Hélio Hermito Zampier Neto é uma exceção. Apaixonado por futebol desde a infância por influência do pai, insistiu no sonho de se tornar jogador e migrou do futebol de subúrbio para a carreira profissional já aos 18 anos. No ápice da trajetória, pouco mais de dez anos depois, foi um dos seis sobreviventes da tragédia do voo da Chapecoense e o último a ser resgatado, quase oito horas depois, quando um policial ouviu um gemido de dor em meio aos escombros.
Hoje ex-zagueiro, aos 37 anos, Neto superou as dificuldades do início da carreira para chegar a clubes de maior vitrine e disputar as principais competições nacionais e internacionais. Logicamente, a vida mudou depois do acidente, inclusive profissionalmente: as dores não permitiram que ele voltasse a jogar futebol, e o carioca migrou do campo para os bastidores, virando dirigente da Chape, mas não se agradou com o ambiente neste outro lado.
Após período mais recluso desde a saída da equipe catarinense, Neto focou a área profissional em palestras sobre sua experiência de vida e quase morte — faz diversas viagens pelo Brasil inteiro, sem traumas —, e voltou a dar entrevistas. Em pouco mais de uma hora de conversa com O POVO, o ex-jogador revisitou toda a trajetória, falou sobre o ex-companheiro Neymar, relembrou os momentos pré e pós-acidente, revelou alívio pela aposentadoria, explicou a luta das famílias das vítimas pelas indenizações e destacou a nova forma de enxergar a vida.
O POVO - Como o futebol surgiu na sua vida? Teve alguma influência na família?
Neto - O futebol começou como uma paixão pelo meu pai. Meu pai foi um grande peladeiro, como a gente diz no Rio (risos). Ele deixou de ser profissional porque casou muito cedo, meu avô não ajudou ele. Era um cara que tinha o sonho de ser jogador de futebol, mas casou com 18 anos e, naquele período, o futebol não era tão profissionalizado como é hoje. Meu avô achava que futebol era coisa de quem não queria trabalhar. Ele sempre teve o sonho de ser atleta, mas se casou jovem e, de certa forma, passou isso (paixão pelo futebol) para os filhos.
Eu sou o caçula de quatro homens e talvez fui aquele que mais acompanhou o pai. Meu pai ia jogar futebol no campo ou futsal e eu sempre ia com ele, fui pegando aquele gosto pelo futebol, mas era um gosto bem distante, porque de onde eu vi, lá da periferia do Rio de Janeiro, era tudo muito distante, os sonhos eram somente sonhos, era difícil torná-los realidade. Os clubes eram longe, então era um sonho distante, mas eu sempre fui aquele menino que fui apaixonado por futebol desde pequeno. Todo bairro tem um menino bom de bola, que todo mundo fala: 'Cara, esse menino joga muito'. E eu era o Netinho lá da Pavuna. 'O Netinho joga muito'. Uns me chamavam de Russinho, porque o apelido do meu pai é Russo, e outros de Netinho. Sempre fui aquele que se destacou. Foi por conta do pai e dos meus irmãos mais velhos, todos eles sempre gostaram bastante de futebol, todos flamenguistas roxos. Aquele negócio de ver jogo no final de semana com a família reunida, falar de futebol, de clube, seleção... Sempre teve isso na minha família. Esse gosto fez com que eu tentasse ser um atleta profissional também.
OP - Quando percebeu que poderia seguir carreira profissional no futebol?
Neto - Eu comecei no futebol muito tarde. Na verdade, eu vejo que Deus tinha um plano na minha vida porque eu sou exceção da exceção. Meu primeiro clube foi com 18 anos, o Francisco Beltrão-PR. Até então, eu tinha feito testes no Rio de Janeiro no Fluminense, Flamengo, Olaria e Madureira e não passei em nenhum e isso me frustrou um pouco. Eu comecei a sonhar com futebol quando entrei para o colégio Mercúrio, colégio particular lá do Rio, na Pavuna, meu bairro. Nesse colégio, fui fazer um teste no futsal, porque poderia ganhar bolsa para estudar em um colégio particular, com uma família simples, passei no teste e comecei a jogar pelo futsal da escola, enfrentando outras escolas do Rio de Janeiro, com jogadores de Flamengo, Vasco, e comecei a me destacar no futsal, a ganhar. Teve um ano, se não me engano 2002, que nós chegamos a todas as finais do Rio que competimos, e era um colégio que não tinha ninguém de clube, eu comecei a me destacar muito, aí fui jogar o amador no meu bairro. Daquele time, eu recebi proposta para ir para o Francisco Beltrão, do Interior do Paraná, e aceitei.
Tudo começou a ser um sonho, que estava guardado em uma caixinha, por eu ter reprovado em muitos testes quando era jovem, mas com 17, 18 anos, jogando pelo futsal do colégio e pelo amador do bairro, tive essa proposta e fui embora. Muita gente até acreditou que não poderia ser possível porque 'poxa, 18 anos está velho, nos juniores, não jogou nada em categoria de base alguma'. Mas eu peguei e fui, com a cara e a coragem. Meu pai me deu apoio e incentivo necessário. Meu pai, minha mãe e minha esposa sempre me apoiaram em tudo que eu pensei, tudo que eu tentei realizar, sempre me deram palavras positivas. Foi o primeiro clube que eu pude jogar e foi a porta que Deus abriu para que eu pudesse ter uma carreira profissional mais tarde.
OP - E as dificuldades no início da carreira, em clubes de estrutura menor?
Neto - A dificuldade é muito grande. Primeiro porque você está no mesmo país, mas o nosso Brasil é um continente, então você está em uma cultura muito diferente, em um clima completamente diferente. Em Beltrão eu cheguei a pegar 1ºC. No Rio, o inverno é 17ºC (risos). Você passa muito frio e, vira e mexe, até criar alguma amizade no elenco ou no clube é bem difícil, apesar de que em Beltrão o povo é bem receptivo, mas a gente sente as dificuldades. Você saiu da sua casa, onde sempre viveu com seus irmãos e amigos de infância, e vai para um lugar onde não conhece ninguém, mas era o preço que deveria ser pago. Hoje eu sou palestrante e sempre conecto que é necessário pagar um preço para que a gente consiga alcançar os objetivos.
Eu lembro que fui com meu pai fazer esse teste, eu passei, meu pai soube antes de mim e me falou um dia antes de ir embora: 'Amanhã eu vou embora, você passou no teste'. Foi um baque para mim. Ali você cai na realidade. Eu tive alguns amigos com quem joguei junto que eram nordestinos, e eles tinham bastante dificuldade quando iam para São Paulo... E eu senti também, porque é uma outra cultura, outro jeito de falar, de ter amizade, se comunicar, brincar... Eu tive toda essa dificuldade, tirando a dificuldade do clima, que era um frio absurdo. Mas com muita fé, apoio da família, palavras positivas, meu pai e minha mãe sempre falando: 'Vai que vai dar certo'... Eu fui indo, muitas vezes empurrando com a barriga, muitas vezes chorando dentro do alojamento sem ninguém saber, mas pedindo a Deus que me desse força para conseguir os objetivos.
OP - Quando você chegou ao Guarani-SP, entendeu que a carreira estava no caminho certo?
Neto - Quando eu fui para o Guarani, percebi que, antes de qualquer coisa, o futebol era profissional. Todo mundo acha que o futebol é feito pelo dom; o dom é um detalhe. Você tem que ralar muito, porque o que você quer, todo mundo quer. Quando você vai para Campinas, um grande centro, o clube que eu fui, o Guarani é campeão brasileiro na década de 1980. Eu fui para um grande adormecido, mas que não deixa de ser grande, com uma grande torcida, apoio popular muito grande lá em Campinas, que é uma cidade do Interior, mas com mais de 1 milhão de habitantes. Um clube com uma responsabilidade maior, na Série B do Campeonato Brasileiro. Eu estava no Cianorte quando fui para Campinas; o Cianorte jogava o Campeonato Estadual e mais nada. Eu fui para um time que estava jogando o Estadual e mais o Brasileiro da Série B, então o nível já sobe.
A estrutura era outra, a cobrança é muito mais pesada, existem torcidas organizadas, que cobram muito. Então eu pude ver que o futebol é profissional e precisaria me dedicar mais ainda. Eu tinha o entendimento que tinha dado um passo importante na minha carreira, mas poderia dar outros passos importantes também. 'Cheguei no Guarani, posso chegar em um Flamengo, em um Corinthians, Grêmio, Cruzeiro...'. Eu estava entendendo que com muita dedicação e profissionalismo, estava conseguindo alcançar os objetivos e, a cada vez, o funil ia apertando. Quanto maior o nível que você sobe, maior a qualidade. Não é mais um treino tão fácil de quando você está em um momento bom em um clube pequeno, agora você está em um grande clube e todo mundo é muito bom. Então você começa a perceber: 'Não consigo mais roubar a bola com tanta facilidade'. E aquilo te faz evoluir, porque você está jogando com outros jogadores de nível superior.
E foi bem legal para mim a experiência no Guarani. Cheguei machucado porque em 2009, quando o Guarani quis me contratar, eu machuquei o joelho e o Guarani me levou machucado, na reta final da minha recuperação. O Guarani foi vice-campeão brasileiro daquele ano e eu não joguei. Quando eu fui jogar, em 2010, fui muito mal voltando da lesão, fui emprestado para jogar a Série D no Metropolitano-SC, de Blumenau, aceitei e fui lá jogar a Série D. Quando eu voltei para o Guarani, em 2011, já era um outro Neto, mais maduro, mais confiante, sem melindre nem medo da lesão. Quando a gente volta de uma lesão grave, volta com um certo receio, e os clubes não têm esse tempo para te dar para voltar, recuperar a cabeça, o corpo... O corpo você recupera, mas o principal é a cabeça. Tem gente que consegue jogar com uma lesão, tem gente que volta de uma cirurgia e demora três meses para jogar bem, demora um ano para adquirir a confiança . Tudo na vida é confiança. Em 2011 foi quando minha carreira começou a deslanchar e comecei a ter mais oportunidades no Guarani.
OP - Nessa época, passando a jogar com atletas de alto nível, quais os atacantes que te deram mais trabalho?
Neto - No Guarani, o melhor atacante que eu marquei foi Neymar. A gente foi para a final contra o Santos e naquela época era quase impossível... Até hoje é difícil para quem vai marcar ele no mano a mano, imagina naquela época, com 19 anos. O Neymar foi um cara que eu vi que era acima da média. O Lucas Moura, que está no Tottenham-ING, jogando contra o São Paulo, na época que ele era novo, eu pensei: 'Esse cara é mais rápido do que o normal'. Rápido com a bola no pé. Tem cara que é rápido, mas é burro; ele não, era um rápido inteligente. Finaliza muito, é rápido com a bola no pé, dribla com facilidade. O Neymar, o Lucas, o Ganso... O Ganso, quando eu estava no Guarani, talvez seja o cara que eu vi de refino, de qualidade, que eu falei: 'Esse cara não precisa olhar para ninguém para tocar a bola'. É impressionante. Tu via o cara jogar como se fosse um maestro, um Zidane. Naquela época, quando ele surgiu, era um primor do futebol. Foram esses três que eu vi que eram acima da média, com nível muito acima do Brasil.
OP - Você jogou contra o Neymar e depois teve a oportunidade de ser companheiro dele. Já dava para perceber que era um jogador acima da média?
Neto - Já era. E isso impressionava a gente, porque eu pensava: 'Como um cara tão jovem tem tanto recurso assim?'. Recursos que você observava, nos treinos, que eram em cima da hora. 'Ele vai dar o drible tal' e, em cima da hora, ele mudava. Ia fazer uma coisa, em cima da hora voltava e conseguia se sair da jogada de outra forma. Uma coisa é ter a cabeça pensando, outra coisa é ter a cabeça e os pés conduzindo o que tu pensa. É igual ao videogame: às vezes a gente vai fazer uma coisa e não dá certo; com ele dava certo. Ele pensava e o corpo respondia.
Depois que eu joguei junto... Jogar junto foi um prazer enorme porque eu vi um atleta... Eu nunca pensei que fosse existir isso, um atleta que falava para os companheiros que ia decidir o jogo. Antes do jogo, chegava para os companheiros assim: 'Não vamos tomar gol porque ele (Neymar) vai decidir. Ele falou que está bem'. Eu nunca tinha visto isso, mas com ele eu vi. Era engraçado porque às vezes via o cara driblar três, quatro em um jogo, fazer um golaço e pensava: 'Como ele passou por aquele espaço? Como conseguiu finalizar'. E é uma coisa que quem está lá fora (de campo) pensa: 'Como ele fez isso?', e quem está lá dentro (de campo) pensa: 'Esse cara não é para estar aqui (no futebol brasileiro), é para ser um dos melhores do mundo'.
Foi um prazer jogar junto, treinar junto. Eram umas coisas absurdas que às vezes eu ligava para o meu pai para falar: 'Pai, ele fez uma coisa aqui que eu nunca vi.'. 'Como assim?', 'Pai, eu não sei explicar, teve um drible aqui que ele passou por três, não tinha como passar e ele conseguiu passar em cima da hora'. 'Mas como, filho?', 'Pai, eu não sei, vem ver o treino para tu entender, porque nem eu entendo'. Quando você vê alguém fazendo uma coisa que nunca viu, você não sabe nem explicar. Eu lembro que meu pai falava: 'Meu filho, ele é muito bom', e eu falava: 'Pai, se o senhor vê ele no jogo e acha muito bom, imagina no treino, que não tem pressão. Ele faz umas barbaridades'. Foi um momento especial a gente ter jogado juntos, uma pena não ter sido campeão, porque a gente perdeu a final (do Campeonato Paulista) para o Corinthians, em 2014, mas foi bem legal. Um momento que eu aprendi muito e entendi que no futebol existe um nível, mas existem jogadores seletos que Deus despeja um dom que não é nada comum.
OP - E como era sua relação com ele no dia a dia?
Neto - Ele sempre foi um cara muito tranquilo, que todo mundo sempre gostou, querido não só pelos atletas, mas pela comissão, todos do clube. Lá no centro de treinamento do Santos o pessoal amava ele, porque era um cara super acessível, talentoso e dedicado, treinava muito, tratava todo mundo bem. Uma das coisas que me impressionou em relação a ele — eu sempre gostei de videogame — foi que quando eu cheguei no Santos, ele me deu um jogo do Fifa que ele era a capa do jogo. Eu falei: 'Eu estou jogando com um cara que é capa do Fifa e ele está me dando o jogo' (risos).
Era uma coisa muito doida, você conviver com um cara que, em alguns momentos, chegava de helicóptero no treino porque estava fazendo uma propaganda em São Paulo, descia e corria mais do que todo mundo (no treino), decidia jogos. Eu ficava pensativo, porque muita gente pensa: 'Ah, se fosse eu...', mas eu pensava: 'Se fosse eu, não aguentaria fazer o que ele faz'. É impossível você ser reconhecido no mundo inteiro... Quantos jogos a gente foi fazer e os hotéis estavam lotados de meninas com cartazes, chorando por causa dele, às vezes ele chegava no treino em cima da hora, de helicóptero, corria mais do que todo mundo e ainda tinha a supercobrança de ele ter que decidir os jogos. 'Ah, ele ganha muito dinheiro, é muito reconhecido', mas é supercobrado. Quando a gente perde um jogo, a culpa não é nossa, é dele. 'O Neymar não fez gol hoje', mas às vezes somos nós. Tudo recai sobre ele, até hoje. O Brasil perdeu a Copa do Mundo, 'por que o Neymar não bateu o pênalti (contra a Croácia)?'. O Neymar fez o gol. Um gol que não tinha como fazer, estava tudo trancado, ele passou, tocou, driblou o goleiro... Mas a culpa recaiu sobre ele, que não bateu o pênalti.
Ele sempre carregou uma carga muito grande e, de certa forma, já tinha uma condição financeira maravilhosa com 19, 20 anos. Tu sustentar tudo isso e continuar treinando, se dedicando, tomando pancada que às vezes não deveria é difícil. Eu sempre olhei para ele, desde o Santos, e pensei: 'Esse cara suporta cada coisa que não tem nada a ver, mas recai tudo sobre ele'. E ele continuava tratando todo mundo bem, brincando, rindo, zoando, dando atenção aos fãs. Nessa época, todo mundo queria tirar foto com ele, e ele parava para tirar... Que paciência. Às vezes, voltando de avião de um lugar, de um jogo, tinha que parar ele, ele querendo dormir: 'Tira uma foto comigo, Neymar'. Então foi um aprendizado muito legal entender o tamanho da pessoa, não julgá-la por aquilo que faz, porque é um ser humano como nós e entender que muita coisa recai sobre ele sem a necessidade de recair, muito por aquilo que ele é, então existe uma cobrança gigante em cima dele e eu sempre percebi que tem que ter uma mente muito forte.
E isso é uma das coisas que eu sempre percebi: os grande talentos não só têm talento, eles têm uma mente muito forte para suportar e chamar responsabilidades que às vezes nem são deles. Teve jogo que eu vi ele falar: 'Vou fazer três gols hoje', e ele fez quatro. E não tinha como ele fazer quatro gols, o campo estava cheio de lama, mas ele prometeu que ia fazer três, ganhamos de 4 a 0. E eu sabia que Deus tinha dado um dom especial para esse camarada, porque a gente pode treinar o que for que não vai chegar no nível dele, pode se dedicar o que for que é impossível chegar no nível dele. Foram momentos de aprendizado. Deus pega um cara de uma família super humilde, super simples e transforma. Não é só treino, é dom. Um dom muito mais elevado do que o dos outros.
OP - E como surgiu a oportunidade de ir para a Chapecoense? Quais referências você tinha do clube na época?
Neto - No Santos eu não renovei o contrato, em 2014, e tinha proposta para ir para a Itália e para a Turquia. Tinha perdido um pênalti decisivo no Estadual, então optaram por não renovar comigo. Eu estava esperando as propostas da Itália e da Turquia, a proposta não chegava e surgiu uma proposta da Chapecoense. A Chapecoense tinha entrado em contato comigo em 2011, quando eu estava no Guarani e eu não fui. Em 2011 ainda era Série D; agora a Chapecoense entrava em contato comigo, sabendo que eu não tinha renovado contrato com o Santos, e estava na Série A. Fiquei muito feliz por ser uma Série A, não pensei duas vezes e fechei o contrato. Não era um salário alto, mas era um clube que pagava rigorosamente em dia, os salários, os 'bichos' (premiações).
Estava com esperança de manter o clube na Série A, que era uma dificuldade muito grande, porque a gente sabe que para um time de menor expressão permanecer na Série A é difícil, mas era uma diretoria muito estruturada, que falava e cumpria e estava trazendo jogadores importantes. Vieram Ananias, (William) Thiego, Denner... Acho que eles contrataram uns dez naquele período. Então, avaliando contratações, o jeito deles, tendo informações com outros atletas, isso tudo foi me estimulando e eu fechei o contrato em 2015. Foi muito bacana, porque 2015 foi um ano muito bom, quando eu cheguei, fiz gol de bicicleta, que ficou entre os dez gols mais bonitos do Brasileiro, fiz um gol de pênalti, tinha perdido um pênalti no ano anterior com o Santos.
A Chape, no primeiro jogo internacional da história dela, eu joguei e a gente eliminou um time do Paraguai na Sul-Americana, fiz um gol de pênalti. Eu até falo sobre isso na palestra, porque eu perdi um pênalti no ano anterior e, no outro ano, fiz gol de pênalti na Chape. Um erro não te define. Você é ser humano e vai errar, mas o que define é o que você faz com o erro. Tem gente que erra e não está nem aí; tem gente que erra e não quer errar mais, quer produzir mais. Para produzir mais e não cometer mais o mesmo tipo de erro, você precisa trabalhar em cima daquilo. Em 2015 e 2016, quando fiquei na Chape, foram anos maravilhosos, o clube batendo meta em cima de meta, cada vez mais sendo reconhecido, então foi muito bacana.
OP - A época na Chapecoense foi a melhor fase da sua carreira?
Neto - Acho que foi o melhor momento da minha carreira. Eu estava em ascensão, até porque eu fui um menino que não tive base, comecei com 18 anos. Então o meu pico de crescimento foi naquele momento, de nível físico, de confiança, técnico, mental. Já tinha passado por experiências boas e ruins e aquilo tinha me amadurecido para ser aquele grande atleta que eu era naquele momento. Isso tudo também se deve ao clube, aos jogadores que tinham naquele momento. A Chapecoense tinha um diretor chamado Maurinho que era um baita observador. Todos os jogadores, do Danilo ao Bruno Rangel, ao Kempes, 80 a 90% já tinha jogado em clubes grandes da Série A e não tinham se destacado. Ananias tinha jogado no Palmeiras e Cruzeiro, Josimar no Inter, Caramelo no Palmeiras, Thiego veio da base do Grêmio...
Então todo mundo tinha passado por um grande clube, mas não tinha despontado. A Chapecoense pegou todo mundo que estava dando sopa em um clube grande ou que se destacou em um clube menor e montou um elenco fortíssimo com essa personalidade. Jogador com qualidade, que talvez não tenham despontado em um grande clube, mas passaram por lá. Todo mundo que veio para a Chape jogar Série A já tinha jogado Série A. Eu no Santos e outros no Cruzeiro, Coritiba, Palmeiras, Inter... O Cléber Santana, um monstro de jogador, jogou por Flamengo, São Paulo, Santos. Era equipe especial, que marcou nome na história do futebol brasileiro.
OP - Quando vocês viviam o ápice da carreira e da história do clube, ocorreu o acidente de avião. E você sonhou dias antes com uma queda de avião, verdade?
Neto - Um momento de alegria para a Chapecoense, para Chapecó e para a região Oeste de Santa Catarina. Aqui é um pouco distante da Capital: são sete horas e meia de Florianópolis, seis horas e meia de Curitiba e é mais perto de Porto Alegre: cinco horas e meia. É uma região isolada, que é divisa com Paraná e Rio Grande do Sul, de um povo trabalhador. Era uma alegria tremenda. Primeiro em ter jogos de Série A aqui: jogar contra Grêmio, Inter, Flamengo, Cruzeiro, São Paulo... E tinha uma expectativa muito grande nossa de ser campeão (da Sul-Americana). A gente já tinha sido campeão do Estadual, estávamos bem consolidados no Estado e faltava um título grande para coroar esse trabalho. Nós tínhamos uma força muito grande, principalmente, dentro de Chapecó, na Arena Condá. Uma força nossa incrível, que a gente vendia caro as derrotas. Era um momento espetacular nosso.
Eu tinha sonhado que caía do avião e ficava vivo, na sexta-feira antes do acidente, que foi na segunda. Então eu estava receoso, não com a viagem para a Colômbia, mas para o jogo contra o Palmeiras. O Caio Júnior tinha dito que ia botar a maioria no banco, que do time titular só ia jogar Danilo e Cléber Santana. Eu não queria ir para São Paulo. Fui para São Paulo, o time perdeu para o Palmeiras, que acabou sendo campeão (do Campeonato Brasileiro). E a gente com muita expectativa de ser campeão (da Sul-Americana), as nossas conversas eram todas voltadas para essa final. 'A gente tem que ganhar, não pode tomar gol'. E a gente era um time que vendia caro as derrotas, tomava poucos gols. Eu me dava muito bem com o William Thiego, que faleceu, a gente era uma dupla de zaga muito boa. Ele me entendia no olhar e eu também entendia ele, a gente conversava muito sobre jogo, sobre adversários. (...) A gente sempre trocando ideia sobre futebol e tinha esse prazer de chegar ao clube. O treino era 15 horas, a gente chegava 13 horas para conversar, esse prazer de estar no trabalho.
Foi isso tudo que me marcou muito, as expectativas. Foi um momento mega especial, não só para a gente, como profissional, mas para o clube e para a cidade. Quem viveu isso tudo aqui sabe o quão difícil é. Para quem está lá fora pode parecer simples, mas só quem está dentro sabe o quão difícil. Foram boas lembranças que ficaram na minha memória, de pessoas que realmente queriam fazer história com a camisa da Chapecoense.
OP - Qual a última lembrança que você tem antes da queda do avião?
Neto - A última lembrança que eu tenho é olhando para o Bruno Rangel, ele entristecido e pedindo a Deus ajuda, orando, e eu também orando muito, todo mundo orando. O avião deu uma pane, desligou por completo, acendeu luz de emergência, depois tocou um alarme. São as últimas lembranças que eu tenho. Um choque na mente: 'Pô, vai acabar assim?'. Eu lembro da minha fala: 'Jesus, tem misericórdia, nos ajuda', chorando muito. E eu sempre pedia para nós, porque eu sabia que ou nós ficaremos ou nós morreremos.
Depois eu já não lembro mais de nada. Quando deu a pancada, eu já apaguei, acordei lá em dezembro, dia 10 ou 11, sem saber de nada. No primeiro dia não entendia nada, mas depois, no segundo dia, entendi, quando os remédios começaram a passar, porque eu fiquei esse tempo todo em coma. Comecei a olhar para o meu corpo, completamente destruído. A perna grampeada, joelho estourado, muita dor na coluna e na cabeça. Tive traumatismo craniano, abriu o crânio e entrou terra. Depois que eu soube de tudo que aconteceu, foi mega triste. Saber que você estava em uma final e hoje não tem mais ninguém aqui.
Tive que aprender, me adaptar a tudo que aconteceu, a não perguntar o porquê aconteceu. O porquê foi culpa do homem. Os homens erraram, todos que estavam envolvidos, desde o seguro, o controlador de voo, que liberou o voo sem gasolina... Uma série de erros que fez com que o erro do piloto desse 'certo', um erro acontecesse de fato. Se não tivessem outros erros antes dele, talvez isso não aconteceria. Fiquei me perguntando para que eu estava aqui, não por quê. Porque eu sei que o homem fez a cagada e Deus ainda teve a misericórdia de salvar alguns em um acidente que era impossível ter algum sobrevivente. E se tratando de mim, que fui o último a sobreviver, de seis a oito horas soterrado, um policial me achou sem querer, porque ele foi lá perto do avião ver os destroços e escutou um gemido.
'Por que eu estou aqui' foi uma pergunta que eu me fiz durante algum tempo, mas hoje, palestrando para empresas e indo a algumas igrejas, entendo que esse era o propósito de eu permanecer: através da minha história, ajudar pessoas a levantarem a cabeça quando tudo der errado e as coisas não saírem do jeito que eles planejaram. Eu planejei ser campeão da Sul-Americana e não aconteceu; aconteceu de outra forma, mas eu queria jogando e não aconteceu da forma que eu queria. Meus amigos não estão mais aqui. O clube permanece, mas essas vidas não estão mais.
O que eu tenho que fazer com isso se estou tendo a oportunidade de estar vivo, de ter saúde — não estável como antes, de atleta, porque tenho que operar coluna, algumas cirurgias a serem feitas. Mas estou vivo. O que eu deveria fazer com isso? Para que? E eu entendi esse propósito, agora trabalhando como palestrante e evangelista também. Sou formado em Teologia, ajudo na igreja, no ministério dos homens. Entendi que Deus queria algo muito maior do que o Neto ser atleta de futebol novamente, até porque eu tentei três anos e não consegui por causa da coluna e do joelho. Mas tenho entendimento hoje que a vida vale mais do que o esporte. O esporte é um entretenimento, uma alegria para um povo tão sofrido quanto o nosso, mas a vida vale mais e existe um propósito maior.
OP - E você ainda tentou voltar a jogar pela Chapecoense depois do acidente. Como foi esse processo?
Neto - Foi bem delicado, complexo. Eu perdi muito peso, quase 20 quilos, porque fiquei em coma esse tempo todo. Perdi muita massa, fiz uma cirurgia no joelho gravíssima. Fui o primeiro a voltar ao clube, no dia da apresentação em 2017, eu voltei com todo mundo do novo elenco. Mas eu tive que me readaptar, reaprender a andar, aprender a mastigar e engolir depois que saí do coma, porque perdi todo o músculo que engole. Fiquei muito tempo em coma, respirando 100% por aparelho, então perdi o músculo e a força, fui perdendo tudo. Tive que me readaptar, meu primeiro ano foi me readaptando a tudo: correr, saltar, com muita dor na coluna e no joelho, usando uma bombinha — que eu uso até hoje — de asma, porque o pulmão 'estourou', peguei uma bactéria grave e fiquei com asma crônica. Tudo isso tentando voltar a ser atleta e convivendo com alguns julgamentos também.
Escrevi um livro sobre a minha vida, 'Posso Crer no Amanhã', fui em algumas igrejas dar testemunho e tentando voltar a ter condição física, pelo menos o mesmo peso, fazendo trabalho de fortalecimento muito bom. Mas convivendo com julgamento de algumas pessoas, que falavam: 'Ah, não voltou por causa da cabeça (parte psicológica)'. Minha cabeça estava boa, sim, mas meu corpo nunca mais ficou como era. No segundo ano eu comecei a pegar um pouco mais pesado, em 2018. Eu já tinha muitas dores na coluna e no joelho, mas em 2019 chegou um cara aqui em Chapecó chamado Rodrigo Pignataro, que hoje está no Coritiba. Ele trabalhou muitos anos no São Paulo e fez um check-up. Comecei a treinar com o grupo, a partir das dificuldades e limitações que eu tinha, ele introduziu alguns exercícios e eu comecei a trabalhar com o grupo de forma coletiva. Quando eu estava começando a treinar em alto nível, de igual para igual com todo mundo, meu joelho e minha coluna sentiram. Até hoje eu tenho que fazer uma cirurgia na coluna, porque quebrou um osso, achatou uma vértebra, rompeu ligamento... Eu fui desamarrar o cadarço da chuteira em um treinamento e não consegui de dor.
Na verdade, eu já tinha muita dor, já levantava da cama com dor, entrava no carro com dor. Fui tentando: 'Deus me deu a chance de estar vivo aqui, tenho que voltar a jogar'. Aí, os médicos me chamaram para conversar e falaram que não dava mais, o futebol era difícil para mim, que eu já estava vivo e tinha que agradecer a Deus, cuidar mais do meu corpo, porque se continuasse assim ia ter que usar uma prótese e não teria um envelhecimento saudável. E eu não poderia mais ser aquele atleta de alto nível porque meu corpo não aguentaria mais. Encerrei a carreira, bola para frente. Uma tristeza para a família, porque todo mundo esperava que eu voltasse, mas para mim não. Para mim foi um alívio, de certa forma, porque eu entendi que tinha feito tudo que podia e que realmente não era aquilo que Deus queria da minha vida (...).
Encerrei no final de 2019 e o presidente (da Chapecoense) me chamou para ser diretor do clube, perguntou se eu aceitava ser aquele diretor que fica entre jogadores e direção, e eu aceitei. Foi bem legal em 2020, a gente foi campeão estadual e da Série B, no meio de uma pandemia. Em 2021 já foi mais difícil, o time subiu para a Série A sem condição financeira nenhuma, uma folha mais barata do que de campeão da Série B, R$ 1 milhão a menos, por causa das dívidas que o clube havia acumulado. Então foi um ano terrível. Foi bom porque eu pude perceber, além da sujeira do futebol, que as pessoas tomam decisões e não assumem, pude ver que esse não era um trabalho para mim. As informações que saem nem sempre são verdadeiras, pessoas vivem te julgando pelos resultados, muitas vezes tocando na sua índole por ganhar ou perder.
OP - O fato de ter sobrevivido ao acidente era o que te motivava a tentar voltar a jogar?
Neto - Era isso que me movia. Eu olhava para o (Jakson) Follmann, que perdeu uma perna e eu sou padrinho de casamento dele. O Alan (Ruschel) com a coluna toda grampeada. Eu ficava assim: 'Estou vivo, destruído internamente, mas externamente não perdi membro nenhum, então vou voltar'. Só que eu sentia muita dificuldade. Dores a gente sempre sente por ser atleta, mas as dores que eu sentia eram absurdas. E convivendo com julgamentos: 'Ah, ele não voltou por causa da cabeça'. Eu caí do avião e estão pensando que não voltei por causa da cabeça. Quando o médico me falou, eu não quis levar muito à frente isso porque confiava nos médicos do clube, e o clube sempre me deu o respaldo necessário para tentar voltar a ser atleta. Quando o médico falou que era melhor encerrar por ali, para mim foi um peso pela família e um alívio por tudo que eu tinha feito e estava sofrendo.
O futebol, que antes era um prazer, estava se tornando uma dor, tendo que conviver com dores absurdas e tentar voltar a ter o prazer de jogar futebol, coisa que eu não conseguia mais fazer. Eram muitas dores, que me limitavam, me entristeciam. O cara conviver com dor como atleta é uma coisa, conviver com uma dor de uma tragédia, que quebrou sua coluna, o parafuso da cervical que eu tinha quebrou dentro do osso, o joelho estourou por completo, não tinha mais cartilagem, o pulmão estourado, então às vezes atacava a asma e tinha que usar a bombinha para respirar... Tudo era com muita dificuldade e muitas dores. Eu queria ser o atleta que fui em algum momento, mas entendi que estava nas mãos de Deus.
OP - A experiência como dirigente mudou a visão que você tinha do futebol nos bastidores?
Neto - Completamente, completamente. Entendi que existem meios de comunicação que são oposição. (...) Sem contar a tristeza de você não conseguir fazer aquilo que deseja, contratar os melhores, ter recursos. Quando a gente subiu para a Série A, com uma folha de R$ 2,7 milhões na Série B, mais ou menos, depois teve que fazer uma folha na Série A de R$ 1,7 milhão. Impossível. Impossível na Série A tu competir com uma folha de R$ 1,7 milhão, mas essa era a folha por causa das dívidas acumuladas, dívidas que ex-presidentes fizeram, com credores, com as famílias, que tem que pagar porque foram essas famílias daqueles que se foram que fizeram a Chapecoense ser o que ela foi, reconhecida mundialmente. Então eram muitas dívidas e tendo que jogar uma competição tão difícil.
Eu fui humilhado por torcedor, minha imagem foi vinculada a algumas coisas na imprensa, coisas que era ilícitas, chegaram a mandar mensagem no meu Instagram para ir embora da cidade. E eu sabendo que algumas coisas que eram declaradas eram mentiras, enganosas. Então isso foi decepcionante de tal forma, e eu senti que não era aquilo. Deus não queria me ver naquele momento naquele local. Eu fui inocente de alguma forma, porque quando encerrei tinha mais um ano de contrato, até o final de 2020, e quis fazer um acordo para que o clube me pagasse em dois anos. Talvez se deixasse o clube pagar meu contrato até 2020, eu teria sido campeão e pronto, ia embora. Mas eu quis estender mais um ano para que me pagassem em dois anos.
Depois o clube teve um momento muito ruim na Série A, fiquei muito chateado, mas pude perceber que é um mundo completamente sujo, de todos os lados. Os meios de comunicação algumas vezes falam algumas inverdades, que colocam o torcedor e a pessoa do bem contra você. Até perdoo, não dou muita bola porque sei que todo mundo vai ser julgado, a morte espera por todos e Deus vai julgar a todos. Mas me entristeceu profundamente porque eu vi também outros ídolos da Chapecoense, pessoas que não viajaram, não morreram na tragédia, serem caluniadas ou difamadas por algumas pessoas da imprensa, como o Nivaldo, goleiro que tinha aqui, um baita diretor, baita pessoa, que foi mal falado por pessoas que não conheciam a história verdade. Hoje me libertei disso. Torço pela Chape, mas vejo que trabalhar com futebol, pelo menos aqui em Chapecó, é algo muito difícil porque ainda existem pessoas ruins nesse mundo, e elas farão de tudo pelo poder.
OP - Como está a disputa das famílias pelas indenizações, tanto com a seguradora como com o clube?
Neto - Realmente não foi pago pela Tokyo Marine, que até hoje não pagou o seguro. Eles vieram para o Brasil, depois de um ano, oferecer um fundo humanitário, que era uma doação. Quem aceitou essa doação teve que assinar um termo de quitação, como se eles não devessem nada, então não ficou uma doação. A gente foi lá em Londres, eu fui com algumas viúvas e alguns advogados para fazer uma manifestação pacífica. No início do ano passado, eles recorreram, tinha sido julgado nos Estados Unidos e a gente tinha vencido. Eles recorreram, levaram para Londres e, no final do ano, deu que o julgamento deveria ser nos Estados Unidos mesmo. Então o caso voltou para os Estados Unidos, os meus advogados são americanos. A gente espera que entre esse ano e ano que vem saia um resultado final para dar o veredito se vencemos ou não. Acho que a gente vence essa batalha, essa negociação.
Da Chapecoense com as famílias, foram feitos acordos, se não me engano, para pagar em dez anos. A Chapecoense fez uma recuperação judicial agora, haja vista que o clube estava inviável para fazer o futebol, condição financeira absurdamente negativa, então o clube teve que fazer uma recuperação judicial, apesar de que eu não concordei com isso porque é uma recuperação que coloca as famílias (das pessoas) que morreram junto com os credores que a Chapecoense deve. Comparar as famílias com uma empresa, pagar 15% do que devia no total para uma empresa, mas pagar 15% do que devia para uma criança que perdeu o pai... Eu não consigo entender com naturalidade que isso é legal, apesar de ser legal (juridicamente). Eu não concordei, achei que deveria ser de alguma outra forma, olhar para essas famílias com o olhar diferente de um credor normal. Foi isso que aconteceu e agora é ver.
Que o clube consiga recuperar, de alguma forma pagar aquilo que deve aos credores e que olhem com carinho para as famílias daqueles que fizeram uma grande história no clube, não coloquem as famílias como credores normais. O produto vai e vem, é vendido lá e cá, as vidas não voltam mais. Então a vida não pode ser comparada a um produto de uma empresa que foi vendido. O que mais me chateou em relação a isso, apesar de saber que era o caminho a recuperação judicial, o clube estava inviável, é como essas coisas são tratadas. A gente deveria ter um carinho a mais pelas famílias daqueles que se foram. 'Ah, mas o clube tem problema com uma ou duas pessoas', a gente não pode generalizar, morreram 71 pessoas. São 71 famílias sem o provedor do lar. Esse tipo de situação me chateou, não concordei.
Quero o bem do clube, mas também quero o bem das famílias. A vida é mais importante que o futebol. Vamos ver o que vai encaminhar mais para a frente. Espero que o clube consiga dar a volta por cima, entendendo que a situação que o clube se encontra financeiramente não é culpa das famílias, e a gente entende também que o clube tinha essa necessidade de fazer a recuperação judicial, mas a culpa provavelmente é da má gestão pós-tragédia, porque 60 ou 70% das dívidas, se eu não me engano, não vêm das tragédias das famílias, vêm de jogadores e credores pós-tragédia. A tragédia foi um fator preponderante para ter essa dívida? Foi, porque as pessoas que morreram entendiam o clube, mas a dívida não veio por conta de família alguma, veio por conta de credores e outros jogadores que vieram, não receberam os seus salários e colocaram na Justiça.
OP - E como está essa sua nova fase de vida, trabalhando com palestras para empresas?
Neto - A vida está muito boa. Muito corrida também, igual ao futebol às vezes (risos). Tem meses que eu viajo bastante. Cheguei a ir para São Paulo, de lá para Porto Alegre, voltar para São Paulo para outro palestra e depois voltar para Chapecó em uma semana, fazer três, quatro viagens. Fui para o Maranhão, outro dia fui para o Pará dar uma palestra, em uma cidade do Interior. São experiências diferentes, e você sentir que a tua história motiva pessoas a dar o melhor de si, entender que a vida é passageira e tem que aproveitar. Não aproveitar como muitos dizem, mas aproveitar o momento, fazer o seu melhor no seu ambiente de trabalho, ajudar o outro, fazer o outro crescer e crescer junto. Está sendo maravilha. Ir também às igrejas, dar o testemunho do que Jesus fez na minha vida é fantástico.
Está sendo uma experiência muito bacana, melhor do que eu imaginava. Cansativo? Bastante. Mas o cansaço recompensa, ver as pessoas que me dão feedback, me marcam na internet e falam: 'Foi a melhor palestra que eu vi, seu testemunho mexeu comigo, a sua palestra me fez enxergar a vida diferente'. É maravilhoso ver tudo isso e que Deus fez com que eu vivesse tudo isso. Não é mérito meu estar vivo, é obra de Deus, que me permitiu estar um pouquinho mais de tempo aqui. 'Ah, mas Deus matou os outros'. O ser humano matou. Deus deu o livre arbítrio, o ser humano fez a cagada, e Deus escolheu alguns poucos aqui com propósitos distintos para... No meu caso, sinto que para ajudar as pessoas, a fazer as pessoas enxergarem com outra ótica a vida e também enxergar que para Deus nada é impossível. A gente tem que continuar tendo fé. E não fé quando tudo vai bem, mas quando tudo vai mal também, Deus está te dando força para sustentar. Como Paulo disse, tudo posso naquele que me fortalece. Posso passar por coisa boa e ruim, a fé continua e isso vai nos amadurecer de alguma coisa.
Tenho ficado cada vez mais surpreso com o feedback, as palestras estão aumentando bastante, algumas igrejas e muitas empresas que estão vindo. A gente fica feliz de usar tudo de ruim que aconteceu e extrair o que é bom para ajudar o próximo, porque a vida é assim. A gente sempre vai ter alguma coisa boa para extrair. Às vezes uma dificuldade faz com que a gente passe por ela e ajude outras pessoas, que vão ter a mesma dificuldade e não estão conseguindo passar. Que Deus me dê sabedoria para para continuar abençoando a vida do próximo, sendo sal e luz, como Jesus disse para a gente ser nessa terra.
Religiosidade
Constantemente convidado por igrejas para falar sobre a sua vida, Neto não esconde a religiosidade e também optou por se aprofundar nos estudos acerca do tema: é formado em Teologia.
Traje do Papão
Na entrevista virtual, em que mostrou pontualidade exemplar, Neto ostentava uma camisa do Paysandu-PA. O uniforme foi presente de quando palestrou para uma empresa de cosméticos em Castanhal, interior do Pará
Jogo no Pici
AO FINAL da entrevista, o ex-zagueiro relembrou de quando enfrentou o Fortaleza pelo Guarani-SP, em 2010, no estádio Alcides Santos, o qual classificou como "caldeirão". Neto acabou expulso naquela ocasião, em duelo válido pela Copa do Brasil. O Bugre venceu nos pênaltis na partida de volta, em Campinas, e se classificou