se eles não forem pra cadeia também, e outros parceiros maiores ou menores do governo ao longo desses quatro anos.

OP – Numa das passagens do livro, você escreve que nem todo eleitor do Bolsonaro é bolsonarista. Poderia comentar esse ponto?

Rodrigo Nunes – Uma das coisas que são muito comuns na discussão sobre o voto no Bolsonaro são questões do tipo: como pode essa pessoa, que é gay, votar no Bolsonaro? Ou como pode uma mulher votar no Bolsonaro? Não é difícil de entender isso, na verdade. Em primeiro lugar porque ser mulher não implica automaticamente identificar os seus interesses como sendo aqueles interesses defendidos pela luta feminista. Nem ser gay significa identificar seus interesses com os defendidos pela luta LGBTQIA. Mas, em segundo lugar, é perfeitamente possível que uma mulher ou um gay vote no Bolsonaro se ele identifica a contradição que existe entre o voto no Bolsonaro e a sua identidade como sendo menos importante do que os motivos que o levam a votar no Bolsonaro. Na verdade, a dificuldade aí talvez venha de uma dificuldade que a esquerda tem diante do mundo, que é uma coisa contra a qual eu argumento. É essa tendência da esquerda de enxergar as identidades políticas como sendo pacotes fechados. Se vota no Bolsonaro, é automaticamente homofóbico, machista, racista, a favor da destruição da Amazônia, armar a população e assim por diante. Isso evidentemente não é o caso. É empiricamente demonstrável como não sendo o caso. O que eu identifico como bolsonarismo seria justamente o núcleo duro de um voto no Bolsonaro, é aquele núcleo que se manteve fiel ao governo, que manteve essa base de aprovação mais ou menos constante desde 2019. Seria aquele núcleo do Bolsonaro que não inclui nenhuma cláusula adversativa no seu voto. Que não diz: eu voto no Bolsonaro, embora... É aquele que realmente está identificado, satisfeito e feliz com aquilo que o Bolsonaro encarna. O que não significa que necessariamente os elementos que eu declino como compondo o bolsonarismo – o militarismo, o empreendedorismo, o anti-intelectualismo, o anticomunismo, o ultraliberalismo, o discurso anticorrupção – sejam comprados por todo mundo. Na verdade, tem muitas variações e modulações desse pacote, há muitas customizações desse pacote. São pessoas que não necessariamente subscrevem todas as matrizes discursivas que compõem o bolsonarismo, mas se identificam com essa identidade política comum e nesse sentido estão perfeitamente contempladas com o governo. Para essas, é possível que questões como a farra e o cartão corporativo não representem qualquer problema porque uma das coisas que elas esperam do Bolsonaro é exatamente isso. Um dos fatores de identificação com Bolsonaro não vem do fato de ele ser um grande disciplinador que vai acabar com a corrupção, mas o contrário, de ele ser um grande oportunista. E de ser um oportunista que diz para os outros oportunistas no interior da sociedade: olha, eu entendo você. Eu entendo que você não queira pagar multa de trânsito, eu entendo que você queira sonegar imposto, e eu estou aqui.

Do transe à vertigem, de Rodrigo Nunes(Foto: Ubu Editora / divulgação)
Foto: Ubu Editora / divulgação Do transe à vertigem, de Rodrigo Nunes

OP – É por isso que o assassinato de Dom Phillips e de Bruno Pereira pode ter impacto político pequeno para ele?

Rodrigo Nunes – Exato, porque está subentendido, em todo discurso do Bolsonaro em relação à Amazônia e a esse caso em particular, que as pessoas estavam lá e que estavam em disputa com indígenas por causa das terras. Elas querem trabalhar porque querem produzir, elas têm o direito de estar lá, de proteger os seus interesses, e a culpa é do Bruno e do Dom Phillips, que não tinham nada que estar lá. Para boa parte dessa base, esse discurso cai perfeitamente bem e faz sentido porque é essa a lógica que o bolsonarismo aponta: que cada um que detém, no interior da sociedade, uma esfera de poder, por maior ou menor que seja, tem o direito a gozar do exercício da sua autoridade no interior dessa esfera de poder. Isso vale para o garimpeiro nas terras indígenas, para o miliciano nos territórios ocupados no Rio de Janeiro, isso vale para o pai de família no interior da sua casa, vale para o patrão na sua empresa e assim por diante.

OP – Por que o empresariado ainda é um núcleo tão importante na sustentação do presidente?

Rodrigo Nunes – Eu diria que tem três fatores nisso. Em primeiro lugar, justamente por conta desses elementos que acabei de citar, tem uma espécie de afinidade natural do bolsonarismo com o discurso do empreendedorismo em geral. Muita gente que se definiria como empresário e apoia o governo não pertence necessariamente ao grande capital nacional, mas se identifica com esse discurso, com essa figura do empresário. E, na medida em que o empreendedorismo é uma das matrizes discursivas do bolsonarismo, se identifica também com ele. Não tenho a menor dúvida de que essa mensagem que o Bolsonaro está, direta ou indiretamente, sempre comunicando, que é: eu entendo você, não dá pra seguir todas as leis nesse país, se o empresário for pagar todos os encargos e impostos, não dá pra ser empresário e produzir etc. Eu tenho certeza de que isso é um fator importante da adesão. O outro ponto simplesmente é que esses empresários identificam seus interesses econômicos corretamente. Estão ganhando muito bem, se deram muito bem com esse governo, porque foi muito explícito no seu projeto de transferência de renda da base da população para as camadas mais altas. Aí estamos falando sobretudo do grande capital, do agronegócio e das finanças. E entra o terceiro fator, que é uma questão mais especulativa. Esses setores ganharam ao longo dos últimos quatro anos e identificaram corretamente seus interesses, mas isso é sustentável no longo prazo? O capitalismo brasileiro aguenta mais quatro ou sei lá quantos anos, caso Bolsonaro seja reeleito, dessa anomia, dessa falta de coordenação das ações estatais, dessa imprevisibilidade que é intrínseca à figura do Bolsonaro e de absoluto descrédito internacional? Esse empresariado não estaria sendo suicida no médio e longo prazos? E a resposta para isso é que talvez eles sempre tenham entendido que isso não podia durar muito tempo. Que aquele interregno que se abre com o governo Temer e que talvez venha a se encerrar agora, nestas eleições, nunca poderia durar muito. E que este período seria um período de suspensão das regras, ou seja, que seria um período de saque, um período de vale-tudo, de pegar o que não estiver aparafusado no chão. Se conseguir levar, é seu. Uma grande farra. Se a gente olha para o que está acontecendo na Amazônia e na fronteira extrativa brasileira, é exatamente isso. As pessoas sabem que todas as regras foram suspensas e que há um governo que está do lado de quem ocupar terra, de quem atacar indígena. Então eles se manterão ao lado do governo até o último minuto, aproveitando essa oportunidade única de rapinagem. E, se esse governo acabar, começa um novo jogo, e eles estarão lá também, de uma maneira ou de outra.

Academia

RODRIGO Nunes é doutor em Filosofia pela Universidade de Londres e vice-coordenador do programa de pós-graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). 

Livro

Pela Ubu, publicou recentemente "Do transe à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e o mundo em transição", que analisa, em sete ensaios, aspectos que conformam o fenômeno político e social que ganhou corpo com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. 

Análise

Do empreendedorismo ao militarismo, passando pelo anticomunismo até o ultraneoliberalismo, Nunes identifica e examina as principais linhas de força do bolsonarismo e como esse fenômeno se articula com as mudanças no quadro político nacional e internacional.

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