Das várias memórias que Sebastião Ribeiro do Nascimento tem sobre a infância, uma das principais recordações é o carinho repassado a ele e aos irmãos por sua mãe. "Mesmo com todas as dificuldades", ela surgia alegre para abraçar seus filhos e repassá-los o tal sentimento que mobiliza caminhadas.
Natural de Caxias, no Maranhão, Sebastião ouvia de sua mãe a necessidade de "estudar para mudar de vida", em um contexto de luta por melhores condições diante do cenário de seca que encontrava na cidade.
O tempo passou, ele e sua família mudaram de cidade (e de estado), mas a luta pelo "desenvolvimento pessoal" nunca saiu da vista de Sebastião Ribeiro. Quando chegou a Cubatão, na Baixada Santista (SP), não sabia ler, mas depois de muita persistência conseguiu entrar em uma universidade e se formar em Direito.
Sebastião, que passou a ser mais conhecido como "Zumbi", em homenagem a Zumbi dos Palmares, chegou a vender águas em uma rodovia, mas, quando houve duplicação, precisou encontrar outra ocupação. Ele se tornou líder comunitário na comunidade onde passou a viver, no bairro Vila Esperança.
O bairro, construído em uma região de proteção ambiental cercada pelo mangue, sofria com toneladas de lixo despejadas diariamente nas ruas e no mangue. Com a associação "Cubatão de Bem com o Mangue", Zumbi criou o "mangue", moeda para auxiliar na conscientização ambiental dos moradores. Desta forma, eles deveriam entregar materiais recicláveis para receber a moeda.
Com o tempo, Zumbi e os moradores lutaram cada vez mais por melhorias na região, como água regularizada, saneamento básico, limpeza do mangue, construção de escola e promoção de cursos de inglês para a juventude. Atualmente, é Secretário Municipal de Assistência Social de Cubatão. Em entrevista por telefone ao O POVO, Zumbi destacou a educação como ponte para transformar vidas e falou sobre a importância do "incômodo" como motivador para reivindicações sociais.
O POVO - Você é natural do Maranhão. O que você guarda de lembrança da infância?
Sebastião Ribeiro (Zumbi) - Eu saí do Maranhão com 12 anos de idade. Morava na cidade de Caxias, mas não no centro, morava praticamente no interior da cidade. As recordações que tenho, que me lembro, é que minha mãe saía todos os dias muito cedo, às vezes levava eu e meus irmãos, e a subsistência dela era por meio do coco babaçu. Ela ia muito cedo pegar os que caíam, ela não tinha condições de subir na árvore. Então, por isso que ia muito cedo, porque depois aqueles que tinham habilidade de subir conseguiam arrecadar mais cocos. É uma lembrança muito dura, de alguém que foi sustentado pela mãe - lógico que, dentro desse contexto, a gente passou por muita dificuldade, mas o que me marcou foi o carinho da minha mãe. Mesmo com todas as dificuldades, ela sempre estava alegre e dando carinho para os filhos. Trago isso até hoje nas minhas memórias.
O POVO - Qual a importância dela na sua trajetória?
Zumbi - Ela foi a referência. Hoje, costumo dizer que, quando cheguei em Cubatão, a gente foi morar em uma área que tinha um pouco de violência e o que fez a gente não aderir a esse caminho foi exatamente a minha mãe. Eu dizia: "Poxa, ela lutou e acreditou tanto, a gente não pode errar. Ela tem que ter orgulho da gente". Então, ela teve uma importância gigante na minha vida.
O POVO - Você se lembra de outras inspirações ao longo de sua caminhada?
Zumbi - Ah, lembro, porque eu comecei também a buscar renda para casa. Eu perdi a minha mãe muito cedo. Então, lembro que minha caminhada sempre foi na área de vendas. Fui vendedor de laranjas, de alfaces, mas eu via isso com muita alegria. A gente ganhava um dinheirinho, mas se divertia muito como vendedor. Minha mãe, por outro lado, sempre estimulava a gente a estudar para mudar de vida, então tem essas fases da nossa vida que a gente nunca esquece.
O POVO - Como o símbolo Zumbi dos Palmares entrou na sua vida?
Zumbi - Ele entrou na minha vida em 1996, quando eu era estudante do Ensino Médio. Conheci na escola a história do Zumbi e resolvi fazer uma homenagem a ele por causa dos 300 anos de morte dele. O apelido acabou pegando, mas sempre vi isso com muita responsabilidade. A história do Zumbi dos Palmares é muito forte, de muita luta, intensidade e persistência. Então, dentro do possível a gente traz isso para o nosso dia a dia, lógico que de uma maneira bem menor, mas também até para preservar a história do líder maior que é Zumbi dos Palmares.
O POVO - Quando você mudou para São Paulo, o que você esperava encontrar e o que acabou acontecendo na realidade?
Zumbi - O que nos fez sair do Maranhão foi a seca. Para você ter uma ideia, a gente morava em um bairro em que praticamente toda a área virou deserto. Você dependia 100% da natureza. Imagina ficar mais de um ano sem chuva? O coco começa a sofrer, o buriti começa a ficar escasso, e aí os mais velhos tiveram que fugir do Maranhão à procura de um emprego. Um colega do meu irmão falou de Cubatão. Ele foi trabalhar na Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) e havia muitas oportunidades. Então, um foi trazendo o outro. Como eu era menor de idade, minha mãe e eu fomos os últimos a chegar. Quando chegamos em Cubatão, fomos morar na Vila Paris, um bairro que nem existe mais, mas se alguém quiser conhecer é só colocar na internet, tem muita história legal. Com um mês, a gente foi para onde é a Vila Esperança hoje. A gente esperava encontrar pelo menos alimentação lá. Não havia os programas sociais que existem hoje, então a gente passou por um momento muito difícil - não só nós, mas todas aquelas famílias. A lembrança que eu tenho é do bairro deserto. Pessoas foram embora e deixaram suas casas para trás à procura de sobrevivência. Quando a gente chegou em Cubatão, eu vi muita riqueza. Havia muitas pessoas reclamando, mas todo mundo almoçava, jantava, tomava café da manhã, ao contrário da gente, que tinha muita dificuldade. Então, achei aqui um lugar muito rico. Nunca reclamei de Cubatão, porque, de onde eu vim, consigo ter essa visão.
O POVO - Essa sua mudança se relaciona com o período em que você passou a vender água?
Zumbi - Isso, quando nós chegamos aqui os mais velhos foram trabalhar na indústria. Eu era menor. Eu subia a pista para ver carro, porque adorava ver carros, e aí as pessoas começaram a pedir água para mim. Então, comecei a buscar. A primeira água que eu trouxe foi em uma jarra, usava um copo para entregar para as pessoas. Depois, vi que era necessário algo melhor. Quando fui ao mercado, vi que tinha água em garrafa e comecei a comprar. A primeira caixa de garrafas que eu comprei vendeu em uma velocidade muito grande. Aí, pensei: 'Poxa, isso é um negócio, não é só um favor que eu estou fazendo'. Comecei a fazer isso e toda a minha família passou a vender até então. Era um sucesso.
O POVO - Em que momento isso foi interrompido?
Zumbi - Foi com a duplicação do sistema Rodovia Pedro Taques (agora chamada de Rodovia Padre Manoel da Nóbrega), que é uma rodovia que liga a Baixada Santista, em São Paulo. Em São Paulo (capital) não tem praia, então os paulistas descem a baixada por causa da praia. O governo do estado duplicou a rodovia para facilitar o fluxo desses turistas. Com essas obras, o meu negócio caiu praticamente 90%. Eu tive que voltar ao mercado de trabalho, mas como tinha pouca qualificação, não consegui. Foi aí que entrou o movimento comunitário em minha vida. Eu fui lá por acidente. Passei a assistir às reuniões e até a melhorar minha saúde mental. Quando cheguei lá, vi duas coisas que me marcaram muito: primeiro, vi que meu problema era muito pequeno diante dos problemas dos demais; segundo, vi que ali estava uma oportunidade rica para realizar sonhos. Foi isso que a gente tentou. Às vezes, as pessoas diziam que não dava para fazer as coisas, mas sempre achei que as coisas não eram difíceis, eram trabalhosas.
O POVO - Com a entrada no movimento comunitário, o que você foi descobrindo sobre a relação com o poder público em pautas como educação e meio ambiente?
Zumbi - Eu percebi que precisava também me envolver pessoalmente. Quando eu cheguei na associação, a gente pegou uma associação que estava limitada a tapar buraco, trocar lâmpada, e eu vi que era algo muito maior. Então, me despertou que, por menor que fosse em relação a uma prefeitura e ao estado, a gente podia fazer a diferença. Então, eu comecei a estimular as pessoas: "Olha, a gente precisa se organizar, as pessoas precisam admirar e ter respeito pela gente, não ter medo". Foi o primeiro passo que eu implantei: trocar o medo de às vezes ser visto como uma comunidade que "faz bagunça" por respeito e admiração. Quando vem isso, as coisas começam a acontecer. Eu também vi que a sociedade, assim como era com a minha mãe, valoriza muito quem se esforça e busca vencer pelo estudo. Comecei a trazer cursos de inglês, alfabetização, qualificação e palestras para a comunidade. Foi muito parecido com o que aconteceu com a minha família no Maranhão. A gente estava do lado da riqueza, mas a nossa peneira impedia que a gente a visse. Muitas vezes a associação tem tudo na mão, mas não enxerga isso, fica esperando um milagre acontecer e aparecer alguém com varinha de condão para resolver os problemas. Tem que correr atrás, apostar no futuro e trabalhar muito no presente.
O POVO - Você carrega o discurso de que o sonho pode ser realizado por qualquer pessoa. Como trabalhar isso de uma forma que não caia no sentido da meritocracia?
Zumbi - Até falei sobre isso no início do mês, quando ocorreu a formatura de Jovens Aprendizes. Tanto eu quanto os que me antecederam focamos muito na questão do apoio da família. Para eu ter chegado à universidade aos 40 anos, primeiro que eu sempre acreditei em sonhos e em realizá-los, nunca deixei o pessimismo e os obstáculos matarem meus sonhos. Sempre achei que minha hora ia chegar e eu acredito muito no poder da palavra. Agora, lógico, por trás disso existe o lado fundamental do apoio da família. Todos temos alguém que foi responsável por trazer a gente ao mundo e essa pessoa vai lutar pela gente, acredito, a vida inteira. Então, é necessário reconhecer a família como a base dos estudos. Chegar a uma universidade aos 40 anos e fazer um curso de Direito e depois de quatro tentativas fracassadas… Não é só sucesso na vida da gente. Antes da realização, vamos ter muitas frustrações e muitos insucessos.
O POVO - Em relação à segurança pública, muito mudou em São Paulo desde que você mudou. O que é preciso fazer e de que forma agir para afastar jovens do caminho da criminalidade diante da falta de perspectivas?
Zumbi - Em relação à segurança pública, infelizmente ainda temos uma longa caminhada pela frente. A criança que hoje tem dez anos estará maior daqui a oito anos. Quais as perspectivas que a sociedade oferece a ela? É um caminho complexo e difícil que toda sociedade organizada precisa olhar com muita atenção. O trabalho que a associação faz é um trabalho muito pequeno e limitado frente a isso, mas nosso papel principal é estar de portas abertas para os jovens, auxiliando na qualificação deles quando fazemos parcerias com instituições como o Senai, justamente para contrapor esse cenário. Às vezes, falta esperança para os jovens. Eles querem comprar, ir para a balada, e às vezes vêm já de uma família em que o pai ou a mãe não venceram e que talvez não entenda a importância do desenvolvimento pessoal e dos estudos. Entretanto, não porque desistiu, mas por ter vindo de um ciclo familiar em que o estudo não fez a diferença. Mas aí a gente diz: "Olha, a única coisa que vai mudar nossa vida - não agora, mas a médio e longo prazo - é o conhecimento social. É fazer um curso para aprender a consertar celular, a consertar carro… É você investir no desenvolvimento pessoal". Esse é um grande desafio que enfrentamos aqui todos os dias, mas reconhecendo que nossa participação ainda é muito pequena como sociedade organizada. A gente clama para que as autoridades de outras esferas votem nisso como prioridade, foquem em como gerar oportunidade e renda e, mais importante que isso, em como manter acesa a chama da esperança para nossas crianças, nossos adolescentes e futuros profissionais. Tudo isso para que não "joguem a toalha" e achem que vender drogas é o caminho ideal ou então venham a entrar no mundo do crime.
O POVO - Nesse sentido, quanto o incômodo é capaz de mobilizar as pessoas em busca de melhorias?
Zumbi - Eu me sinto extremamente incomodado com essa questão, principalmente quando se trata de jovens e do futuro, porque eu passei por isso, mas em um outro cenário. Eu estive ao lado da minha mãe, que trabalhava, lutava e que jamais pensou em se desviar desse caminho. Hoje, com os meios de comunicação na palma da mão de todo mundo, a gente tem exemplos catastróficos para quem está começando, como pessoas que enveredaram para o outro lado. Entretanto, há também exemplos que passam a sensação de que está tudo bem, o que acaba deixando de ser um estímulo. Sem querer ser tradicionalista, a gente diz que isso não é a regra. A regra é as pessoas crescerem pelo desenvolvimento pessoal. Hoje, a gente está trabalhando muito para trazer nossa equipe da juventude para dentro de uma realidade que eu acho que é instável. Tem que ter a cobrança. Acho que nada disso faz sentido se a gente não se incomodar e cobrar as autoridades eleitas. Além disso, questionar quais são seus programas para os jovens, para gerar empregos para essa juventude. Eles sentirão que não estão sozinhos nesta caminhada.
O POVO - E você se vê como referência para a sua comunidade? Como é isso para você?
Zumbi - Eu prefiro dizer que eu faço a minha parte. Quando eu digo: "Olha, você pode ser um bom advogado, médico ou pedreiro", eu não falo apenas por falar. Eu penso que, com 40 anos, eu não quis achar que estava perdido. Eu passei em um concurso dificílimo, que é o Enem, exatamente para dizer para eles que era possível. Na sequência, estudei Direito, um curso extremamente difícil, para dizer também que era possível entrar em um curso superior e se formar. Depois, os frutos começam a vir. Você monta escritório, começa a trabalhar e a ter bens que antes eram impossíveis. Eu espero que isso seja visto positivamente, que alguém que mora na comunidade veja meu exemplo acredite que se eu consegui, outras pessoas também podem. Eu prefiro que vejam a história dessa forma.
O POVO - Este é um momento de transição de governos. Como você observa esse período de mudanças e o que deseja neste novo período, tanto em relação à sua vida quanto à comunidade?
Zumbi - A princípio, toda mudança causa uma certa preocupação na gente, mas o que move o nosso sentimento é a esperança de que aqueles que assumirão cargos a partir do ano que vem, tanto no Congresso, nas Assembleias e no Poder Executivo Federal, tenham muito respeito e carinho pela nossa comunidade. Não acho que quem foi eleito está indo com o pensamento de que a partir de 1º de janeiro fará mal às pessoas. Eu tenho muita esperança de que as políticas públicas encontrem tudo isso que nós já falamos aqui, para que sejam geradas oportunidades e esperança para a nossa população. É isso que eu espero junto com o ano novo. Eu sou muito otimista em relação ao nosso País e às pessoas que Deus permitiu que estivessem à frente do Brasil. Então, nesse primeiro momento, tenho muita esperança e fico na torcida para que tudo dê certo, e que o sucesso deles seja também o sucesso da gente por aqui.
O POVO - Você ainda tem sonhos a realizar? Tanto em sua caminhada pessoal quanto no que você espera para comunidade de Cubatão?
Zumbi - Eu tenho um grande sonho que é um dia ser um magistrado no nosso País. Estou lutando, não é um sonho em vão. Eu busco conhecimento e penso que contribuiria muito para o poder judiciário, porque existem muitas injustiças. Não significa que eu vá corrigir todas elas, mas quero contribuir futuramente, se for a vontade de Deus. Tenho também o desejo de que aqueles que, como eu me encontrava antes de fazer Direito, com pouco acesso ao poder judiciário, possam participar. É um poder que ainda precisa evoluir muito, mas é um processo, assim como todas as instituições que estão sempre em evolução. Eu tenho esse sonho de contribuir nessa área.
O POVO - Isso também se inclui em relação à comunidade?
Zumbi - Inclui, porque não existe política social sem justiça. A nossa comunidade é uma área que inicialmente era invadida, mas graças à nossa luta a gente conseguiu a transferência dessa área para o município e agora existe um processo de regularização e urbanização. A gente sonha com a nossa comunidade daqui a alguns anos com muitas melhorias, mas acima de tudo com as pessoas se preparando também para prestar bons serviços para nossa própria comunidade. Ela ferve em prestação de serviço. Com as pessoas entendendo que é uma área que está muito forte e que a gente precisa oferecer o melhor, aí não falta trabalho, não falta renda. A gente está nessa caminhada de visualizar muitas coisas boas para as comunidades.
Zumbi em Fortaleza
No início de dezembro, Zumbi esteve em Fortaleza. Ele participou da formação Amana Key, voltada para gestão e desenvolvimento pessoal. A programação foi realizada no Mareiro Hotel, na Avenida Beira-Mar.
Spike Lee
Zumbi chegou a gravar depoimentos sobre sua atuação na questão ambiental para o documentário "Go, Brazil! Go!", do diretor norte-americano Spike Lee. A obra começou a ser gravada em 2012 e falaria sobre o Brasil enquanto potência, reunindo entrevistas com nomes como Lula, Dilma Rousseff, Seu Jorge, Criolo, Emicida e Gilberto Gil. A produção, porém, não foi lançada "por problemas jurídicos", como disse Spike Lee ao jornal Folha de São Paulo em novembro.
Solidariedade
"Sempre fica um pouco de perfume nas mãos de quem oferece flores": essa é uma das mensagens mais propagadas por Zumbi. Com a frase, ele adota o sentimento de que, quando você dá algo a alguém, você recebe, sem saber, mais do que oferece. Assim, ele busca despertar em outras pessoas o comportamento da solidariedade e do pensamento no próximo.