Existe vida após a morte? Para quem conviveu por quatro décadas de carreira com vivos e mortos, a resposta é óbvia: “Os mortos falam”. O legista Francisco Simão, de 67 anos, hoje aposentado, revela sempre prezar pelo respeito ao falar sobre o tema. Essa frase, aliás, foi um mantra em seu ofício.
Cirurgião cardiovascular que depois migrou para as necropsias, exumações e exames de corpo de delito, doutor Simão admite que, para ele, a morte é "inimiga, não gosto dela nem um pouco". Acredita ser "dever do ser humano procrastinar o máximo possível esse momento do óbito".
Mesmo não querendo a morte por perto, nunca conseguiu se desvencilhar dela em vida. Foi gestor do antigo Instituto Médico Legal (antigo IML, hoje Pefoce), do Sistema de Verificação de Óbitos (SVO) e do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), órgãos públicos que cruzam diretamente esse atendimento à população.
Simão é uma memória viva da violência no Ceará no final do século e nas primeiras décadas deste século XXI. Ao O POVO, remonta casos antológicos, como a chacina dos portugueese, fala de políticas públicas e dignidade para os mortos, de quanto tentou entrar na própria política, do que viu estando numa sala cheia de mortos e somente ele como o vivo no local, dos casos mais difíceis que já lidou. Para isso, esbanja uma memória detalhista capaz de elevar diversas histórias.
O POVO - Como o senhor se tornou médico legista?
Dr. Simão - Terminei o curso de Medicina visando exatamente cirurgias cardíacas. Já acompanhava, remotamente, desde o terceiro ano, o doutor Régis Jucá (cardiologista, falecido em 2004), que era meu mentor e a pessoa com quem eu entrei no ramo da Medicina. E houve um concurso público onde tive êxito, e já comecei a trabalhar assim que terminei a faculdade, em 1980. Me pediram para fazer uma substituição administrativa — o diretor na época era o doutor Maurício Lucena —, pois ele iria viajar, então fiquei resolvendo os problemas temporariamente. Depois, ele me manteve em um cargo de apoio assistencial. E sempre que ele precisava viajar, eu assumia.
Fui da primeira equipe. Fiquei 30 anos dentro do IML. Ocupei todos os cargos da direção central, e, depois, migrei para a Secretaria da Segurança Pública, que foi quando conseguimos evoluir administrativamente o órgão. A partir dali, o IML começou a crescer e ter uma diretoria técnica. Isto melhorou muito a administração financeira, na hora de comprar equipamentos, investir em mais tecnologia, e fazer um trabalho integrado dos vários institutos. Algo que cada vez mais vem evoluindo.
Entrei no final de 1980. Passei 30 anos como gestor de alguns cargos, como diretor-geral do órgão e, posteriormente, a secretaria, que hoje é a Perícia Forense (Pefoce). Nisso foi criada uma diretoria que era chamada de técnico-científica, que foi a evolução da direção do IML, que abrigava os três institutos e que hoje é a Pefoce, que é uma instituição com mais autonomia, mais capacidade financeira e técnica. Logo no início, na minha época, a competição era muito forte. Precisava de um microscópio, o Batalhão de Choque precisava de uma metralhadora. A segurança pública iria atender qual demanda? A da metralhadora. Então, até se extinguir esta cultura para ter um instituto para ajudar na metodologia de trabalho e dentro do contexto das investigações demanda tempo, mas deu certo.
E hoje vemos um Instituto Médico Legal, Pefoce agora, fortalecida, robusta. E um detalhe importantíssimo: naquela época existia apenas uma (sede do IML) no estado do Ceará. Quando nós saímos ficaram três. Hoje há dez, e mais dois estão sendo construídas. Com isso, a quantidade de pessoas que passam a ser beneficiadas com os exames realizados se torna muito maior.
OP - Qual sua fé?
Dr. Simão - Sou católico. Acho que tem alguma coisa após a morte. Não para por aí. Sou religioso, não frequento igreja, mas faço os rituais.
OP - Os casos mexem com a sua religião?
Dr. Simão - A gente fica pensando, será que quem está certo são os espíritas? Tem tanta contradição. Às vezes, ia para debates de grupos espíritas, lá também tem uma série de contradições. Talvez eu possa eventualmente mudar para a religião espírita. Mas, no momento, sigo a religião católica, é o mais perto do que eu creio.
Clique na foto e confira o trecho da entrevista em que Dr. Simão aborda o tema
OP - O senhor tem medo de sofrer uma morte violenta?
Dr. Simão - Não. Mas tenho medo de morrer. A sequência aí não importa.
OP - O senhor disse que teme a sua morte, mas como você encara este medo dentro da sua profissão?
Dr. Simão - Dos meus quatro filhos, três são médicos. Estou vendo meus netos. Aí você começa a projetar: queria ver médico formado a partir do outro médico. Queria que meu neto já fosse um profissional. Quando você começa a ver um plano, e este plano começa a ficar esticado, aí você começa a ponderar a questão de realmente morrer. A questão da saúde, você consegue fazer alguma coisa. Eu era muito gordo, cheguei a pesar 135 quilos, hoje peso 75, embora tenha vivenciado esse problema de coração que quase me levou.
Isso me deixou mais cauteloso e mais cuidadoso. Mas tem a questão da morte violenta. É fazer o que pode. Tenho um carro normal e um carro blindado. Se eu sair à noite, sei que a probabilidade de eu morrer em um assalto é dez vezes maior do que se eu for pela manhã. Mas se precisar ir à noite, vou no blindado. Você vai procurando minimizar estas situações. Acho que é competência e é dever do ser humano procrastinar o máximo possível esse momento do óbito.
OP - O senhor não acha que a morte tem uma data marcada?
Dr. Simão - Acho que ela não tem. Acho que ela sofre umas ponderações para cima e para baixo. Que ela vai acontecer, é inexorável. Eu pegava as consideradas mortes evitáveis, por afogamento. Férias, o meu gráfico de afogamento ia lá para cima. Precisava acionar a Prefeitura para triplicar o número de salva-vidas naquela época de férias, se não minhas estatísticas seriam isso. E era só o que acontecia mesmo. Por exemplo, chegava na Praia do Náutico tinham bombeiros e salva-vidas da Prefeitura, que era uma área movimentada, mas chegava na Praia do Futuro, que era deserta, o povo morria, porque não tinha ninguém. Teve uma época que disparou o número de pessoas que morreram por afogamento. Fui investigar, tinham feito uma mudança administrativa. Deram uma gratificação aos que eram guardas do rapa, e todos os salva-vidas haviam se transformado em guarda do rapa. Então a morte é evitável.
OP - A morte pode ser tapeada?
Dr. Simão - Ela pode ser… não é hoje, vamos deixar pra amanhã (risos). Como num pagamento, vamos refinanciar aí (mais risos). Então, dentro das mortes evitáveis, que a gente acha que nem existe, mas é vital, construção civil, acidente de trabalho, começamos a fazer necropsias. O que comecei a observar? Estômago vazio (das vítimas). Media glicose, dava lá embaixo, hipoglicemia. Você está em uma laje de 24 andares, sente uma tontura, despenca. O equipamento de segurança era zero. O cara achava que se equilibrava e nada. Morria mesmo. A gente fez um levantamento, mostrou isso. Fomos para a Assembleia Legislativa, com uma matéria dentro da sala de necropsia. Mário Mamede (deputado estadual à época), médico, com quem sempre tive boa interlocução. Ele transformou isto em uma legislação.
As empresas de construção civil passaram a se tornar obrigadas, depois de um determinado número de funcionários, a fornecer alimentação de manhã. O cara mora longe, vai de bicicleta (para o trabalho), já vai queimando (caloria). Chega, vai literalmente carregar pedra. Sol a pino, desidrata, a glicose fica lá embaixo. Tem tudo pra morrer. Isso foi um dos momentos de maior satisfação nossa, no sentido de tirar uma informação técnica, levar para o público, levar à imprensa, que sempre foi uma aliada. E eu não tinha assessor de imprensa, era na marra. Imagine se tivesse (risos).
OP - O senhor lidou com a morte a vida inteira e não gosta dela. É isso?
Dr. Simão - Ela é minha inimiga. Não gosto dela nem um pouco.
OP - Mas o senhor fala de morte violenta e morte natural?
Dr. Simão - Falo de qualquer morte. Cada uma é pior que a outra (risos). As duas têm um resultado ruim. Meu outro lado era operar coração (quando começou), dos tempos do doutor Régis Jucá. A gente lutava, lutava até o fim para evitar o óbito, para evitar a morte dos pacientes, como médico legista e como médico cirurgião cardiovascular.
OP - A sua lida com a morte é sempre de conflito?
Dr. Simão - A minha lida com a morte é sempre de respeito a ela. E saber que ela existe. Ela existe e ela está por ali, em algum lugar.
OP - Mas…
Dr. Simão - Mas você tem que estar atento a ela para mudar o caminho, mudar a trajetória. Mandar ela retornar a posteriori, “daqui a uns 10 anos você entra aqui” (risos).
OP - O senhor está com que idade? Que ano foi sua cirurgia no coração?
Dr. Simão - Estou com 67 anos. (A cirurgia) Foi sete anos atrás (2015). Fiz safena e mamária. Foram três, uma mamária e duas safenas. E hoje dois dos três filhos, que são médicos, são cirurgiões de coração. E um deles é cirurgião do coração e médico legista, igual a mim. E tem um que é educador físico. O primeiro é o Alexander, é uteísta (trabalha em UTI). O outro é o Felipe, é cirurgião cardiovascular. E o Daniel é cirurgião cardiovascular e legista. E o Leonardo é educador físico. Minha esposa é a Fátima, fisioterapeuta. Todo mundo da saúde.
OP - Mas foi natural o caminho deles?
Dr. Simão - Natural, mas a gente dá uns conselhos (risos). Não pode deixar ser muito natural, não. Dia de domingo, por exemplo, saía com eles pra passear e recebia um telefonema. “Ó, deu um problema aqui no IML”, lá ia eu pro IML. Eles ficavam correndo no IML, naqueles corredores. De repente, eu dentro da sala de necropsia, o menino chegou, era exatamente o Daniel. Ele tinha dois anos. Pensei que o menino não ia dormir naquela noite. E o Daniel acabou seguindo a mesma linha. Mas, lá em casa, a morte é um tema como um gol de futebol.
OP - Era um tema normal?
Dr. Simão - Sempre foi um tema normal. “Pai, tá cansado hoje? Muito cadáver?”, “morreram quantos hoje, pai?”, “muito cadáver hoje?”.
OP - O senhor sabe quantos corpos chegou a lidar em sua carreira no IML e SVO?
Dr. Simão - Sei não, não tenho nem ideia. Na minha posição de gestor, eu era tanto gestor como também atuava, porque para ser um bom gestor você tem que sempre estar com conhecimento técnico em dia. Eu ia para cima mesmo, quando era um caso complicado, eu confiava na minha experiência. Confiava no meu trabalho, principalmente. Mas não sei quantos corpos eu lidei. Quarenta anos é muita coisa. No SVO foram mais de 7 mil só no período de quatro anos, e era uma proporção menor que no IML, que tinha um quantitativo muito grande.
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OP - Quando o senhor assumiu o IML como gestor, o cearense indigente ainda era enterrado em sacos?
Dr. Simão - Era enterrado em uma cova comum, dentro de sacos. Eventualmente até sem sacos. Era simplesmente aberto no espaço do cemitério São João Batista, tinha um local isolado, chamado local dos indigentes. Se fazia a cova, colocava os corpos, e se cobria. Pior do que na guerra. Vala comum. Foi o primeiro impacto que percebi, vi e analisei que jamais poderia acontecer. Foi uma das primeiras ações que nós começamos a lutar, no sentido de que isso fosse literalmente cessado. Espaço em cemitério: os chamados indigentes estavam praticamente sem espaço nenhum.
OP - Pobre não tinha lugar?
Dr. Simão - Pobre não tinha lugar. Você morre em qualquer lugar, é difícil enquanto vivo, vai ser difícil quando estiver morto também. Como era municipal a obrigação dos cemitérios, nós fizemos muitos contatos com o doutor Juraci Magalhães, prefeito à época (foi prefeito entre 1990 e 1993 e entre 1997 e 2005; morreu em 2009). Ele entendeu a ponderação. Era médico, boa formação humanística. A imprensa nos ajudou demais mostrando situações que eram inconcebíveis a um ser humano. E se construiu então o Cemitério do Bom Jardim.
Esse cemitério mudou absolutamente tudo. Porque, primeiro, nós não aceitamos mais o lugar dos indigentes. As pessoas que estavam no Instituto Médico Legal e não tinham identificação, faleceram de morte violenta, tínhamos nós a responsabilidade de dar um destino final àquele corpo, passaram a ser sepultados nos locais habituais dos cemitérios. Em todos, urna funerária, mortalha e serviços religiosos, que nós programávamos, organizávamos e executávamos regularmente. De 15 em 15 dias, uma vez ao mês, dependendo da quantidade de pessoas necessitadas. Isto passou a humanizar esse processo final.
OP - Quando a pessoa passa de fato a ser considerada indigente?
Dr. Simão - Tecnicamente é uma pessoa não identificada. Porque a pessoa que não foi identificada é não reclamada pela família. Então a gente permanecia com ela por um mês, na geladeira, aguardando. Depois de um mês, quando não é reclamado, dificilmente você passa a ter essa possibilidade de identificação. E é aquele que absolutamente nada tem. O Estado tinha obrigação de fazer. Passou a ser parte do orçamento da Segurança Pública a compra regular de urnas funerárias.
OP - Mas isso já existia. Existia a lei, mas não era aplicada?
Dr. Simão - Não. Havia um serviço que era a assistência devida que uma funerária poderia fazer, mas dedicada às pessoas que moravam nas favelas, mas que tinham os familiares para reivindicar. Esses eram os que nem família tinham.
OP - Ou que a família não sabia o destino da pessoa?
Dr. Simão - Exatamente. Como a tônica era a questão de não estar identificada, você poderia ser alguém, e era alguém, dentro de um contexto que não se sabia naquele momento quem era.
OP - Esse era um bom recorte para mostrar a pobreza da cidade, que sempre teve um cenário de desigualdade social muito grande.
Dr. Simão - Sim. É tanto que um ponto que a gente sempre abordou foi a questão social de um órgão, mesmo como o IML, que era dedicado especificamente sobre a morte violenta. Mas tinha uma vantagem social dentro desse contexto. Tinha um aspecto social a ser filtrado, a ser captado.
OP - Muitas vezes a interpretação que se tem de um ambiente de Medicina legal é só de lidar com o morto, cuidar, periciar e liberar para enterrar. Há, ali, uma extração de dados também. Como era a análise dessa conjuntura?
Dr. Simão - Nós sempre gostamos muito de trabalhar com números, análises estatísticas, para entender os fatos e qualificar aquilo dentro de uma população porque ficava, realmente, um mecanismo muito mais simples de se tomar decisões administrativas. A política pública, na essência, tem que ser alimentada a partir de dados fundamentados.
OP - O senhor sempre citava em suas entrevistas que “os mortos falam”.
Dr. Simão - Os mortos falam. Foi um programa que nós desenvolvemos. Por causa de outra coisa que notei também. Segunda-feira, pegava o jornal O POVO: 50 mortes no fim de semana; Diário do Nordeste: 70 mortos; Tribuna do Ceará: 30. Estava havendo algum descompasso. Então, uma medida que foi tomada: o livro de entrada dos corpos passou a ser de livre consulta a qualquer repórter, de qualquer instituição, qualquer veículo que chegasse lá para ver e analisar a estatística. Tudo era colocado à disposição. Os mesmos dados que eu tinha no meu gabinete, tinha na mesa da Imprensa. Para o saudoso Landry Pedrosa (repórter do O POVO por mais de quatro décadas, falecido em março de 2018), eu dizia: “vou assinar a tua carteira, tu só vive aqui”. Fernando Ribeiro (jornalista, falecido em abril de 2021) só vive aqui. Era uma convivência muito próxima.
Nós pegávamos um determinado horário e fechávamos a estatística. Quem entrasse depois ia para a estatística do dia seguinte. Padronizamos. Na época, o fax era o mais moderno e eu tinha um soldado que trabalhava comigo, chamado Vinícius, que a gente fechava as estatísticas e passava fax para todas as redações, até mesmo as que não pediam. Isto era um mecanismo para a pessoa dizer: “Olha eu sou do Ceará, sou de Fortaleza, e morri. Tá aqui, em termos de números”. Para que se saiba que está acontecendo isso. Homicídios, masculino ou feminino, acidentes de trânsito. Começamos a despertar (interesse) para o número de pessoas que morriam que não precisariam morrer. Criou-se, então, um trabalho chamado Mortes Evitáveis. Foram uma série de campanhas onde a gente abordava literalmente pontos focais, baseado nos números, nessa análise, que é muito rica.
OP - Mas quais eram as mortes que poderiam ser evitadas?
Dr. Simão - Motoqueiro, capacete. Achar um motoqueiro de capacete há 40 anos era impossível, se hoje já é difícil. Você vai ao subúrbio de Fortaleza, depois de sábado e domingo, o pessoal tá tomando o mel (cachaça), andando de moto e tudo sem capacete. Hoje. Há 40 anos nem capacete tinha para comprar.
OP - Lembro que a Secretaria da Segurança Pública à época não se detinha tanto à importância das estatísticas. Lembro que um secretário nos falou que no órgão não havia um profissional estatístico nos quadros da Secretaria.
Dr. Simão - É tanto que as primeiras estatísticas, durante os primeiros 10 anos, nós fazíamos na caneta, não tinha computador para fazer um gráfico. Não tinha. Papel milimetrado era a técnica de fazer o gráfico para poder prever aquilo ali, depois fotografava, depois transformava. Era uma mão de obra grande. Mas era importante, tirava-se dados reais dos fatos.
OP - Só existia uma sede do IML. Onde era?
Dr. Simão - Só Fortaleza recebia o Estado todo. Quando tinha um crime de repercussão, eu vivia viajando, tanto fazendo necropsias externas, como exumações. Às vezes chegava no meu gabinete, achava que nunca iria terminar aquele trabalho. Eram de 50 a 70 pedidos de exumações, no Estado do Ceará inteiro. A gente pegava uma determinada região selecionada, saía na sexta-feira, juntava duas a três equipes, coordenadas, e a gente ia exumar os corpos. Porque eram pessoas que tinham sido assassinadas, mas não tinham sido examinadas, não tinham o (exame de) corpo de delito. Aí o inquérito não prosperava.
OP - Nesse período de 1980, 1990, muita gente assassinada foi para a cova sem haver qualquer tipo de perícia?
Dr. Simão - Sim, porque quando não têm peritos no local, existe uma opção legal que é determinar um perito ad hoc. O delegado nomeia um médico que mora na região, o padre, até o açougueiro, no sentido de dizer que houve o óbito e que aquela pessoa morreu por tal causa, mas, obviamente, ele não vai conseguir detalhar. É a diferença de um técnico especializado fazer um trabalho e de uma pessoa que não tem noção, ela serve só para constatar o óbito.
OP - Por que demorou tanto a se ter noção da necessidade da importância da polícia científica no Ceará?
Dr. Simão - Acho que no momento que a gente entrou, começou a mostrar serviço, isso começou a se arraigar dentro da cultura organizacional. Passou a dar bons resultados. Um exemplo, rapidamente, um padre que faleceu, que era o padre da Igreja Redonda, na Parquelândia. Era o padre Djair. A princípio, ele foi subir a escada e morreu. Quando entrou a parte técnica, tanto o estudo criminalístico como Instituto Médico Legal, a análise da coisa, havia uma distorção. Não era desse jeito. Aí você mostra como é, a Polícia amplia o seu raio de investigação e se prova que realmente foi um homicídio. Passou a ter uma importância muito grande. E isso gerou o reconhecimento das pessoas. O DNA hoje é tudo.
OP - Falo da tomada de decisão política administrativa. Porque a Bahia já era muito avançada na medicina legal enquanto o Ceará ainda engatinhava.
Dr. Simão - O governo Gonzaga Mota (entre 1983 e 1987) foi o responsável pela construção estrutural física desse IML, que abriga o Instituto Médico Legal e o Instituto de Criminalística, fazendo com que tivesse uma sede própria. Foi o primeiro governo que sentiu a necessidade. Porque, retrospectivamente, o IML antigo era um anexo do Hospital São José. Lá tinha um necrotério, por ser um hospital onde morria muita gente. Esse necrotério foi transformado em IML. Mas obviamente que a cidade em expansão, 1 milhão e meio de habitantes, não tinha como dar vazão. O IML da Leste-Oeste foi construído, e lá (ao lado do Hospital São José) foi demolido. Ele passou a ser no Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), em Messejana. Lá, o compromisso do governador, à época, foi o seguinte: vamos retirar o IML da Parquelândia, por clamor popular, e no dia que o IML for transferir para lá, trago um trator para demolir toda a sua estrutura. Houve esse simbolismo, para mostrar que a coisa tinha acontecido e funcionou bem.
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OP - Qual foi o caso mais delicado, ou mais complicado, que o senhor já acompanhou?
Dr. Simão - Sem dúvida nenhuma, o caso que envolveu mais trabalho, de maior responsabilidade, e que realmente foi assim complexo, em todos os aspectos, foi a chacina dos portugueses. Primeiro pelo número de corpos. Foram seis corpos. Todos em avançados estado de decomposição, o que é muito mais trabalhoso. É diferente de você pegar um corpo que acabou de sofrer um acidente, um homicídio, ou depois de enterrado. Você tem, realmente, dificuldades técnicas porque eram muitos corpos e você tinha que fazer um trabalho perfeito. Naquela hora, todas as pessoas do Brasil e do mundo estavam olhando para o Ceará, para este caso. Eu conversava, diariamente, com o primeiro-ministro de Portugal (António Manuel de Oliveira Guterres, atual secretário-geral da ONU). Por conta do fuso horário, passei praticamente 15 dias dormindo duas horas por dia.
OP - O que o senhor conversava com ele?
Dr. Simão - Ele me perguntava como estava o andamento, o que já tinha sido encontrado. Ele era uma pessoa muito responsável. Ele queria dar satisfação pessoal. Era um contato muito pessoal.
OP - O senhor nunca havia falado publicamente disso. Ele fez o contato ou o senhor foi orientado a fazer?
Dr. Simão - Ele fez o contato. Pelo Governo do Estado, era o Tasso Jereissati, e pelo secretário Cândido Vargas de Freire, que era general. Ele (Guterres) ligou, a gente conversava, também colocou à disposição tudo que eu precisasse. “Se precisar de médicos daqui (Portugal), eu mando, se precisar de médicos da Inglaterra, da França, a gente manda”. "Primeiro-ministro, nós temos muito a agradecer, mas temos profissionais maravilhosos". Nossa equipe tinha uma média de mais de 20 anos de carreira, nível excepcional. Só tinha que ser bem coordenada, e eu me propus a fazer isso. É tanto que eu participei de todas as necropsias, uma a uma. Pegava o médico do dia, “vamos fazer essa necropsia desse aqui”, aí colocávamos os outros na geladeira. Quando começavam a descongelar, íamos para o outro, tudo em sequência de trabalho.
Um dos grandes problemas, neste caso, era a identificação. Saber quem era quem. As famílias não estavam lá. E não dava para reconhecer. O visual era horrível. Porém, recebemos de Portugal fichas de impressão digital, fichas dentárias, e isso facilitou muito. Um detalhe importante desse caso: passei quase um mês sem ir até minha casa, passei quase a morar no IML. Meus meninos, era minha esposa quem tomava conta. Um dia, já com muita angústia, a gente sabia mais ou menos quem era quem, a minha preocupação era saber como as pessoas iriam receber aqueles corpos em Portugal. Saber que aquela pessoa era de fato aquela pessoa? Abrir o caixão seria um transtorno.
Então uma senhora me procurou e disse: “Doutor, trouxe para o senhor as fotos” (das vítimas), um tamanho enorme, que ela tinha tirado de uma revista. Ela mandou reproduzir, plastificar e trouxe. Disse que fez isso porque sabia que iria atender a uma grande preocupação minha. Eu não a conhecia. Deixei a senhora sentada no meu gabinete. Fui mostrar lá para quem iria colocar os corpos já nos caixões, encontrar um jeito de fixar essas fotos, para que ficasse de um jeito definitivo. Aí quando retornei, essa senhora tinha sumido. Nunca deu notícia, não sei quem é, não sei nem o nome. Agradeci publicamente a ela várias vezes. E ela nunca ligou.
OP - Os corpos foram encontrados sob o chão da cozinha da barraca Vela Latina, na Praia do Futuro. Como se chegou à conclusão de que os seis tinham sido enterrados vivos (informação à época divulgada em primeira mão pelo O POVO)?
Dr. Simão - Foi a metodologia do trabalho. Analisando cada órgão, cada estrutura. Quando se abriu o esôfago, começamos a notar a presença de areia da praia. Evoluímos, abriu-se o estômago. A maioria deles tinha blocos de terra, volume considerável, que haviam sido deglutidos, engolidos, não só aspirados. Essa foi uma evidência física que dava a certeza. Quando ia para o outro sistema, que são dois sistemas que ficam bem paralelos, o esôfago e os brônquios, que vão para os pulmões, lá também tinha. Lá, porém, em menor quantidade, por conta do mecanismo de defesa, que o ser humano consegue fechar a glote. Fecha, respira um pouquinho, cai um pouquinho de terra, você vê fragmentos. Tem uma técnica muito simples que é passar uma tesoura no local, depois você pega a tesoura, você fecha e escuta o barulho. Quando você faz isso, você tem uma sensação de atrito, aí sugere. Mas no caso deles lá eram blocos de terra. Quando descobrimos em um, fomos checar nos demais e tudo foi exatamente a evolução da sequência dos fatos.
OP - A morte foi muito cruel.
Dr. Simão - Esse é um dos eventos muito fortes, porque a gente estava literalmente na vitrine dos fatos. Todos queriam divulgar. Então a importância de se fazer um trabalho bem feito para que a Medicina Legal do Estado do Ceará tivesse o seu nome e mantivesse o seu padrão técnico e o respeito dentro da instituição para consolidar essa conquista. Outras duas situações bem assemelhadas, que também envolveram muitos corpos, foram aqueles desastres de ônibus. Teve um desastre no Carnaval, com 42 mortos. Teve o de Barro (em fevereiro de 2004, com 42 mortos) e o de Aracati, na ponte (em fevereiro de 1991, com 41 mortos).
No Aracati, o volume de corpos era muito grande. Carnaval, que já tinha um quantitativo triplicado do dia a dia de corpos que a gente administrava. Foi muito trabalhoso. A preocupação com a entrega desses corpos de identificação era muito grande. Ninguém tinha um documento. Tinha que ser um reconhecimento feito pela família. O que nós fizemos? Tinha um salão bem grande, eram tantas mesas, para tantos corpos, que as mesas não cabiam. Então a gente mandou comprar alguns panos brancos, colocamos os corpos lado a lado, em três grupos.
Eram mais de 40 vítimas. A gente cortou os panos, cobriu os corpos já necropsiados, e deixava a fisionomia, o rosto aparecendo. O familiar ia entrando, um a um, percorria. Quando encontrava e dizia “esse aqui é fulano de tal”, a gente pegava o número e ia fazendo associação do número com o possível nome. Numa determinada ocasião, quando já não tinha nenhum familiar, peguei uma prancheta para fazer a contagem de quantos corpos ainda precisavam ser identificados. Tinha uma senhora (lado esquerdo) e tinha um garoto (lado direito). Ele bem próximo a ela. Eu vi o garotinho e lá na frente (do salão), em outro local, tinha outro garotinho (também morto), parecido com aquele. “Rapaz, podem ser irmãos”, deduzi. Então decidi botar esses dois corpos próximos para, eventualmente, quando o familiar passar, já vai ver, associar, e já diminui o sofrimento. Coloquei o menino ao lado do outro… rapaz, aconteceu um negócio… A mulher necropsiada, um menino do lado direito dela, o outro menino do lado esquerdo, que eu tinha colocado porque achei os dois parecidos. Aí a mão dessa senhora fez um movimento bem lento, levantou o pano…
OP - Ela necropsiada?
Dr. Simão - Ela já necropsiada. E colocou o braço no menino da direita, bem lentamente. Quando eu vi aquilo, rapaz, a sensação (risos)... eu já tinha 20 anos de legista, mas não é fácil ver aquilo.
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OP - Só estava o senhor na sala?
Dr. Simão - Só eu na sala, grande, e mais de 40 mortos. Aí fui lá, olhei, tive dificuldade de voltar o braço dela. Estava em rigidez. Como ela fez, se estava em rigidez? Eu, para botar o braço dela na posição normal, forcei um pouco. Mas fiquei com aquela imagem na cabeça permanentemente. Voltei para o local e pensei assim: ela quis pegar nessa criança e dizer “esse aqui é meu filho”. Se esse é filho, o outro também deve ser. Aí estiquei o braço dela do lado direito, estiquei do lado esquerdo, botei os dois meninos. E era a mãe dos dois filhos. Na conclusão da identificação, de fato ela era a mãe dos dois meninos.
OP - O senhor, alguma vez, teve medo de estar dentro do IML?
Dr. Simão - Esta sensação é mais do que medo. É um negócio que você fica perplexo. Neste caso, a mulher estava necropsiada e periciada, não tem como justificar isso cientificamente. O braço dela tinha rigidez, tanto que para esticar foi uma demanda de força. O aperreio é grande. Eu fiquei, ave maria, perturbado por meses.
OP - O senhor compartilhou muito essa história?
Dr. Simão - Não, para não ser desrespeitoso. Mas eu tenho outra história que é ainda mais complexa. Havia essas muitas exumações que a gente fazia no Interior, as pessoas tinham sido assassinadas, estavam sepultadas e não tinha laudo. A gente foi para uma, era uma família grande. Quando se trata de exumação, é determinação judicial, nem precisa perguntar à família se pode ou não. Mas eu nunca fiz uma exumação sequer que eu não fosse com a ordem judicial, para conseguir o aval da família e a família ser conscientizada do que eu ia fazer para ela não se sentir forçada àquilo ali.
Aconteceu até de eu, com a ordem judicial, ir e não fazer, voltar, fazer só na semana seguinte, até encontrar um parente que tivesse um diálogo mais aberto, tivesse um entendimento do que iria ocorrer. Porque a pessoa já sofreu com a morte daquela pessoa enterrada, aí não tem culpa de não ter tido o exame. Mas precisa, senão o criminoso vai ficar solto. Então ela vai sofrer de novo. E ela precisava de argumentação.
Era uma exumação trabalhosa, a pessoa tinha sido assassinada e não se sabia como tinha sido de fato. Então fomos lá, conversamos com a família, não sei quantos irmãos, conversei com todo mundo que tinha qualquer dúvida. Explicava se eles se sentiam à vontade para liberar, embora já tivéssemos a liberação legal. Isso que era importante, minimizar o trauma propriamente dito.
Minha equipe era de dois ou três auxiliares com nível de experiência muito grande. Quando a gente chegou no cemitério, a mãe resolveu ir também. Ficou um pouquinho distante enquanto removíamos o cadáver. Levou-se para debaixo de uma árvore e abriu-se o caixão. O meu assistente, quando puxou a tampa, ele caiu. E ele era um cara mais acostumado do que eu. Ele caiu no chão. O que estava movendo a mãe naquele momento era que ia ter mais uma chance de ver o filho. Aí ele veio para mais perto e, em vez de olhar o corpo, ela foi direto socorrer o meu assistente. E o meu assistente começou a passar a mão na cabeça dela e chamar ela de mãe. E eu “ai meu Deus do céu”. Eu olhando o pulso dele, não tinha hipoglicemia nem nada, era uma viagem longa, tínhamos parado na estrada, se alimentado.
Estava preocupado com a saúde dele, havia desmaiado ali, mas o pulso cheio, forte. Aí estávamos ela e eu ali em cima. Ela do lado e ele repetindo “mamãe, mamãe”. Eu comecei a dizer: “Rapaz, como é que você tá, tudo bem?”. Ele olhou pra mim, falou comigo, o olho todo revirado, e falou comigo: “doutor Simão”, com uma voz embolada, e disse quem me matou foi fulano, com tantas facadas, no pé da bananeira. Aquilo me desmoronou. E ela “meu filho”, ele “mamãe”. Os dois se tratando como mãe e filho.
OP - E qual foi o desfecho?
Dr. Simão - O desfecho foi que perdi a condição de executar qualquer coisa. Estava abalado total. Botei o corpo no rabecão, para trazer para Fortaleza. Foi outra conversa com a família, para explicar que eu tinha que trazer. Não por isso, mas porque precisava fazer uma radiografia da pessoa e tudo. Eles entenderam. Trouxe para Fortaleza.
OP - E seu assistente?
Dr. Simão - Meu assistente voltou, sem saber de absolutamente nada. Depois conversei com ele. “Não sei, desmaiei. Ele não soube de nada. O fato é que peguei as informações que ele deu. Quando fui fazer as necropsias, tinha realmente as duas facadas. Era fácil constatar isso. Mas a informação principal, que o meu assistente tinha me dado, que quem matou ele foi fulano de tal, eu falei para o delegado. “Doutor, esse caso aí, o fulano, você tem alguma suspeita sobre ele?”. O delegado disse que o rapaz era suspeito, porém apresentou um álibi. “Nós checamos o álibi e bateu, ele trabalha numa fábrica, o ponto dele tá batido. E já saiu do rol dos suspeitos”. Eu digo assim: tenho uma informação muito importante de um informante. Reveja isso aí, olhe se foi esse cara mesmo que bateu o ponto, porque bater o ponto, naquela época era cartão de ponto. E a história de uma bananeira lá? “Não, o local dessa bananeira não foi lá, foi em tal local”. Pois vamos investigar o local dessa bananeira. A informação era quente.
OP - O senhor disse para o delegado quem era o informante?
Dr. Simão - Disse não, nada. Disse que tinha recebido esta informação. Em dois dias o delegado me liga: “Doutor Simão, vamos precisar que o senhor me diga a fonte porque vamos ter que ouvir. Porque achamos sangue na bananeira. O cara tinha pagado um sujeito lá para bater o ponto dele, e já tá na jaula, já confessou o crime. Agora terei que entrevistar a vítima”. Rapaz, fico muito satisfeito com sua investigação, mas a fonte foi uma ligação anônima. Não poderia dizer quem era (risos). Sei como é difícil. A gente vivendo na carne, no momento, fica difícil entender aquilo. Obviamente que tem alguma coisa, dentro de um sistema que a gente desconhece.
OP - Pergunto isso porque o senhor tocou em um ponto da Medicina legal que é “os mortos falam, os mortos sentem”. Isso é técnica?
Dr. Simão - Técnica pura. Porque, por exemplo, você pode procurar situações em que foram apontadas como suicídio, que você consegue concluir que, na verdade, não era, era um homicídio. Pode procurar que vai achar.
OP - Mas esta cena do crime tem que estar muito bem preservada?
Dr. Simão - É um dos pontos mais importantes. E a necropsia propriamente dita é fundamental. Aí você casar uma necropsia bem feita com o local do crime preservado e bem examinado, você tem em mãos uma situação bem evidente.
OP - O senhor acredita, ou assume, ter cometido erro por conta de um local de crime mal preservado?
Dr. Simão - Um local de crime é de competência da perícia criminal. A gente, muitas vezes, recebeu informações divergentes. O perito, às vezes sem condições, uma lanterna que não está funcionando direito, um local que não foi bem preservado exatamente, ele olha ali, acha que foi uma facada. Chega lá, a guia policial como homicídio a faca, aí quando o legista vai analisar, na sala de necropsia, com mais condições, boa iluminação, o material cirúrgico para você reconstituir as coisas, aí você vê que era bala. Então chamávamos a equipe que disse que era faca, mostrávamos que foi bala, para mostrar que houve convergência nas informações.
Clique na foto e confira o trecho da entrevista em que Dr. Simão aborda o tema
OP - O caso da Base Aérea é uma situação dessas? Daqueles dois soldados que apareceram mortos (em 10 de setembro de 2004). Foi anunciado primeiro como homicídio seguido de suicídio, depois confirmou-se o duplo homicídio e até hoje não teve autoria conhecida.
Dr. Simão - Fomos bem claros em relação àquele caso. A nossa conclusão foi que eram dois homicídios. Homicídio seguido de suicídio não estava no contexto. Eles fizeram depois alguns reexames, porque uma competência que o presidente do inquérito tem é a liberdade de ouvir, aí depois vai para as juntas militares. O laudo médico legal ou o laudo da criminalista, ou qualquer laudo que compõe o inquérito policial, ele é parte desse inquérito. E a autoridade principal do inquérito no início é o delegado, depois vem o Ministério Público, que apresenta a denúncia e depois vai para o juiz. E o juiz pega o conglomerado de informações. Às vezes, este juiz pega um laudo totalmente ou em parte, manda revisar laudo, ou manda fazer uma nova perícia, até que ele tenha um convencimento dos fatos para poder julgar o caso.
OP - Por que naquele caso não se chegou a saber quem matou os dois soldados?
Dr. Simão - Aí foi investigação criminal, que ficou por conta da Base Aérea, por ser um crime perpetrado dentro da instituição militar. Com certeza houve também dificuldades operacionais. Porque, se é dentro da Base Aérea, um técnico que investigue bem talvez não vá estar lá dentro. Lá tem um bom piloto. Se eu botar um delegado para pilotar um avião, periga ele cair. Se botar um piloto para conduzir um inquérito não vai dar bons resultados. Acho que talvez a Polícia Federal seria o órgão que poderia assumir. O IML foi sempre um grande prestador de serviços para a Polícia Federal. Em todos os aspectos. Sempre que precisavam de laudos, o IML era chamado. Porque eles tinham uma parte criminalística muito boa, mas não tinham equipes de legistas.
OP - O senhor também puxou a criação do Serviço de Verificação de Óbitos (SVO)?
Dr. Simão - Nós tínhamos um problema gravíssimo. Morreu era sinônimo de corpo para o IML. Então, recebíamos tudo. Morreu, era IML. Aquilo estava rigorosamente equivocado. Começou-se, então, a dar uma sobrecarga gigantesca de trabalho. Porque a gente era muito exigente com a execução dos trabalhos. Que os corpos demorassem o mínimo de tempo possível, porém no tempo necessário para executar o melhor trabalho possível.
Até que chega um ponto que não adianta mais, tem que liberar o corpo que o resto vai ser para descrever, analisar, qualificar, examinar as substâncias químicas. Mas o fluxo de pessoas que morriam de forma natural era quase o mesmo dos que morriam de morte violenta, o que significava que estávamos tendo o dobro de trabalho. No caso da morte natural, é importante você ter um diagnóstico que não é competência nem habilitação do médico legista. Já é o patologista que vai executar esse trabalho, que é no microscópio.
Às vezes há situações no exame macroscópico, mas a maioria vai para o microscópio. Para saber se tem determinada doença. E esses dados, ao serem compilados, vão funcionar para ajudar nas políticas públicas também. Ia ter, lá na frente, um buraco gigantesco, porque se eu não sei de que se está morrendo na cidade de Fortaleza, não vou poder alocar as providências administrativas, legais, técnicas e compatíveis com a solução desses problemas. Foi difícil porque a Secretaria da Saúde, a princípio, estava em uma zona de conforto gigantesca.
OP - Lembro que numa segunda-feira o IML amanheceu sem receber corpo de morte natural.
Dr. Simão - Foi. Até que a gente resolveu adotar uma conduta radical, depois de negociar, negociar e negociar exaustivamente, mais de um ano, e absolutamente nada acontecia. Entramos em contato inicialmente com o Conselho Regional de Medicina, com a Secretaria da Segurança Pública, e fizemos uma exposição de motivos, mostrando o porquê.
O Ministério Público nos apoiou por inteiro. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) também. E aí amanheceu a segunda-feira, “não entram mais corpos de morte natural aqui”. Aí os corpos começaram a entrar em decomposição nos hospitais, nas casas das pessoas, chamaram para uma reunião urgente, secretário disso e daquilo, promessa de executar. A gente cedeu. Voltamos a receber, foi o período em que foi construído o SVO, e a partir daí ele assumiu a missão. Foi um parto a fórceps. Mas foi muito bom ter acontecido porque ainda hoje ele está fazendo um bom trabalho. E, por coincidência do destino, passei seis anos sendo diretor do SVO.
OP - Depois foi para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), onde ficou por quatro anos. Como foi essa experiência?
Dr. Simão - Ela foi maravilhosa. Era o chamado Samu Litoral Leste, foi o primeiro Samu fora de Fortaleza. Funcionou bem, teve excelente resultado. Houve uma aceitação do público e do Governo do Estado. Ficou tão satisfeito que ampliou para Samu Ceará. Tive a honra de ser precursor e iniciar a formação do Samu Ceará, que está em conclusão. Acho que fechou agora 100% dos municípios. A gente começou a evidenciar a importância do Samu, pela experiência que tinha do IML. Um trabalho aberto, claro, transparente, questionamentos de instituições para resolver os problemas básicos, e mostrar que a coisa pode funcionar. É pública, é de graça, e funciona bem.
A tônica era essa: aliviar a dor e tempo-resposta. Tirei as ambulâncias da garagem. Para que eu quero dez ambulâncias aqui dentro? Espalhei essas ambulâncias pela CE-040. Chamava de pontos-base. Aproveitando ideias da segurança pública para diminuir o tempo de resposta. Facilitou muito, foi muito bom. Uma experiência que me fez crescer bastante. Principalmente vendo que abrimos as portas para o Samu Ceará. Visitando os prefeitos mostrando a importância de eles aderirem a essa formação do Samu. A gente levava uma ambulância na Prefeitura e mostrava se uma pessoa tivesse um infarto. Houve a implantação da cultura em relação a isso.
Mostrou serviço, bom e de qualidade, a coisa evolui. Demanda tempo, porque tem fator político, econômico, cultural, que são freios, mas que termina acontecendo. No SVO também foi muito grato o trabalho lá. Eu percebi um grande problema que tinha lá. No IML eu tinha uma rede de rabecões em via pública, disponível a qualquer hora. No SVO, só funcionava de 8 (horas) da manhã às 5 da tarde. E já fizeram um acordo com São Pedro (risos), para não chamar ninguém antes ou depois desse horário? Amanhecia o dia, 12, 13 corpos, falei “não, não dá”, vamos fazer o que eu fiz no IML, 24 horas. Na minha época não era, passou a ser, hoje em dia não faz mais necropsia à noite.
A Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce) oferece diversos serviços que funcionam 24 horas por dia para atender às demandas da população. Na Coordenadoria de Análises Laboratoriais Forenses, há servidores de plantão responsáveis pela coleta de vestígios em locais externos e internos, incluindo o recebimento de amostras de perícias oriundas da Medicina Legal e de locais de crime. Além disso, a coordenação possui técnicos de laboratório, supervisionados pelos servidores, para coleta de material biológico.
A Coordenadoria de Perícia Criminal (Copec) também oferece atendimento 24 horas por dia no Núcleo de Perícia Externa. A equipe atua em locais de crime contra a vida, contra o patrimônio, ocorrências de trânsito e identificação veicular, garantindo uma resposta rápida e eficaz para as investigações.
A Coordenadoria de Medicina Legal (Comel) é responsável por realizar perícias médico-legais em diversos casos 24 horas por dia, incluindo presos custodiados por todas as forças de segurança pública, avaliação de violência sexual, análise de casos de embriaguez e recebimento de corpos vítimas de morte violenta, como homicídios, suicídios e acidentes.
As equipes da Pefoce atuam tanto na capital quanto no interior do estado, oferecendo um serviço essencial para a justiça e para as famílias das vítimas. Além de Fortaleza, a Pefoce possui núcleos em Sobral, Juazeiro do Norte, Quixeramobim, Canindé, Iguatu, Tauá, Russas, Crateús e Itapipoca)
Dr. Simão - Coloquei o SVO para funcionar 24 horas. E comecei a detectar, também, um outro problema sério, que foi onde entrou sério a questão social. Quem precisa do SVO? Quem é o cliente do SVO? É o cara pobre, que pouco teve assistência médica, ou nem teve, nem se sabe do que morreu. Porque a pessoa que tem plano de saúde ou tem algum recurso morreu em um hospital. Aí o médico assistente está cuidando dele. Pode até a doença não ter sido curada, mas se sabe que aquela doença era uma embolia pulmonar, um câncer de pulmão, um câncer de próstata, aí se dá o atestado, se sabe e está resolvido.
E quem morreu na favela, que ninguém sabe nem onde é? Não se sabe de que morreu. E aí? Como ele vai para o SVO? De ônibus não dá. De mototáxi muito menos. E o SVO não tinha viatura. “Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé”. Coisa simples. Criei quatro equipes e chamei de SVO Móvel. Esse chamado vai bater na Polícia, meu campo de trabalho. Ia tudo bater no fone 190. Então, fiz o convênio. Botar uma cabinezinha a mais para o SVO (dentro da sala de operações da Ciops). Botamos lá. "João morreu, não se sabe o que fazer". Passava para o assistente da SVO.
Eu tinha pontos-base que já funcionavam. Aí tivemos que botar a cabeça para funcionar. Criar estruturas era fora de parâmetro. Seriam gastos enxutos. Anexei estas estruturas onde já tinha outras estruturas do Governo do Estado. Uma dentro da própria Secretaria da Segurança Pública lá na avenida Bezerra de Menezes, outra dentro do próprio IML, outra lá nos Bombeiros, perto do Detran. Eram essas três.
Então, de acordo com a zona da cidade, peguei o mapa, daqui para baixo é isso, daqui para cima é isso. Chegava o chamado, ia uma equipe nossa. O detalhe, exatamente no aspecto social: a equipe levava um motorista, um médico e um assistente social. Porque o grande problema que a pessoa estava vivendo lá era social, por inteiro. Primeiro para explicar para a família os direitos que ela tinha, para pedir a pensão… Isso já era catalogado, feito o resumo, informado, orientado. E o médico ia para saber o que foi que aconteceu.
Com a análise preliminar do médico, às vezes ele já tinha até um pré-diagnóstico. A pessoa tinha um câncer de pulmão, estava fazendo tratamento, estão aqui os exames dele, mas teve uma falta de ar e morreu. Então esse paciente não precisava ir à sede do SVO para ser necropsiado. Porque na história clínica dele já estava embutido o diagnóstico. Se eu fosse levar, estaria fazendo um retrabalho. Porque a coisa mais cara é quando você tem muito trabalho a fazer e fica trabalhando de novo onde não precisa. Com isso, a gente dava uma assistência social à família, um atendimento rápido e um atendimento que ia melhorar nossos perfis de diagnóstico, do que se está morrendo no Ceará.
OP - Foi possível descobrir cenários que até então não havia informação pública conhecida?
Dr. Simão - Não deu pra chegar nesse nível porque passei só seis anos. Dois foram para fazer o primeiro atendimento. Quando você chegava na Secretaria, vou precisar de quatro carros aqui para isso, é difícil né? Aí vou precisar mais de uma equipe de 20 médicos para ficar de plantão dia e noite. Morreu de madrugada, teria que esperar ser atendido só pela manhã? A família ficar esperando uma noite toda com o cadáver ali do lado? Isto é um sofrimento que não precisa acontecer.
Depois de dois anos, efetivou, e ainda passei quatro mais quatro. Durante esses quatro anos foram mais de 7 mil visitas domiciliares com atendimentos às pessoas carentes, nesse modelo implantado. Nas favelas, às vezes as pessoas roubavam os pneus dos carros. Voltavam os carros sem pneus, aí passou a não ter mais estepe. Os médicos sem celular, sem aliança, sem relógio, ninguém usava.
Os carros eram parecidos com os da Segurança Pública, mandavam tirar o intermitente, e eu falava: não, aqui é Medicina. Só andavam de vidro aberto, todo mundo de bata identificadora. Até que começou a ser aceito pelas comunidades, pela população, saber que existe. Tanto que dos que a gente atendeu, 99% eram pobres. Na forma da lei, daqueles que o enterro nem tinham como fazer.
Uma coisa que eu me orgulho a mil. Nessa época, não sei agora, tomara que não, existia a necessidade de as pessoas pobres, para serem sepultadas, eles faziam um bingo à noite. Era um cadáver aqui e o bingo de uma coisa insignificante qualquer. Para juntar dinheiro para as despesas funerárias. Quando, na realidade, a Prefeitura de Fortaleza tem um compromisso com isto. Para executar o enterro, ela precisa de uma declaração social dizendo que é pobre na forma da lei e de um atestado de óbito. Como a nossa equipe já tinha essa orientação, já produzia isso rotineiramente.
OP - Aumentou muito acionar esse benefício na Prefeitura?
Dr. Simão - Ora, papocou lá. Eles tiveram que fazer o trabalho deles: enterrar dignamente as pessoas. Eu sempre gostei de dizer que uma pessoa morta tem que ser tratada melhor do que quando estava viva, porque viva ela tem a capacidade de reação, de se defender. E o morto, não. É o reconhecimento da cidadania pós-morte. É ultra-especial, porque se faz laudos para acionar direitos, o sepultamento ser digno, ter um respeito ao corpo propriamente dito, e os cuidados sociais que demandam.
Clique na foto e confira o trecho da entrevista em que Dr. Simão aborda o tema
OP - Gostaria de ouvir histórias do senhor sobre o Mainha (Idelfonso Maia Cunha, pistoleiro cearense, assassinato em janeiro de 2011).
Dr. Simão - O Mainha, a gente fez muita exumação de vítimas dele. De inquéritos que estavam em aberto e que, via de regra, que até mostrei ao próprio Mainha, a história circulante era muito mais grave do que os fatos do crime. Mostrei para o Mainha que a nossa necropsia iria restabelecer a verdade. “Você matou a pessoa com um ou dois tiros?”. Inventaram que havia sido uma morte com dez tiros. Houve muitas mortes atribuídas a ele. E ele sabia de todos os fatos.
Sempre que ia fazer uma exumação, ia conversar com ele (à época preso ou cumprindo pena em regime semiaberto). “Mainha, vou desenterrar essa pessoa aqui”. Ele dizia que estava a 100 metros de tal lugar. Eu explicava tudo isso e ele entendia muito bem. Pedia informações a ele. Quando a gente disser que morreu com três tiros, é diferente do que disseram que você matou com 20. A sua pena vai ser bem mais generosa. Então é restabelecer a verdade. Aí, ele encostava no trabalho, me ajudava e dizia: “Olha, esse aí é um tiro aqui, na cabeça, e outro no meio dos peitos.
Assista à série Mainha: Com a Morte nos Olhos do OP+
OP - Vítimas de muito tempo e ele lembrava de tudo?
Dr. Simão - Ele lembrava de tudo direitinho. Eu abria o caixão anos depois, e estava lá, como ele havia me contado. Nunca encontrei uma divergência sequer. Uma curiosidade sobre ele. Perguntei como é que ele tinha uma pontaria tão precisa. “Doutor, treinava muito na beira do açude”. Não lembro se era beira de rio ou sangradouro. Ele disse que atirava nas lagartixas. E eu perguntava se ele matava as lagartixas. “Não, só atirava no rabo. Porque cortava o rabo, que depois cresce”. Então ele tinha essa preocupação ecológica (risos). Tinha essa preocupação com o meio ambiente e deixava a pontaria mais refinada.
FOTO DO MAINHA
OP - O senhor ia onde ele estava preso?
Dr. Simão - Ia. Fui muitas vezes. Toda vez que ia fazer uma exumação.
OP - Ele chegou a lhe contar alguma confidência?
Dr. Simão - Não. Restringia a cada caso mesmo. Até para manter a distância e ele entender que estávamos fazendo um trabalho técnico. “Ó, aquela exumação do fulano foi mesmo o que você falou. O juiz vai receber o laudo dizendo que houve tantos tiros. Depois você pergunte ao seu advogado se foi importante”. Aí dava o feedback a ele. “O advogado disse que foi bom o trabalho. Porque o pessoal estava dizendo que eu tinha arrancado os dedos do sujeito, que eu tinha cortado as orelhas”. Quem tinha costume de cortar as orelhas era o Chico Orelha (José Roberto dos Santos Nogueira, matador de aluguel cearense, morto em 2004 numa troca de tiros com a Polícia Militar do Rio Grande do Norte).
OP - Então vamos falar da operação Pé na Cova.
Dr. Simão - Esta é legal (levanta-se para buscar e exibir uma camiseta da campanha, que havia guardado). A gente fazia uns cenários nas saídas de Fortaleza (A campanha mostrava caixões e veículos abalroados, destruídos em acidentes, para alertar sobre os riscos de álcool e direção no período carnavalesco). Dentro dos caixões colocávamos uns bonecos. Começou o Carnaval. Uma vez esqueci de avisar ao Ciopaer, eles viram o carro destruído e comentaram “rapaz, o caso ali foi grave”. Baixou o helicóptero e tudo.
A Pé na Cova foi na época que lançaram as mobiletes. A moto cinquentinha, aqueles loirinhos pegavam a cinquentinha, aceleravam e pow, chegavam no IML. Tinha dia que eram três, quatro. Então fizemos o seguinte: uma abordagem no meio da rua, parava, tirava uma foto, era o carro da Polícia, perguntavam “para que essa foto?”. E a gente dizia que a maioria das pessoas com essa moto não sabe pilotar e estão morrendo. E já alertava. Chegam lá tão esbagaçados que a gente não sabe quem é, de onde veio, então já tô com tudo aqui para o atestado de óbito.
O próprio Governo do Estado brigava comigo, dizia que era muito agressivo. Mas hoje em dia há campanhas que estão nessa linha. Demorou 20 anos para eles verem que eu estava correto. Ao fazer as necropsias de motoqueiros, motoqueiro tem muito amigo, a gente avisava: “Vem aqui, dar uma olhada, para reconhecermos o corpo”. Fiz a necropsia no anfiteatro do IML (ambiente interno para aulas de medicina), aí permiti a entrada de três a quatro pessoas. Saíram divulgando o que viram. Aí o pessoal começava a botar o capacete. Foi bem didático.