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Entre o futebol e a política: as visões de mundo de Walter Casagrande Jr.
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Entre o futebol e a política: as visões de mundo de Walter Casagrande Jr.

De Neymar a Bolsonaro, ex-jogador e comentarista opina sobre personagens e episódios das duas áreas em que transita, cobra posicionamento social dos jogadores, projeta Copa do Mundo e reforça importância da democracia no Brasil
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Ex-jogador e comentarista Walter Casagrande Jr. em participação no programa Altas Horas, da TV Globo (Foto: Globo/Fábio Rocha)
Foto: Globo/Fábio Rocha Ex-jogador e comentarista Walter Casagrande Jr. em participação no programa Altas Horas, da TV Globo

Em uma tarde de quinta-feira, 1º de setembro, Walter Casagrande Júnior se senta na sala de casa, em um cenário repleto de quadros de cantores e bandas de rock e duas pilhas de livros dos mais variados assuntos, para discorrer acerca dos temas que permeiam seus 59 anos de vida. Ao longo dos dois últimos meses, o interlocutor, o formato da conversa e o local mudaram, mas não a vontade do ex-jogador e comentarista de falar. Sobre qualquer pauta e sem papas na língua.

Após mais de duas décadas, Casagrande deixou o Grupo Globo, onde comentava jogos e participava de programas, no mês de julho "em comum acordo", segundo comunicado. Não demorou a embarcar em novos projetos: ganhou colunas no portal UOL e no jornal Folha de S.Paulo — nas quais escreve sobre o que bem entender, enfatiza. Participou de dezenas de entrevistas em TV, portais, podcasts e rádios para mostrar uma versão mais completa de si, para além das análises de futebol.

Nesta entrevista ao O POVO, o centroavante que marcou época no Corinthians matou no peito todas as perguntas e não teve medo de chutar para o gol: relatou estar satisfeito com a rotina mais leve fora da televisão, falou sobre a expectativa em relação à brasileira para a Copa do Mundo do Catar, explicou as opiniões em relação a Neymar e valorizou a nova versão da carta pela democracia, além de desabafar sobre o cenário político — tendo como alvo o Presidente da República, Jair Bolsonaro —, minimizar os ataques que recebe na internet e relembrar do amigo Sócrates.

O POVO - Há dois meses, você deixou o Grupo Globo depois de 24 anos como comentarista. Como está a nova rotina?

Casagrande - Minha rotina mudou completamente. Ele não é melhor e nem pior, é diferente, outras coisas eu estou fazendo. Estou bastante feliz com esse novo momento. Estou escrevendo para o UOL e para a Folha (de S.Paulo), me dedicando mais a colunas mesmo, a textos, do que televisão... No ano que vem, se pintar algum convite, a gente vai ver. Mas estou bastante feliz com esse momento porque estou podendo escrever os assuntos que eu quiser, tanto na Folha como no UOL. Escrevo bastante sobre futebol, sobre jogadores, mas escrevo também sobre as questões sociais e políticas, os povos indígenas, todas as questões que eu acho que são importantes e merecem e devem ter espaço.

OP - Sem a rotina de jogo e viagens, você deve ter mais tempo para livre para outras atividades e também para assisir a outras competições, né?

Casagrande - Claro. Por exemplo, eu estou acompanhando mais de perto, com mais frequência, o Campeonato Inglês, que antes eu não conseguia acompanhar porque às vezes estava viajando, fazendo jogo domingo à tarde... Enfim, estou conseguindo ver os jogos com calma, sem ter pressa, porque no outro dia eu não tenho que acordar e ir para o programa de televisão. Por exemplo, eu vejo Palmeiras x Athletico-PR na terça à noite, acaba o jogo, eu escrevo um texto para o UOL sobre aquele jogo, mando e sai no outro dia, porque no outro dia eu posso acordar e ir caminhar no (Parque) Ibirapuera, fazer um treino, ia ao cinema à tarde. Então, eu estou fazendo coisas que sempre gostei, mas era difícil. Eu tinha que organizar a minha agenda, a minha semana... A minha rotina tinha que ser organizada para, por exemplo, poder ir ao cinema, ir jantar, ir ao teatro. E hoje não, se eu quiser ir sábado ao teatro, eu vou e pronto. Não tenho preocupação nenhuma com o outro dia. Estou me sentindo muito bem por causa disso também, me sentindo mais livre. Nada a ver com a questão da Globo. A liberdade que eu estou sentindo é porque mudou completamente o meu espaço. As horas, para mim, estão maiores, os dias estão maiores. Posso sair, me programar para fazer qualquer coisa. Isso está bastante interessante, estou curtindo bastante essa liberdade.

OP - Trabalhando de forma mais atuante na internet, você sente que isso te aproximou mais do público?

Casagrande - O que está acontecendo — e aconteceu muito rápido isso — é assim: o público começar a me conhecer melhor, as pessoas começarem a entender algumas coisas que eu falava quando estava em um programa no SporTV, no Globo Esporte ou em uma transmissão, quando colocava alguma situação social dentro do jogo, alguma situação política dentro do jogo ou nos programas. Quem me acompanha entendia muito bem o que eu estava querendo falar, mas muitos falavam assim: 'Pô, o cara coloca política no meio do futebol, o cara fala coisas sociais no meio do programa'. Então, quando eu saí da TV Globo, eu comecei a aceitar os convites para entrevistas. Estou fazendo isso desde quando eu saí: muitos podcasts, programas de televisão diferentes do que eu fazia. Fiz a Catia Fonseca, na Bandeirantes, que é um programa mais popular, à tarde, foi maravilhoso, curti para caramba; gravei com a (Gabriela) Prioli também, outro tipo de programa; rádios, enfim.

Então, eu estou participando de vários programas, com muito tempo para falar sobre os meus pensamentos, minhas ideias e sobre mim. Hoje, o público me conhece muito mais do que conhecia antes; hoje, me entende muito mais do que entendia antes. E isso não quer dizer que aqueles que não gostavam começaram a gostar ou aqueles que gostavam pararam de gostar, não é isso. Pode não gostar de mim, mas está me entendendo melhor; e quem gostava está entendendo melhor também. Isso, para mim, está sendo muito importante, porque antes eu me sentia um pouco preso nesse sentido: eu recebia muitos ataques desse tipo e não tinha espaço para explicar, para mostrar quem eu sou como pessoa. Agora não, as pessoas me conhecem como comentarista, como colunista e muito mais como pessoa, sabem como eu penso desde criança, porque estou falando da minha desde criança.

OP - O Corinthians faz aniversário este mês (dia 1º de setembro, data da entrevista) e um dos momentos mais marcantes é a Democracia Corinthiana, na qual você foi figura-chave. Qual a importância histórica disso?

Casagrande - A Democracia Corinthiana, lá no começo dos anos 1980, foi destino, encaixando um monte de coisas para acontecer aquilo: jogadores que pensavam da mesma forma no mesmo time, em um time do povo, como era o Corinthians; uma torcida que já tinha se posicionado politicamente na época da anistia; o país ainda na Ditadura Militar pesada, não estava leve como algumas pessoas pensam. Em 81 tinha acontecido o atentado no Riocentro, no Rio de Janeiro, a Democracia começou em 82. Então, muitas coisas estavam acontecendo ali, e o jogador de futebol sempre em uma situação confortável: 'Tudo bem, não é comigo, eu jogo, ganho meu dinheiro, me divirto, mas não me envolvo no que está acontecendo no país'. E ali, de repente, tinha o Magrão (apelido de Sócrates), eu, Vladimir, Adilson Monteiro Alves, que era vice-presidente de futebol... Sem apoio de uma direção não dava para fazer uma Democracia Corinthiana.

As pessoas foram se encaixando, e nós começamos a ter opiniões internas, de decisões de viagens, contratação, concentração e tudo mais, e levamos isso para fora. Em 82 foi a primeira eleição direta para Governo do Estado depois do Golpe de 64 e ali já começamos a participar, pôr a cara. Mas no futebol, para deixar bem claro, nada acontece, você não consegue fazer movimento nenhum se a bola não estiver rolando direito. E a coisa principal do nosso time era que todos nós tínhamos consciência de que tínhamos que jogar muito, ganhar os jogos, ganhar jogando bem, tínhamos que ser campeões naquele ano de 82 .Todo mundo tinha isso na cabeça e nunca teve uma reunião para falar: 'Olha, gente, vocês sabem que nós temos que jogar bem e ganhar, essa é a nossa responsabilidade'. Nós nunca precisamos fazer isso porque todos tinham essa consciência, nunca precisou fazer uma reunião para chamar a atenção de um jogador. 'Ô, meu, você não está se esforçando', nunca teve.

Aquele movimento começou a crescer. É claro que vivenciando você não sabe a dimensão do que está acontecendo. Teve a participação das Diretas Já, que foi uma coisa impactante, em 84, eu, Vladimir, Magrão e o Adilson no palanque do Vale do Anhangabaú, um mar de gente lá. A única participação do esporte naquilo era da Democracia Corinthiana. A única participação de 82 até 84 em relação à política social do país era só da Democracia Corinthiana. Eu não tenho dúvida que foi o movimento mais importante do futebol mundial. Já participei de diversos documentários pelo mundo afora, entrevistas... Não tem uma entrevista, com qualquer jornalista do mundo, que a segunda ou terceira pergunta não seja: 'Me conta como é a Democracia Corinthiana'. Então, foi um marco na história do futebol mundial e dentro do Corinthians. E eu sei que a torcida do Corinthians mudou, nós estamos já em 2022, muita juventude, que talvez não tenha acompanhado, mas o clube e os torcedores têm um carinho muito grande por aqueles personagens.

OP - Você sempre deixa claro que gostaria de ver jogadores se posicionando sobre questões políticas e sociais. Por que acha que isso não ocorre?

Casagrande - Exatamente. O que eu cobro... Eu cobro uma participação como um todo do jogador de futebol, mas na questão política tem gente que não quer se envolver. Ok, ninguém é obrigado. Mas todos não querem se envolver? Quantos jogadores de futebol existem, principalmente os da Europa, que ganham muito bem e estão em uma situação confortável? Não dá para cobrar de jogadores que ganham pouco, que é a grande maioria, na realidade. Eu cobro desses jogadores de seleção brasileira. Tudo bem, não quer se envolver com política, mas todo mundo não quer se envolver com política? 'Eu não quero me envolver com questões sociais', mas todo mundo não quer se envolver com questões sociais? O Brasil está passando fome, hoje a maioria das pessoas não tem café da manhã, almoço e janta, e você não vê o jogador de futebol, em ano de Copa do Mundo... O jogador já tem visibilidade todos os anos, mas ano de Copa do Mundo, jogador de seleção, o que ele fala espalha pelo mundo todo. O que o jogador de futebol, brasileiro principalmente, falar até a Copa do Mundo se espalha pelo mundo todo, e eles não falam nada.

Tem um egoísmo muito grande da classe hoje, eles pensam só neles, não estão preocupados com o que acontece ao redor. Isso é nítido. Acontece racismo dentro do campo e não tem um jogador que dá uma entrevista em solidariedade àquele companheiro, mesmo que seja do outro time, que foi atacado com injúria racial. Ninguém. Tem jogadores, como o Robinho, por exemplo, que é condenado por estupro de vulnerável a nove anos de prisão na Itália, está condenado, mas está aqui na praia (em Santos), andando para lá e para cá, jogando futevôlei, e não tem um jogador que fique indignado com isso. Eles ficam indignados quando alguém escreve uma coluna e faz uma crítica, aí eles ficam indignados, mas com essas situações sociais, não. Eu não tenho mais esperança com essa geração. Tenho mais esperança com a próxima.

As coisas principais que afastaram o jogador de futebol de pensar na parte social são a ostentação e o egoísmo, que são coisas muito próximas. Você é egoísta e tem, então você ostenta. Você não está preocupado, por exemplo, de postar uma mansão, um carro de luxo, férias, iates mesmo sabendo que aqui, no Brasil, 90% das pessoas não têm condições de ter aquilo que eles estão mostrando. Aí os caras falam: 'Por que você acha que o torcedor brasileiro não se identifica com a seleção brasileira?'. Como você vai se identificar se não tem grana para dar alimentação para os seus filhos, é torcedor da seleção brasileira e olha um ídolo seu em um iate? A distância aumenta. A distância social do torcedor com seu ídolo fica grande, ele não se identifica com aquilo, porque é longe dele.

Antigamente tinha mais identificação? Ok, os jogadores jogavam aqui (no Brasil), então o torcedor ia lá e te via dentro do campo, então é um fator muito importante. Não tinham redes sociais, então talvez tinha ostentação, mas não aparecia. O torcedor ficava muito próximo da gente. Lá no Corinthians, a gente treinava no Parque São Jorge, e os associados iam lá no campo para assistir ao treino, você saía e conversava com os caras... Eles não viam muita distância entre eles, que torciam, e a gente, que jogava. Hoje a distância é um abismo.

OP - Os casos de racismo e violência atingem diretamente os jogadores do futebol brasileiro e, mesmo assim, não há posicionamentos mais fortes...

Casagrande - E é no Brasil, né? Porque no Campeonato Inglês, antes de começar (o jogo), os jogadores se ajoelham e fazem uma manifestação antirracista. E acontece pouco racismo dentro dos estádios ingleses, eu não tenho notícia nenhuma ultimamente ou de anos atrás. Aqui é quase toda semana: um torcedor imita um macaco para o outro, chama de 'macaco', com atos racistas, injúria racial, dentro do campo acontece também. A violência, que nem no começo do ano, bomba no ônibus do Bahia, tentativa da torcida do São Paulo, lá no Rio Grande do Sul guerra dentro do campo... Enfim, e os jogadores não falavam nada. Quando fica em silêncio para tudo isso, no mínimo você é conivente. Porque se você não se manifesta contra um absurdo que está acontecendo, você é conivente. Não te interessa, 'não quero me envolver com isso'. Quem não quer se envolver com isso é conivente.

Você tem que se envolver com aquilo. Pode chegar e falar: 'Eu não vi nada demais'. Ok, é a sua opinião. Ou então você se revoltar: 'Cara, nós temos que parar o campeonato porque estão agredindo os jogadores, estão atacando os ônibus', aí você toma um posicionamento. Agora ficar vendo o goleiro Danilo (Fernandes), do Bahia, estourou uma bomba no ônibus e entrou vidro no olho dele, quase parou de jogar, e os jogadores continuaram jogando os campeonatos tranquilos, sem problema nenhum, como se não tivesse acontecido nada. É uma alienação completa.

OP - O que você espera da seleção brasileira na Copa do Catar?

Casagrande - Olha, depende muito da convocação do Tite, das escolhas do Tite. Por exemplo, o Pedro (atacante do Flamengo) tem que ser convocado para a seleção brasileira e, para mim, tem que ser o número 9 na Copa do Mundo. O Neymar está bem? Pô, o Neymar é o 10. O Vinícius Júnior está arrebentando? Pô, o Vinícius Júnior é o 11. Antony ou Raphinha estão arrebentando? Um dos dois lá na (ponta) direita. É assim que se monta uma seleção para disputar a Copa. Você tem um monte de bons jogadores, a seleção brasileira sempre teve. No passado tinham muito mais, mas sempre teve bons jogadores. E aí depende da escolha do treinador. Como você monta uma equipe? Eu monto uma equipe, se fosse o treinador, com aqueles melhores do momento, que, além de jogar muita bola, estão bem naquele momento. O Pedro está muito bem, o Neymar começou uma temporada fantástica, tem o Antony e o Raphinha, o Vinícius Júnior, o Gabriel Jesus em uma fase boa no Arsenal...

Na Copa do Mundo são sete jogos e você não pode chegar, como o Tite fez na última, para recuperar jogador. Ele levou o Fred na última Copa para recuperar. O Fred nem se trocou, nem no banco ficava porque estava machucado. O Renato Augusto, apesar de ser um grande jogador, de ter ido bem quando entrou contra a Bélgica, foi lá para recuperar, ele foi convocado com um problema muscular. Em Copa não dá para fazer isso. E nós temos um exemplo muito grande, que foi 86, em que o Telê (Santana) levou o Zico — sem discussão o talento do Zico, sem discussão —, mas levou o Zico para recuperar durante a Copa, por causa do joelho, teve que operar depois, conseguiu jogar pouquíssimo tempo. Então, levar jogador para recuperar não dá. Se é do mesmo nível ou se esse daqui agora está melhor, leva o cara. São sete jogos.

Depende muito da escolha do Tite, mas vamos lá: a seleção brasileira é boa? É boa. Tem bons jogadores? Tem. O Brasil é respeitado? Muito. A camisa pesa? Pesa muito. A história pesa? Demais, ali tem cinco estrelas na camisa. Agora, você vai levar Daniel Alves? Não dá, não dá para levar Daniel Alves para uma Copa do Mundo nesse momento. Primeiro que ele jogou muito mal no São Paulo, muito mal no Barcelona, o Barcelona nem inscreveu ele na Liga Europa, ele foi para o Pumas e é vaiado pela torcida no México; a imprensa critica, são sete jogos e sete derrotas com o Daniel Alves em campo. Então esquece esse jogador, tem que procurar caras que estão bem. Na lateral esquerda tem o Arana, o Alex Sandro, que ele gosta, o Renan Lodi, são três ótimos laterais, escolhe dois e leva.

Tem que começar a definir e fazer as melhores escolhas possíveis. Se fizer um time justo — bom sempre vai fazer —, o Brasil entra com grande força na Copa do Mundo. Claro, se o Neymar estiver lá (no Catar) na mesma fase que está agora; se o Pedro estiver na mesma fase lá... Tudo isso depende do momento, mas eu escolheria os melhores jogadores mesmo, mais jovens, inclusive, deixar a seleção mais nova.

OP - Além do Brasil, quais outras seleções você considera postulantes ao título?

Casagrande - França é a última campeã, campeã da Liga das Nações, foi campeã em 2018 sem o Benzema, agora vai para a Copa com o Benzema, que provavelmente vai ser o melhor jogador do mundo, porque já ganhou como melhor da Europa. Vai ter uma França com Mbappé e Benzema na frente, de cara, e aí Pogba, aquele time todo. Eu acho a França a mais forte de todas, mas tem o Brasil colado ali, a Bélgica, a Holanda pode surpreender, a Inglaterra pode surpreender e a Argentina. É a última Copa do Messi. Se ele estiver empolgado e colocar na cabeça que quer terminar o período de Copa do Mundo dele como sempre foi, genial, menos em Copa, a Argentina é uma grande favorita.

OP - Você já teve algumas questões com Neymar, com críticas a atitudes dele. Com esse ótimo início de temporada, acredita que ele pode ser protagonista da seleção na Copa?

Casagrande - Depende do comportamento do Neymar. Na última Copa, ele veio de uma contusão, mas não foi esse o problema do Neymar, foi se jogar no chão. Ele virou meme, piada, no mundo todo por causa daquele comportamento. Se ele ficar de pé e jogar, claro que pode ser protagonista. Mas o meu pé atrás é exatamente nessas coisas. Eu tenho um pé atrás por causa disso. Na última Copa, na véspera da estreia, contra a Suíça, o cabeleireiro foi lá pintar o cabelo dele, cortar o cabelo dele. Véspera de Copa do Mundo e você está preocupado com cabelo? Véspera de Copa do Mundo, de final de campeonato, sua cabeça tem que ser o jogo, pensando como que vai jogar, como fazer gol, o que pode fazer, não pensar no cabelo. São essas escolhas que tiram o foco. Isso tira o foco, você ficar pensando no cabelo na véspera de um jogo de Copa do Mundo. Você pode pensar em um monte de coisa, menos no cabelo: pode pensar na sua filha, nos seus filhos, na sua mulher, nos seus pais, tudo isso que te motiva para o jogo, mas não cabelo.

Eu não gostei desse comportamento dele na Copa passada e aí eu tenho o pé atrás. Quero esperar. Talento ele tem, é indiscutível, mas tenho um pé atrás com o comportamento dele. Ele é muito egocêntrico. Às vezes, na última Copa do Mundo, ele quis aparecer mais do que jogar. Ficava se jogando no chão para as pessoas falaram: 'Nossa, olha como o Neymar apanha, como o Neymar toma pancada'. E virou meme no mundo todo. Então, se ele ficar de pé e jogar sério, acredito que ele possa ser um dos protagonistas.

Porque é o seguinte: Benzema vai querer voar porque não foi na última; Mbappé já foi o melhor jovem da última Copa e vai querer ser campeão de novo e talvez o melhor da Copa; Messi é a última Copa, vai querer arrebentar; De Bruyne, Lukaku, os caras da Bélgica, fizeram uma ótima Copa do Mundo passada e não chegaram à final, talvez seja a última de alguns deles lá e vão querer arrebentar também; a Holanda também... Se não chegar na Copa focado e querendo arrebentar vai ser atropelado. Copa do Mundo é assim. Se você vacilar é atropelado.

OP - O Tite já afirmou que não visitará o presidente Jair Bolsonaro em Brasília após a Copa do Mundo, seja em caso de título ou não. O que acha desse posicionamento?

Casagrande - É o posicionamento dele. Se eu fosse jogador da seleção, fosse treinador, como o Tite, fosse auxiliar, o massagista, eu não iria lá cumprimentar o Jair Bolsonaro. De forma nenhuma. Vou cumprimentar o quê? Não tenho nada para cumprimentar pelo que o Brasil está passando, como o país está. Armas na rua, violência, corrupção correndo solta, mentiras, enganações, fake news... Enfim, o Brasil está destruído cada vez mais por causa dele. Por que o Tite tem que ir lá cumprimentar o Jair Bolsonaro? E o Tite tem razão em outra coisa: ele (Tite) vai sair depois da Copa, certo? Ele já falou: acabou a Copa do Mundo, ele sai da seleção. Aí vira o cidadão Adenor. Então o cidadão Adenor não quer ir lá cumprimentar o Jair Bolsonaro e pronto. A responsabilidade é dele, ele assume a responsabilidade. Quem quer ir, vai; quem não quiser, não vai. Não pode ser obrigado a ir.

OP - Diante da saída confirmada do Tite, já há um clamor por técnico estrangeiro na seleção para o próximo ciclo, como o Abel Ferreira, por exemplo. Qual sua opinião?

Casagrande - É claro que a gente prefere sempre treinador brasileiro, mas tem que ter um treinador brasileiro, na hora que o Tite sair, no auge, fazendo grandes trabalhos. E não é um grande trabalho de três, quatro meses. Para ser treinador da seleção brasileira tem que ter grandes trabalhos de três, quatro anos, sempre no topo, levando seu time para final, sendo campeão, classificando... Enfim. E qual é o treinador brasileiro que está fazendo isso há mais de dois anos? Nenhum, nenhum. Qual é o treinador que está fazendo isso? É o Abel Ferreira.

Eu não vejo problema algum, se você não tem um treinador brasileiro no auge, de colocar um treinador estrangeiro, mas que trabalha aqui, conhece o futebol brasileiro, o ambiente do Brasil, já está aqui, foi campeão da Copa do Brasil, bicampeão da Libertadores, Supercopa, vai provavelmente ser campeão brasileiro... É o treinador mais vencedor que nós temos no Brasil nos últimos quatro anos. O Jorge Jesus ganhou dois títulos e saiu; o Rogério Ceni ganhou o título brasileiro no Flamengo e saiu; aí veio Domènec (Torrent), Paulo Sousa, agora veio o Dorival, fazendo um ótimo trabalho, mas de dois meses para cá. Nos últimos quatro anos, quem chegou mais em final, semifinal ou foi campeão do que o Abel? Nenhum. Não estou contando Campeonato Estadual, tá? Estou falando Brasileiro, Copa do Brasil, Libertadores, essas coisas.

OP - O que acha dos bons trabalhos e presença constante de Ceará e Fortaleza na Série A? Você já elogiou o Vojvoda algumas vezes, por exemplo...

Casagrande - Eu adoro (ver) o time do Fortaleza jogar. É muito forte e está demonstrando que é forte, porque passou o primeiro turno inteirinho na zona de rebaixamento, muitas rodadas em último lugar, disputando a Libertadores, passou de fase, foi eliminado, não conseguia encaixar os três campeonatos — Copa do Brasil, Libertadores e Brasileiro —, perdeu, perdeu, perdeu no Campeonato Brasileiro... Olha agora. Já está distante da zona de rebaixamento e vai lutar por uma vaga na Libertadores. Isso mostra que aquele período em que o Fortaleza estava mal era porque não tem um elenco grande, com muita qualidade, para disputar os três torneios. Aí, os principais jogadores começam a cansar, os jogadores vão se desgastando. Quando o Vojvoda ficou só com o Campeonato Brasileiro, olha o que ele está fazendo.

Eu gosto muito do futebol do Fortaleza, gosto de algumas partidas do Ceará, sinto falta do Bahia na Série A, do Sport, Náutico, Santa Cruz, Vitória, principalmente... Esses times têm que reagir, porque fazem parte da história do futebol brasileiro. Fazem parte tanto quanto os grandes times dos grandes centros porque sempre disputaram o Campeonato Brasileiro. O futebol desses times tem que crescer, se estruturar, porque o Nordeste precisa ser mais forte, não pode ficar dependendo de dois, três times só. Tem que ter aquela massa. Tem que ir lá para Recife e ficar uma semana para jogar contra dois times. Na minha época era assim: viajava na segunda-feira para jogar contra o Santa Cruz na quarta à noite e o Náutico no domingo, depois o Bahia na quarta... Era assim.

OP - Há cerca de um mês, houve uma mobilização no país e a leitura da carta pela democracia, você também se posicionou. Qual a importância do movimento?

Casagrande - Vamos falar a real do que está acontecendo no país, a real: a democracia está sendo atacada faz quatro anos, e esse governo não é democrático. O Jair Bolsonaro não quer democracia, quer um país golpista. Aqueles amigos dele lá são tudo golpistas, aqueles empresários que estão querendo financiar golpe, manifestações antidemocráticas no 7 de setembro. Esse é o ponto.

A carta pela democracia foi muito importante e serviu para ver o volume de gente que está preocupada com isso, que assinou a carta e foi lá no Largo de São Francisco, no dia 11 (de agosto), como eu fui. Eu fui o primeiro a assinar a carta depois das pessoas que refizeram a carta, professores, juristas e tudo mais, e fui lá no dia 11 porque acho que tem que marcar presença. Eu não fui lá fazer discurso, subir no palco, falar no microfone. Não fui lá fazer, fui lá para as pessoas verem que o que eu falava na TV, o que eu escrevo nas colunas, eu tenho que ter coerência e ter minha presença também no dia do ato. Não adianta só escrever: 'Pô, legal a carta da democracia, vamos assinar' e no dia eu fico na minha casa assistindo televisão? Não, eu não sou assim. Eu tenho comportamento coerente com aquilo que eu falo, escrevo e minhas atitudes.

Então foi bom para mostrar o volume de gente, no Brasil todo, que está preocupada com isso. A maior parte do povo brasileiro quer democracia, segurar e proteger nossa democracia. Se ele (Jair Bolsonaro) ganhar novamente, aí esquece, não vai ter mais democracia mesmo, porque esse é o comportamento dele. A carta, as manifestações na PUC, na USP, nos outros Estados, em universidades e praças naquele dia da leitura da Carta, foram muito importantes para mostrar que a grande maioria do Brasil quer democracia, os povos indígenas. Se a democracia não prevalecer, a Amazônia vai ser destruída e os povos indígenas vão ser mortos, vai dizimar os povos indígenas aqui do Brasil. Nós não podemos pensar só na gente que vive na cidade. Muito pelo contrário, nós não temos que se preocupar com a gente. Primeiro nós temos que ver os povos originas, que estão sendo massacrados. E se não tiver uma democracia decente, eles vão ser massacrados mesmo e a nossa floresta vai virar um pasto.

OP - Na internet, você acaba sendo alvo de muitas críticas e ofensas. Isso te rende muita dor de cabeça?

Casagrande - Eu me assustei no meio da pandemia quando... Eu não entendia muito de internet, não entendo muito as redes sociais. Eu posto as coisas assim: tiro a foto, escrevo um texto, mando para o meu filho e meu filho coloca. Por quê? No meio da pandemia, eu assinei um impeachment (do presidente Jair Bolsonaro), acho que foi um dos primeiros que eu assinei, e quando chegou lá na Câmara (dos Deputados), o que foi divulgado é que o (pedido de) impeachment do Casagrande e do Chico Buarque tinha chegado lá na Câmara dos Deputados. Aí, eu comecei a ser atacado sem parar, três quatro dias, e eu fiquei assustado com aquilo, um pouco depressivo. Aí eu comecei a sair de grupos e mudei minha postura, de não ficar lendo comentários, por isso que eu passei para o meu filho.

Mas pensar em mudar nunca, jamais. Não tem essa. Eu não fico assustado com nada, não vou mudar de ideia de medo. Se eu mudar de ideia um dia é porque minha convicção mudou, não porque eu estou assustado, sendo ameaçado ou estou com medo. Isso aí não tem influência nenhuma. Eu sei que o Brasil está perigoso, que tem muita gente armada na rua, cheia de ódio, inclusive, mas eu sou fiel àquilo que eu penso. A minha ideologia não é de hoje, eu não sou democrático de modinha. Eu sou democrático desde 79, quando me entendi como gente, na luta pela anistia. Esse tipo de pensamento, coerência e postura são muito importantes para mim e para quem me ouve, lê e vê, porque as pessoas olham... Você pode não gostar de mim, mas o cara vai olhar assim: 'Ele escreve, fala e tem atitude igual'. Isso que é importante, mostrar coerência.

OP - Uma das ofensas mais frequente acaba sendo relacionada à dependência química. Como você lida com isso?

Casagrande - Baixo e mentiroso, porque eu não uso drogas. Eu fui usuário, sou dependente químico, mas não uso drogas há anos. Não fumo, não bebo, não faço nada. Eu vou contar uma historinha curta, que aconteceu no Ibirapuera, para você ver como eu penso. Não me importa se vem um milhão de ataques desse tipo, 'viciado', 'drogado', 'financiador do tráfico', 'cheirador'... Vem um milhão desses ataques. Aí, eu vou caminhar pelo Ibirapuera, uma senhora me para e pede para tirar uma foto. Eu tiro, e ela me fala assim: 'Casão, eu vi sua entrevista lá no programa Bem Juntinhos, do GNT, da Fernanda Lima e do Rodrigo Hilbert, e aquela entrevista sua ajudou meu sobrinho'. Isso é goleada no milhão de ataques, é goleada.

Porque o que eu passei na minha vida, os livros que eu escrevi, a série que saiu, estão servindo para isso: alertar, dar conhecimento e ajudar pessoas, encorajar pais e dependente químico a procurar ajuda, a ser internar, entender uma internação, um tratamento. É esse o meu papel. Não têm influência nenhuma na minha cabeça esses ataques. O que tem influência na minha cabeça é exatamente quando eu encontro pessoas que me falam isso, e não é uma só. Desde quando eu escrevi o livro com o Gilvan Ribeiro, em 2013, acho, 'Casagrande e seus demônios', de lá para cá diversas pessoas falaram isso para mim, que ajudou o filho, a filha, o marido, a mulher, sabe? Diversas pessoas. E é isso que é importante, é isso que vale.

OP - Você lançou livros, documentário, falou em entrevistas, deu palestras... Qual a importância de compartilhar sua experiência na luta contra as drogas?

Casagrande - É claro que eu fui mudando, amadurecendo, nesse tempo todo que eu comecei a fazer palestra e ter contato com as pessoas. Eu estava em pleno tratamento ainda e dando palestras. Como eu me trato até hoje, só que hoje é de 15 em 15 dias, que eu vou fazer uma terapia com a psiquiatra, a psicóloga e um grupo terapêutico do pessoal que está internado. Mas quando eu comecei era tratamento todos os dias e fui evoluindo, evoluindo. O que eu quero é esclarecer a sociedade do que é dependência química. É isso que precisa ser feito.

A sociedade não sabe o que é dependência química e tem muita gente ainda que acha que o dependente químico é ligado com a marginalidade ou é ligado com o tráfico ou é vagabundo, por isso que usa droga. 'Vai trabalhar que você para de usar', 'vai estudar, vai fazer alguma coisa que você para de usar drogas', que é o comum ouvir. E dependência química é uma doença como todas as outras doenças. Você não fala para um cara que tem diabetes, que está em casa, em crise: 'Vamos trabalhar, vai fazer alguma coisa que isso passa'. É doença. A dependência química é a mesma coisa. Você tem que esclarecer a sociedade para ela entender que aquilo é uma doença e que não é na violência, no grito ou na imposição que você vai conseguir nada. O cara não consegue, não é que ele quer ou não quer; ele não consegue mais parar de usar. É isso que tem que ser esclarecido e é isso que eu tento fazer.

OP - A entrevista abordou diversos temas que remetem à amizade entre você e o Sócrates. O quanto sente falta dele e como acha que seria essa relação hoje?

Casagrande - Eu tenho diversas saudades do Magrão. Primeiro, eu queria que ele tivesse visto eu me recuperar. Queria me sentar com ele para conversar hoje bebendo água, porque ele também era dependente químico e morreu por causa do alcoolismo. Queria conversar sobre isso, queria que ele lesse as coisas que eu estou escrevendo, visse os meus posicionamentos na TV e em todos os lugares. Ele estaria comigo no Largo de São Francisco. Sentar para conversar sobre a política, sobre futebol também, por que não?

Eu tenho diversos momentos de saudade. Quase todos os dias, em algum momento, eu lembro dele, até porque tenho foto com ele aqui na minha frente, no sofá, tenho um boneco do Magrão... Em qualquer lugar que você entrar aqui na minha casa vai ver alguma coisa que me relaciona com o Magrão. Uma coisa que eu lamento — eu não tive culpa e nem ele teve culpa —, mas eu não recuperei tanto na época que ele estava mal. Eu ainda não era tão recuperado assim, não entendia tanta coisa assim. E quando eu tive contato com ele, ele já estava mal, era irreversível a situação. Eu tive que me cuidar por muitos anos, fiquei internado um ano, tive que correr atrás para que eu saísse daquele buraco.

Ele foi embora sabendo que eu era apaixonado e tinha amor por ele, eu falei isso para ele em um programa de televisão. Quando ele morreu, eu fiquei muito triste e chateado, com saudade dele, mas não tenho dor. Porque ele sabe que, além da família dele, tinha um cara a mais ali que tinha amor por ele, que era eu.

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