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Dr. Simão: o homem que "viveu" a morte de perto
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Dr. Simão: o homem que "viveu" a morte de perto

Ex-diretor do IML, o médico legista remonta a história da perícia forense no Ceará, entrecortando com registros de casos célebres e causos de assombração
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FORTALEZA, CEARÁ, 11-01-2023: Dr Francisco Simão, médico legista, que atuou por 30 anos no antigo IML. (Foto: Samuel Setubal/ Especial para O Povo) (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, 11-01-2023: Dr Francisco Simão, médico legista, que atuou por 30 anos no antigo IML. (Foto: Samuel Setubal/ Especial para O Povo)

 

Existe vida após a morte? Para quem conviveu por quatro décadas de carreira com vivos e mortos, a resposta é óbvia: “Os mortos falam”. O legista Francisco Simão, de 67 anos, hoje aposentado, revela sempre prezar pelo respeito ao falar sobre o tema. Essa frase, aliás, foi um mantra em seu ofício.

Cirurgião cardiovascular que depois migrou para as necropsias, exumações e exames de corpo de delito, doutor Simão admite que, para ele, a morte é "inimiga, não gosto dela nem um pouco". Acredita ser "dever do ser humano procrastinar o máximo possível esse momento do óbito".

Mesmo não querendo a morte por perto, nunca conseguiu se desvencilhar dela em vida. Foi gestor do antigo Instituto Médico Legal (antigo IML, hoje Pefoce), do Sistema de Verificação de Óbitos (SVO) e do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), órgãos públicos que cruzam diretamente esse atendimento à população.

Simão é uma memória viva da violência no Ceará no final do século e nas primeiras décadas deste século XXI. Ao O POVO, remonta casos antológicos, como a chacina dos portugueese, fala de políticas públicas e dignidade para os mortos, de quanto tentou entrar na própria política, do que viu estando numa sala cheia de mortos e somente ele como o vivo no local, dos casos mais difíceis que já lidou. Para isso, esbanja uma memória detalhista capaz de elevar diversas histórias.

O POVO - Como o senhor se tornou médico legista?

Dr. Simão - Terminei o curso de Medicina visando exatamente cirurgias cardíacas. Já acompanhava, remotamente, desde o terceiro ano, o doutor Régis Jucá (cardiologista, falecido em 2004), que era meu mentor e a pessoa com quem eu entrei no ramo da Medicina. E houve um concurso público onde tive êxito, e já comecei a trabalhar assim que terminei a faculdade, em 1980. Me pediram para fazer uma substituição administrativa — o diretor na época era o doutor Maurício Lucena —, pois ele iria viajar, então fiquei resolvendo os problemas temporariamente. Depois, ele me manteve em um cargo de apoio assistencial. E sempre que ele precisava viajar, eu assumia.

Fui da primeira equipe. Fiquei 30 anos dentro do IML. Ocupei todos os cargos da direção central, e, depois, migrei para a Secretaria da Segurança Pública, que foi quando conseguimos evoluir administrativamente o órgão. A partir dali, o IML começou a crescer e ter uma diretoria técnica. Isto melhorou muito a administração financeira, na hora de comprar equipamentos, investir em mais tecnologia, e fazer um trabalho integrado dos vários institutos. Algo que cada vez mais vem evoluindo.

Entrei no final de 1980. Passei 30 anos como gestor de alguns cargos, como diretor-geral do órgão e, posteriormente, a secretaria, que hoje é a Perícia Forense (Pefoce). Nisso foi criada uma diretoria que era chamada de técnico-científica, que foi a evolução da direção do IML, que abrigava os três institutos e que hoje é a Pefoce, que é uma instituição com mais autonomia, mais capacidade financeira e técnica. Logo no início, na minha época, a competição era muito forte. Precisava de um microscópio, o Batalhão de Choque precisava de uma metralhadora. A segurança pública iria atender qual demanda? A da metralhadora. Então, até se extinguir esta cultura para ter um instituto para ajudar na metodologia de trabalho e dentro do contexto das investigações demanda tempo, mas deu certo.

E hoje vemos um Instituto Médico Legal, Pefoce agora, fortalecida, robusta. E um detalhe importantíssimo: naquela época existia apenas uma (sede do IML) no estado do Ceará. Quando nós saímos ficaram três. Hoje há dez, e mais dois estão sendo construídas. Com isso, a quantidade de pessoas que passam a ser beneficiadas com os exames realizados se torna muito maior.

OP - Qual sua fé?

Dr. Simão - Sou católico. Acho que tem alguma coisa após a morte. Não para por aí. Sou religioso, não frequento igreja, mas faço os rituais.

OP - Os casos mexem com a sua religião?

Dr. Simão - A gente fica pensando, será que quem está certo são os espíritas? Tem tanta contradição. Às vezes, ia para debates de grupos espíritas, lá também tem uma série de contradições. Talvez eu possa eventualmente mudar para a religião espírita. Mas, no momento, sigo a religião católica, é o mais perto do que eu creio.

 

Religião e medo da morte

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Foto: Samuel Setubal/Especial para O POVO

OP - O senhor está com que idade? Que ano foi sua cirurgia no coração?

Dr. Simão - Estou com 67 anos. (A cirurgia) Foi sete anos atrás (2015). Fiz safena e mamária. Foram três, uma mamária e duas safenas. E hoje dois dos três filhos, que são médicos, são cirurgiões de coração. E um deles é cirurgião do coração e médico legista, igual a mim. E tem um que é educador físico. O primeiro é o Alexander, é uteísta (trabalha em UTI). O outro é o Felipe, é cirurgião cardiovascular. E o Daniel é cirurgião cardiovascular e legista. E o Leonardo é educador físico. Minha esposa é a Fátima, fisioterapeuta. Todo mundo da saúde.

OP - Mas foi natural o caminho deles?

Dr. Simão - Natural, mas a gente dá uns conselhos (risos). Não pode deixar ser muito natural, não. Dia de domingo, por exemplo, saía com eles pra passear e recebia um telefonema. “Ó, deu um problema aqui no IML”, lá ia eu pro IML. Eles ficavam correndo no IML, naqueles corredores. De repente, eu dentro da sala de necropsia, o menino chegou, era exatamente o Daniel. Ele tinha dois anos. Pensei que o menino não ia dormir naquela noite. E o Daniel acabou seguindo a mesma linha. Mas, lá em casa, a morte é um tema como um gol de futebol.

OP - Era um tema normal?

Dr. Simão - Sempre foi um tema normal. “Pai, tá cansado hoje? Muito cadáver?”, “morreram quantos hoje, pai?”, “muito cadáver hoje?”.

OP - O senhor sabe quantos corpos chegou a lidar em sua carreira no IML e SVO?

Dr. Simão - Sei não, não tenho nem ideia. Na minha posição de gestor, eu era tanto gestor como também atuava, porque para ser um bom gestor você tem que sempre estar com conhecimento técnico em dia. Eu ia para cima mesmo, quando era um caso complicado, eu confiava na minha experiência. Confiava no meu trabalho, principalmente. Mas não sei quantos corpos eu lidei. Quarenta anos é muita coisa. No SVO foram mais de 7 mil só no período de quatro anos, e era uma proporção menor que no IML, que tinha um quantitativo muito grande.

 

No cemitério do Bom Jardim

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Foto: Samuel Setubal/Especial para O POVO

OP - O senhor sempre citava em suas entrevistas que “os mortos falam”.

Dr. Simão - Os mortos falam. Foi um programa que nós desenvolvemos. Por causa de outra coisa que notei também. Segunda-feira, pegava o jornal O POVO: 50 mortes no fim de semana; Diário do Nordeste: 70 mortos; Tribuna do Ceará: 30. Estava havendo algum descompasso. Então, uma medida que foi tomada: o livro de entrada dos corpos passou a ser de livre consulta a qualquer repórter, de qualquer instituição, qualquer veículo que chegasse lá para ver e analisar a estatística. Tudo era colocado à disposição. Os mesmos dados que eu tinha no meu gabinete, tinha na mesa da Imprensa. Para o saudoso Landry Pedrosa (repórter do O POVO por mais de quatro décadas, falecido em março de 2018), eu dizia: “vou assinar a tua carteira, tu só vive aqui”. Fernando Ribeiro (jornalista, falecido em abril de 2021) só vive aqui. Era uma convivência muito próxima.

Nós pegávamos um determinado horário e fechávamos a estatística. Quem entrasse depois ia para a estatística do dia seguinte. Padronizamos. Na época, o fax era o mais moderno e eu tinha um soldado que trabalhava comigo, chamado Vinícius, que a gente fechava as estatísticas e passava fax para todas as redações, até mesmo as que não pediam. Isto era um mecanismo para a pessoa dizer: “Olha eu sou do Ceará, sou de Fortaleza, e morri. Tá aqui, em termos de números”. Para que se saiba que está acontecendo isso. Homicídios, masculino ou feminino, acidentes de trânsito. Começamos a despertar (interesse) para o número de pessoas que morriam que não precisariam morrer. Criou-se, então, um trabalho chamado Mortes Evitáveis. Foram uma série de campanhas onde a gente abordava literalmente pontos focais, baseado nos números, nessa análise, que é muito rica.

Dr Simão diz que teve um mentor ao escolher a cardiologia: o médico Régis Jucá, certamente o mais conceituado em seu ramo no Ceará. Na imagem, uma das campanhas para alertar sobre acidentes violentos(Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo)
Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo Dr Simão diz que teve um mentor ao escolher a cardiologia: o médico Régis Jucá, certamente o mais conceituado em seu ramo no Ceará. Na imagem, uma das campanhas para alertar sobre acidentes violentos

OP - Mas quais eram as mortes que poderiam ser evitadas?

Dr. Simão - Motoqueiro, capacete. Achar um motoqueiro de capacete há 40 anos era impossível, se hoje já é difícil. Você vai ao subúrbio de Fortaleza, depois de sábado e domingo, o pessoal tá tomando o mel (cachaça), andando de moto e tudo sem capacete. Hoje. Há 40 anos nem capacete tinha para comprar.

OP - Lembro que a Secretaria da Segurança Pública à época não se detinha tanto à importância das estatísticas. Lembro que um secretário nos falou que no órgão não havia um profissional estatístico nos quadros da Secretaria.

Dr. Simão - É tanto que as primeiras estatísticas, durante os primeiros 10 anos, nós fazíamos na caneta, não tinha computador para fazer um gráfico. Não tinha. Papel milimetrado era a técnica de fazer o gráfico para poder prever aquilo ali, depois fotografava, depois transformava. Era uma mão de obra grande. Mas era importante, tirava-se dados reais dos fatos.

OP - Só existia uma sede do IML. Onde era?

Dr. Simão - Só Fortaleza recebia o Estado todo. Quando tinha um crime de repercussão, eu vivia viajando, tanto fazendo necropsias externas, como exumações. Às vezes chegava no meu gabinete, achava que nunca iria terminar aquele trabalho. Eram de 50 a 70 pedidos de exumações, no Estado do Ceará inteiro. A gente pegava uma determinada região selecionada, saía na sexta-feira, juntava duas a três equipes, coordenadas, e a gente ia exumar os corpos. Porque eram pessoas que tinham sido assassinadas, mas não tinham sido examinadas, não tinham o (exame de) corpo de delito. Aí o inquérito não prosperava.

Na foto: Fachada do prédio do Instituto Médico Legal Foto: João Guimarães, em 06/12/1991(Foto: João Guimarães, em 06/12/1991)
Foto: João Guimarães, em 06/12/1991 Na foto: Fachada do prédio do Instituto Médico Legal Foto: João Guimarães, em 06/12/1991

OP - Nesse período de 1980, 1990, muita gente assassinada foi para a cova sem haver qualquer tipo de perícia?

Dr. Simão - Sim, porque quando não têm peritos no local, existe uma opção legal que é determinar um perito ad hoc. O delegado nomeia um médico que mora na região, o padre, até o açougueiro, no sentido de dizer que houve o óbito e que aquela pessoa morreu por tal causa, mas, obviamente, ele não vai conseguir detalhar. É a diferença de um técnico especializado fazer um trabalho e de uma pessoa que não tem noção, ela serve só para constatar o óbito.

OP - Por que demorou tanto a se ter noção da necessidade da importância da polícia científica no Ceará?

Dr. Simão - Acho que no momento que a gente entrou, começou a mostrar serviço, isso começou a se arraigar dentro da cultura organizacional. Passou a dar bons resultados. Um exemplo, rapidamente, um padre que faleceu, que era o padre da Igreja Redonda, na Parquelândia. Era o padre Djair. A princípio, ele foi subir a escada e morreu. Quando entrou a parte técnica, tanto o estudo criminalístico como Instituto Médico Legal, a análise da coisa, havia uma distorção. Não era desse jeito. Aí você mostra como é, a Polícia amplia o seu raio de investigação e se prova que realmente foi um homicídio. Passou a ter uma importância muito grande. E isso gerou o reconhecimento das pessoas. O DNA hoje é tudo.

Capa do O POVO de 3 de outubro de 2003 destaca o brutal assassinato do padre Djair(Foto: O POVO.doc)
Foto: O POVO.doc Capa do O POVO de 3 de outubro de 2003 destaca o brutal assassinato do padre Djair

OP - Falo da tomada de decisão política administrativa. Porque a Bahia já era muito avançada na medicina legal enquanto o Ceará ainda engatinhava.

Dr. Simão - O governo Gonzaga Mota (entre 1983 e 1987) foi o responsável pela construção estrutural física desse IML, que abriga o Instituto Médico Legal e o Instituto de Criminalística, fazendo com que tivesse uma sede própria. Foi o primeiro governo que sentiu a necessidade. Porque, retrospectivamente, o IML antigo era um anexo do Hospital São José. Lá tinha um necrotério, por ser um hospital onde morria muita gente. Esse necrotério foi transformado em IML. Mas obviamente que a cidade em expansão, 1 milhão e meio de habitantes, não tinha como dar vazão. O IML da Leste-Oeste foi construído, e lá (ao lado do Hospital São José) foi demolido. Ele passou a ser no Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), em Messejana. Lá, o compromisso do governador, à época, foi o seguinte: vamos retirar o IML da Parquelândia, por clamor popular, e no dia que o IML for transferir para lá, trago um trator para demolir toda a sua estrutura. Houve esse simbolismo, para mostrar que a coisa tinha acontecido e funcionou bem.

 

Chacina dos Portugueses

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Foto: Samuel Setubal/Especial para O POVO

Capa do segundo clichê do O POVO de 26 de agosto de 2001, remontando a Chacina dos Portugueses(Foto: O POVO.doc)
Foto: O POVO.doc Capa do segundo clichê do O POVO de 26 de agosto de 2001, remontando a Chacina dos Portugueses

OP - A morte foi muito cruel.

Dr. Simão - Esse é um dos eventos muito fortes, porque a gente estava literalmente na vitrine dos fatos. Todos queriam divulgar. Então a importância de se fazer um trabalho bem feito para que a Medicina Legal do Estado do Ceará tivesse o seu nome e mantivesse o seu padrão técnico e o respeito dentro da instituição para consolidar essa conquista. Outras duas situações bem assemelhadas, que também envolveram muitos corpos, foram aqueles desastres de ônibus. Teve um desastre no Carnaval, com 42 mortos. Teve o de Barro (em fevereiro de 2004, com 42 mortos) e o de Aracati, na ponte (em fevereiro de 1991, com 41 mortos).

No Aracati, o volume de corpos era muito grande. Carnaval, que já tinha um quantitativo triplicado do dia a dia de corpos que a gente administrava. Foi muito trabalhoso. A preocupação com a entrega desses corpos de identificação era muito grande. Ninguém tinha um documento. Tinha que ser um reconhecimento feito pela família. O que nós fizemos? Tinha um salão bem grande, eram tantas mesas, para tantos corpos, que as mesas não cabiam. Então a gente mandou comprar alguns panos brancos, colocamos os corpos lado a lado, em três grupos.

Eram mais de 40 vítimas. A gente cortou os panos, cobriu os corpos já necropsiados, e deixava a fisionomia, o rosto aparecendo. O familiar ia entrando, um a um, percorria. Quando encontrava e dizia “esse aqui é fulano de tal”, a gente pegava o número e ia fazendo associação do número com o possível nome. Numa determinada ocasião, quando já não tinha nenhum familiar, peguei uma prancheta para fazer a contagem de quantos corpos ainda precisavam ser identificados. Tinha uma senhora (lado esquerdo) e tinha um garoto (lado direito). Ele bem próximo a ela. Eu vi o garotinho e lá na frente (do salão), em outro local, tinha outro garotinho (também morto), parecido com aquele. “Rapaz, podem ser irmãos”, deduzi. Então decidi botar esses dois corpos próximos para, eventualmente, quando o familiar passar, já vai ver, associar, e já diminui o sofrimento. Coloquei o menino ao lado do outro… rapaz, aconteceu um negócio… A mulher necropsiada, um menino do lado direito dela, o outro menino do lado esquerdo, que eu tinha colocado porque achei os dois parecidos. Aí a mão dessa senhora fez um movimento bem lento, levantou o pano…

OP - Ela necropsiada?

Dr. Simão - Ela já necropsiada. E colocou o braço no menino da direita, bem lentamente. Quando eu vi aquilo, rapaz, a sensação (risos)... eu já tinha 20 anos de legista, mas não é fácil ver aquilo.

 

Histórias de assombração

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Foto: Samuel Setubal/Especial para O POVO

OP - Mas esta cena do crime tem que estar muito bem preservada?

Dr. Simão - É um dos pontos mais importantes. E a necropsia propriamente dita é fundamental. Aí você casar uma necropsia bem feita com o local do crime preservado e bem examinado, você tem em mãos uma situação bem evidente.

OP - O senhor acredita, ou assume, ter cometido erro por conta de um local de crime mal preservado?

Dr. Simão - Um local de crime é de competência da perícia criminal. A gente, muitas vezes, recebeu informações divergentes. O perito, às vezes sem condições, uma lanterna que não está funcionando direito, um local que não foi bem preservado exatamente, ele olha ali, acha que foi uma facada. Chega lá, a guia policial como homicídio a faca, aí quando o legista vai analisar, na sala de necropsia, com mais condições, boa iluminação, o material cirúrgico para você reconstituir as coisas, aí você vê que era bala. Então chamávamos a equipe que disse que era faca, mostrávamos que foi bala, para mostrar que houve convergência nas informações.

O crime da Base Aérea

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Foto: Samuel Setubal/Especial para O POVO

OP - O senhor também puxou a criação do Serviço de Verificação de Óbitos (SVO)?

Dr. Simão - Nós tínhamos um problema gravíssimo. Morreu era sinônimo de corpo para o IML. Então, recebíamos tudo. Morreu, era IML. Aquilo estava rigorosamente equivocado. Começou-se, então, a dar uma sobrecarga gigantesca de trabalho. Porque a gente era muito exigente com a execução dos trabalhos. Que os corpos demorassem o mínimo de tempo possível, porém no tempo necessário para executar o melhor trabalho possível.

Até que chega um ponto que não adianta mais, tem que liberar o corpo que o resto vai ser para descrever, analisar, qualificar, examinar as substâncias químicas. Mas o fluxo de pessoas que morriam de forma natural era quase o mesmo dos que morriam de morte violenta, o que significava que estávamos tendo o dobro de trabalho. No caso da morte natural, é importante você ter um diagnóstico que não é competência nem habilitação do médico legista. Já é o patologista que vai executar esse trabalho, que é no microscópio.

Às vezes há situações no exame macroscópico, mas a maioria vai para o microscópio. Para saber se tem determinada doença. E esses dados, ao serem compilados, vão funcionar para ajudar nas políticas públicas também. Ia ter, lá na frente, um buraco gigantesco, porque se eu não sei de que se está morrendo na cidade de Fortaleza, não vou poder alocar as providências administrativas, legais, técnicas e compatíveis com a solução desses problemas. Foi difícil porque a Secretaria da Saúde, a princípio, estava em uma zona de conforto gigantesca.

OP - Lembro que numa segunda-feira o IML amanheceu sem receber corpo de morte natural.

Dr. Simão - Foi. Até que a gente resolveu adotar uma conduta radical, depois de negociar, negociar e negociar exaustivamente, mais de um ano, e absolutamente nada acontecia. Entramos em contato inicialmente com o Conselho Regional de Medicina, com a Secretaria da Segurança Pública, e fizemos uma exposição de motivos, mostrando o porquê.

O Ministério Público nos apoiou por inteiro. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) também. E aí amanheceu a segunda-feira, “não entram mais corpos de morte natural aqui”. Aí os corpos começaram a entrar em decomposição nos hospitais, nas casas das pessoas, chamaram para uma reunião urgente, secretário disso e daquilo, promessa de executar. A gente cedeu. Voltamos a receber, foi o período em que foi construído o SVO, e a partir daí ele assumiu a missão. Foi um parto a fórceps. Mas foi muito bom ter acontecido porque ainda hoje ele está fazendo um bom trabalho. E, por coincidência do destino, passei seis anos sendo diretor do SVO.

Pode-se dizer que o médico legista é atualmente repositório da memória da violência no Ceará. Pelas mãos do Dr Simão passaram grandes investigações criminais(Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo)
Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo Pode-se dizer que o médico legista é atualmente repositório da memória da violência no Ceará. Pelas mãos do Dr Simão passaram grandes investigações criminais

OP - Depois foi para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), onde ficou por quatro anos. Como foi essa experiência?

Dr. Simão - Ela foi maravilhosa. Era o chamado Samu Litoral Leste, foi o primeiro Samu fora de Fortaleza. Funcionou bem, teve excelente resultado. Houve uma aceitação do público e do Governo do Estado. Ficou tão satisfeito que ampliou para Samu Ceará. Tive a honra de ser precursor e iniciar a formação do Samu Ceará, que está em conclusão. Acho que fechou agora 100% dos municípios. A gente começou a evidenciar a importância do Samu, pela experiência que tinha do IML. Um trabalho aberto, claro, transparente, questionamentos de instituições para resolver os problemas básicos, e mostrar que a coisa pode funcionar. É pública, é de graça, e funciona bem.

A tônica era essa: aliviar a dor e tempo-resposta. Tirei as ambulâncias da garagem. Para que eu quero dez ambulâncias aqui dentro? Espalhei essas ambulâncias pela CE-040. Chamava de pontos-base. Aproveitando ideias da segurança pública para diminuir o tempo de resposta. Facilitou muito, foi muito bom. Uma experiência que me fez crescer bastante. Principalmente vendo que abrimos as portas para o Samu Ceará. Visitando os prefeitos mostrando a importância de eles aderirem a essa formação do Samu. A gente levava uma ambulância na Prefeitura e mostrava se uma pessoa tivesse um infarto. Houve a implantação da cultura em relação a isso.

Mostrou serviço, bom e de qualidade, a coisa evolui. Demanda tempo, porque tem fator político, econômico, cultural, que são freios, mas que termina acontecendo. No SVO também foi muito grato o trabalho lá. Eu percebi um grande problema que tinha lá. No IML eu tinha uma rede de rabecões em via pública, disponível a qualquer hora. No SVO, só funcionava de 8 (horas) da manhã às 5 da tarde. E já fizeram um acordo com São Pedro (risos), para não chamar ninguém antes ou depois desse horário? Amanhecia o dia, 12, 13 corpos, falei “não, não dá”, vamos fazer o que eu fiz no IML, 24 horas. Na minha época não era, passou a ser, hoje em dia não faz mais necropsia à noite.

 

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Foto: Governo do Estado do Ceará / Divulgação

Dr. Simão - Coloquei o SVO para funcionar 24 horas. E comecei a detectar, também, um outro problema sério, que foi onde entrou sério a questão social. Quem precisa do SVO? Quem é o cliente do SVO? É o cara pobre, que pouco teve assistência médica, ou nem teve, nem se sabe do que morreu. Porque a pessoa que tem plano de saúde ou tem algum recurso morreu em um hospital. Aí o médico assistente está cuidando dele. Pode até a doença não ter sido curada, mas se sabe que aquela doença era uma embolia pulmonar, um câncer de pulmão, um câncer de próstata, aí se dá o atestado, se sabe e está resolvido.

E quem morreu na favela, que ninguém sabe nem onde é? Não se sabe de que morreu. E aí? Como ele vai para o SVO? De ônibus não dá. De mototáxi muito menos. E o SVO não tinha viatura. “Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé”. Coisa simples. Criei quatro equipes e chamei de SVO Móvel. Esse chamado vai bater na Polícia, meu campo de trabalho. Ia tudo bater no fone 190. Então, fiz o convênio. Botar uma cabinezinha a mais para o SVO (dentro da sala de operações da Ciops). Botamos lá. "João morreu, não se sabe o que fazer". Passava para o assistente da SVO.

Eu tinha pontos-base que já funcionavam. Aí tivemos que botar a cabeça para funcionar. Criar estruturas era fora de parâmetro. Seriam gastos enxutos. Anexei estas estruturas onde já tinha outras estruturas do Governo do Estado. Uma dentro da própria Secretaria da Segurança Pública lá na avenida Bezerra de Menezes, outra dentro do próprio IML, outra lá nos Bombeiros, perto do Detran. Eram essas três.

Então, de acordo com a zona da cidade, peguei o mapa, daqui para baixo é isso, daqui para cima é isso. Chegava o chamado, ia uma equipe nossa. O detalhe, exatamente no aspecto social: a equipe levava um motorista, um médico e um assistente social. Porque o grande problema que a pessoa estava vivendo lá era social, por inteiro. Primeiro para explicar para a família os direitos que ela tinha, para pedir a pensão… Isso já era catalogado, feito o resumo, informado, orientado. E o médico ia para saber o que foi que aconteceu.

Com a análise preliminar do médico, às vezes ele já tinha até um pré-diagnóstico. A pessoa tinha um câncer de pulmão, estava fazendo tratamento, estão aqui os exames dele, mas teve uma falta de ar e morreu. Então esse paciente não precisava ir à sede do SVO para ser necropsiado. Porque na história clínica dele já estava embutido o diagnóstico. Se eu fosse levar, estaria fazendo um retrabalho. Porque a coisa mais cara é quando você tem muito trabalho a fazer e fica trabalhando de novo onde não precisa. Com isso, a gente dava uma assistência social à família, um atendimento rápido e um atendimento que ia melhorar nossos perfis de diagnóstico, do que se está morrendo no Ceará.

Chacina dos Portugueses, mortes dos militares no interior da Base Aérea de Fortaleza, mortes do pistoleiro Mainha são alguns dos casos emblemáticos na carreira do Dr Simão(Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo)
Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo Chacina dos Portugueses, mortes dos militares no interior da Base Aérea de Fortaleza, mortes do pistoleiro Mainha são alguns dos casos emblemáticos na carreira do Dr Simão

OP - Foi possível descobrir cenários que até então não havia informação pública conhecida?

Dr. Simão - Não deu pra chegar nesse nível porque passei só seis anos. Dois foram para fazer o primeiro atendimento. Quando você chegava na Secretaria, vou precisar de quatro carros aqui para isso, é difícil né? Aí vou precisar mais de uma equipe de 20 médicos para ficar de plantão dia e noite. Morreu de madrugada, teria que esperar ser atendido só pela manhã? A família ficar esperando uma noite toda com o cadáver ali do lado? Isto é um sofrimento que não precisa acontecer.

Depois de dois anos, efetivou, e ainda passei quatro mais quatro. Durante esses quatro anos foram mais de 7 mil visitas domiciliares com atendimentos às pessoas carentes, nesse modelo implantado. Nas favelas, às vezes as pessoas roubavam os pneus dos carros. Voltavam os carros sem pneus, aí passou a não ter mais estepe. Os médicos sem celular, sem aliança, sem relógio, ninguém usava.

Os carros eram parecidos com os da Segurança Pública, mandavam tirar o intermitente, e eu falava: não, aqui é Medicina. Só andavam de vidro aberto, todo mundo de bata identificadora. Até que começou a ser aceito pelas comunidades, pela população, saber que existe. Tanto que dos que a gente atendeu, 99% eram pobres. Na forma da lei, daqueles que o enterro nem tinham como fazer.

Uma coisa que eu me orgulho a mil. Nessa época, não sei agora, tomara que não, existia a necessidade de as pessoas pobres, para serem sepultadas, eles faziam um bingo à noite. Era um cadáver aqui e o bingo de uma coisa insignificante qualquer. Para juntar dinheiro para as despesas funerárias. Quando, na realidade, a Prefeitura de Fortaleza tem um compromisso com isto. Para executar o enterro, ela precisa de uma declaração social dizendo que é pobre na forma da lei e de um atestado de óbito. Como a nossa equipe já tinha essa orientação, já produzia isso rotineiramente.

OP - Aumentou muito acionar esse benefício na Prefeitura?

Dr. Simão - Ora, papocou lá. Eles tiveram que fazer o trabalho deles: enterrar dignamente as pessoas. Eu sempre gostei de dizer que uma pessoa morta tem que ser tratada melhor do que quando estava viva, porque viva ela tem a capacidade de reação, de se defender. E o morto, não. É o reconhecimento da cidadania pós-morte. É ultra-especial, porque se faz laudos para acionar direitos, o sepultamento ser digno, ter um respeito ao corpo propriamente dito, e os cuidados sociais que demandam.

Sobre Mainha

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Foto: Samuel Setubal/Especial para O POVO

28 de maio de 2002, dr. Simão apresenta o projeto "Pé na Cova", de prevenção de mortes no trânsito(Foto: O POVO.doc)
Foto: O POVO.doc 28 de maio de 2002, dr. Simão apresenta o projeto "Pé na Cova", de prevenção de mortes no trânsito

OP - Então vamos falar da operação Pé na Cova.

Dr. Simão - Esta é legal (levanta-se para buscar e exibir uma camiseta da campanha, que havia guardado). A gente fazia uns cenários nas saídas de Fortaleza (A campanha mostrava caixões e veículos abalroados, destruídos em acidentes, para alertar sobre os riscos de álcool e direção no período carnavalesco). Dentro dos caixões colocávamos uns bonecos. Começou o Carnaval. Uma vez esqueci de avisar ao Ciopaer, eles viram o carro destruído e comentaram “rapaz, o caso ali foi grave”. Baixou o helicóptero e tudo.

A Pé na Cova foi na época que lançaram as mobiletes. A moto cinquentinha, aqueles loirinhos pegavam a cinquentinha, aceleravam e pow, chegavam no IML. Tinha dia que eram três, quatro. Então fizemos o seguinte: uma abordagem no meio da rua, parava, tirava uma foto, era o carro da Polícia, perguntavam “para que essa foto?”. E a gente dizia que a maioria das pessoas com essa moto não sabe pilotar e estão morrendo. E já alertava. Chegam lá tão esbagaçados que a gente não sabe quem é, de onde veio, então já tô com tudo aqui para o atestado de óbito.

O próprio Governo do Estado brigava comigo, dizia que era muito agressivo. Mas hoje em dia há campanhas que estão nessa linha. Demorou 20 anos para eles verem que eu estava correto. Ao fazer as necropsias de motoqueiros, motoqueiro tem muito amigo, a gente avisava: “Vem aqui, dar uma olhada, para reconhecermos o corpo”. Fiz a necropsia no anfiteatro do IML (ambiente interno para aulas de medicina), aí permiti a entrada de três a quatro pessoas. Saíram divulgando o que viram. Aí o pessoal começava a botar o capacete. Foi bem didático.

 

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