Quase 40 anos atrás, uma multidão ia às ruas do Brasil não para vandalizar o Congresso nem manifestar apoio a qualquer regime autoritário simbolizado por um líder fascista, mas para pôr fim à ditadura militar.
Era 1983 quando a semente das “Diretas Já” foi plantada. Pelos próximos meses, o movimento ganharia massa, acelerando a derrocada do regime de exceção, responsável por mortes e tortura no país desde que havia sido implantado, em meados dos anos de 1960.
Finalista do prêmio Jabuti em 2012, o jornalista e escritor Oscar Pilagallo mergulha nessa história. Os personagens principais e coadjuvantes, o cenário e o contexto, a música e os slogans: “O girassol que nos tinge” (Fósforo), obra de não ficção, retraça o caminho que levou à eclosão das Diretas.
Passado tanto tempo, Pilagallo contrasta dois recortes: o atual, recém-saído de uma eleição polarizada ao fim da qual uma horda de radicalizados depredou as sedes dos Três Poderes. E o anterior, no qual a sociedade se aglutinou em torno de uma ideia: nós queremos votar para presidente.
Em conversa com O POVO, o autor reflete sobre os riscos que, mesmo nos seus estertores, a ditadura representava. Um dos exemplos citados é o do atentado ao Riocentro (1981), um ataque terrorista executado por militares da linha dura do regime e cujo objetivo era prolongar o mando de campo dos fardados.
Para Pilagallo, as forças armadas nacionais têm um histórico de tentativas de influir direta e indiretamente nos rumos políticos do Brasil. “O que os militares querem muitas vezes é fazer uma tutela do governo”, afirma.
Segundo ele, isso se dá em parte porque o processo de redemocratização foi resultado de uma negociação que resultou na anistia, ou seja, na impunidade daqueles que praticaram crimes sob a proteção do Estado.
“A partir da anistia e da maneira negociada da transição para a democracia, os militares continuaram incrustados no poder federal”, assinala.
O POVO – O que as Diretas ensinam ao Brasil 40 anos depois?
Oscar Pilagallo – Acho que o principal foi a demonstração de como é difícil pra sociedade civil conquistar a democracia. É importante hoje a gente pensar e tentar se colocar na situação das pessoas há 40 anos. Hoje vivemos numa democracia, naquele tempo vivíamos numa ditadura, que já estava em seus estertores, provavelmente terminaria em breve, com ou sem Diretas. Mas o fato é que ainda existia, e existia dentro do próprio governo uma ala entre militares que defendia abertamente que se continuasse a ditadura, e ainda mais forte e rigorosa do que tinha sido até então. Hoje, quando a gente vê pessoas e grupos pedindo a volta dos militares, ou passando por cima dos ritos democráticos, talvez nem todo mundo perceba aonde uma ditadura pode levar o país e como é difícil sair dessa situação. A redemocratização foi um processo que tinha sido iniciado em meados dos anos de 1970, parte por iniciativa do governo, que propunha uma reabertura lenta e gradual, e em parte pela ação dos partidos de oposição, que tentavam acelerar esse processo. Isso culminou, em 1983, no início da campanha das Diretas. Em 1984 foi quando os comícios maiores aconteceram, mas, de qualquer maneira, foi um processo longo, que demorou dez anos. Não é fácil e não foi fácil sair da ditadura. Talvez seja essa a lição, cuidado com o que se pede, porque se a gente resvala novamente com essa situação, sair não é simples assim. Numa democracia, se a gente não está contente com o presidente, resolve-se a questão em quatro anos. Numa ditadura, pode demorar 20 anos ou mais.
"Hoje, quando a gente vê pessoas e grupos pedindo a volta dos militares, ou passando por cima dos ritos democráticos, talvez nem todo mundo perceba aonde uma ditadura pode levar o país e como é difícil sair dessa situação"Oscar Polagallo
OP – O que diferencia exatamente as Diretas de outras manifestações de rua no Brasil? Depois dela, tivemos em 1992, 2013 e 2016. Qual o fator de distinção?
Pilagallo – Talvez o fato de ter sido, mais do que os outros, uma manifestação praticamente consensual, não foi totalmente porque dentro do Congresso havia muitos votos favoráveis a que a ditadura continuasse, tanto que as Diretas não passaram no Legislativo. E havia segmentos da sociedade alinhados com esses interesses, pessoas e grupos mais à direita, empresários, mas não apenas. E a comunidade de informação, que na época estava muito ligada com os aparelhos de repressão do regime. Todos esses segmentos não estavam favoráveis à campanha das Diretas, mas ainda assim era uma coisa relativamente consensual, as pesquisas mostravam. Mais de 80% das pessoas eram favoráveis a esse movimento. Nos posteriores, esse grau de consenso diminuiu bastante, mesmo no caso do (Fernando) Collor, em que só no finalzinho foi consensual. O Collor tinha sido eleito e, quando houve a denúncia contra ele, tinha apoio popular. A sociedade não estava dividida meio a meio, mas assim tinha um apoio razoável, tanto que usou isso, pediu apoio. Não se deu bem, mas pediu. Tinha para quem pedir. Posteriormente, a gente pode dizer que houve realmente essa polarização da qual a gente ainda não saiu. A gente fala que muitas pessoas foram para as ruas, milhares, mas elas não representavam a grande maioria da população. No máximo, representavam essa parcela à direita do espectro político, e mesmo assim uma coisa dividida. A última eleição foi desse jeito, meio a meio. Uma grande diferença foi essa. Em 1984, foi mais consensual do que as manifestações seguintes. O que ajudou isso foi o fato de que não havia um nome por trás das Diretas. Havia muitas pessoas identificadas com o movimento: Ulysses (Guimarães), Lula, (Franco) Montoro etc. Mas a campanha não era em nome deles, para eles, era uma campanha em nome de uma ideia. Era mais fácil, sendo essa uma ideia genérica, popular. Porque também não se falava qual democracia, falava-se apenas em democracia, eleições diretas. Quer dizer, era muito mais fácil criar consenso em torno de uma ideia genérica como essa do que formar uma frente ampla contra um presidente autoritário, mas tendo como ponta de lança um candidato que já tinha sido presidente e que não consegue ter um consenso em torno dele. É muito diferente, não é porque seja o Lula. Nenhuma pessoa conseguiria consensualmente esse apoio, a não ser que esse apoio fosse abstrato, em torno de uma ideia como foi em 1984. Então essas duas foram as principais diferenças: o fato de ter sido consensual e o fato de não ter tido um nome por trás do movimento.
OP – Embora Ulysses Guimarães tenha acabado funcionando como um grande articulador e emprestado uma imagem às Diretas. Tanto que, até hoje, o nome dele é evocado por congressistas por encarnar esse espírito do processo de redemocratização no Brasil.
Pilagallo – Sem dúvida, não foi à toa que ele foi chamado de o “senhor Diretas”. Ele era totalmente identificado com isso. Foi o político responsável pela articulação, realmente. O Lula foi talvez o mais popular nos palanques, tem uma capacidade de oratória muito boa e foi o mais aplaudido em vários. No caso do Ulysses, ele não se destacava como um grande orador, mas nos bastidores ele foi a pessoa responsável por convencer seus próprios correligionários de que aquela era uma boa ideia. Digo isso porque, no começo, nem dentro do próprio PMDB havia uma ideia consensual de que esse seria o caminho. A esquerda, de modo geral, dentro e fora do PMDB, não estava unida em torno desse objetivo. Na verdade, a ideia que prevalecia no começo de 1983 era a de uma assembleia nacional constituinte, que seria convocada no sentido de acabar com o chamado entulho autoritário, as regras e leis da ditadura. E, a partir disso, a gente teria a redemocratização, que incluiria a eleição direta para presidente. Mas esse era um item da pauta, não era o principal. Essa inversão de pauta na oposição foi responsabilidade do Ulysses. Claro que teve o Dante de Oliveira (deputado), que apresentou o projeto, com todo o mérito. Mas quem era o grande cacique? Dante era um deputado no começo de carreira, não tinha poder pra isso. Foi o fato de Ulysses ter encampado a ideia que deu a grandeza do movimento. Primeiro ele trouxe seu próprio partido, o PMDB, depois ele articulou com outros partidos. Foi atrás do PT, do Lula, que estava ainda se estruturando. O PDT do Brizola, enfim. Ele foi o cara que foi atrás e articulou. Evidentemente que ele tinha interesses particulares próprios, como o político que ele era. A única chance de ele ser eleito presidente seria numa eleição direta, ao contrário do Tancredo Neves, que podia ser eleito tanto direta quanto indiretamente, como acabou sendo. Ulysses, porém, só teria chance se fosse escolha direta, porque ele não tinha o poder de articulação que tinha o Tancredo, que negociava também com o governo, enquanto Ulysses articulava bem na oposição, sem chegar no governo. Considerando que o governo era mais da metade do Congresso, o Tancredo levava vantagem fazendo as contas.
"Lula foi talvez o mais popular nos palanques, foi o mais aplaudido em vários. Ulysses não se destacava como um grande orador, mas nos bastidores ele foi a pessoa responsável por convencer seus próprios correligionários de que aquela era uma boa ideia"Oscar Pilagallo
OP – Há esse entendimento também de que a ditadura começou a cair por problemas e desgastes internos, não por pressão. Qual o real papel das Diretas nesse processo?
Pilagallo – É difícil cravar uma resposta porque a gente vai ficar no campo hipotético, mas a gente tem que lembrar o seguinte: naquele começo dos anos de 1980, havia já uma diretriz dentro do governo no sentido de, aos poucos, os militares saírem. Já havia tido anistia, com conciliação, com todas as críticas que se possam fazer. Já tinha tido eleição para governador de estado no ano anterior, em 1982, a primeira da ditadura. A gente pode raciocinar da seguinte maneira: ia acabar de todo modo porque estava caminhando nesse sentido. Se a gente pensar assim, as Diretas tiveram papel coadjuvante, já que iria acabar de qualquer maneira. Uma outra forma de pensar é: se não tivesse havido as Diretas, não sei, por exemplo, se dentro do governo aquelas pessoas que defendiam a continuidade da ditadura não teriam tido força para impor o seu projeto. Numa sociedade apática, que estava dizendo que tanto faz, se houvesse isso, talvez dentro do governo teria tido mais força a linha dura, que tinha promovido o episódio do Riocentro (atentado levado a cabo por militares em 30 de abril de 1981 para responsabilizar a oposição ao regime). Foi fracassado, mas teria sido o maior ato terrorista do Brasil se tivesse vingado, e foi promovido pela linha dura do governo. Essas pessoas queriam continuar com a ditadura porque o único benefício que elas poderiam obter era num regime autoritário. Eram pessoas ligadas ao aparelho de repressão e que não tinham mais o que fazer no governo quando as guerrilhas foram dizimadas. Vão reprimir o quê? Mas os aparelhos continuavam existindo, continuavam atuando nos bastidores e queriam seguir com a ditadura. Então, se não tivesse havido uma resistência da sociedade, como foi a campanha das Diretas, pode ser que a coisa tivesse descambado para o outro lado. Porque o processo de abertura não foi linear, não foram conquistas que foram se somando. Houve as primeiras conquistas, depois recuo, depois novas conquistas, depois novo recuo. E assim foi, a partir de meados dos anos de 1970 até meados dos anos de 1980.
OP – Houve derrotas das Diretas, como foi o caso da PEC do Dante de Oliveira. Qual foi o impacto desse revés para esse grupo de militares?
Pilagallo – De certa maneira, na medida em que foi uma derrota para a sociedade, foi uma vitória para esse grupo (linha dura). Mas tinha havido outros episódios em que houve fechamento do governo já durante o processo de abertura. O ponto é que a gente não poderia contar que isso iria acontecer (a redemocratização) porque estava havendo uma reabertura. Poderia haver um retrocesso a qualquer momento. Pode ser que a pressão das ruas tivesse sinalizado que realmente agora era o fim da linha. E outro peso que as Diretas podem ter tido é no perfil do candidato que acabou sendo escolhido. O Tancredo era um político conservador, mas era um político que tinha feito carreira na oposição. Era um líder moderado, mas era de oposição. Porque se poderia fazer eleição direta em que ganhasse um candidato civil, mas que fosse de outra corrente, por exemplo, Paulo Maluf, que concorreu também e foi derrotado pelo Tancredo. Foi a pressão das ruas que colocou o Tancredo na posição em que ele se encontrava naquele momento. Tanto é que a sociedade, de modo geral, identificava nele a continuidade do processo. Quando ele morreu foi uma comoção nacional. Não foi a morte de um presidente que tinha sido eleito indiretamente. Foi a morte de um mártir da democracia, foi considerado dessa maneira. E foi em grande parte porque as pessoas perceberam a importância dele durante o processo todo, embora todo mundo soubesse que ele era um cara ambivalente, porque poderia ter sido eleito tanto de um jeito quanto de outro jeito, todo mundo percebia essa astúcia dele. Mas ainda assim teve um papel relevante na redemocratização e foi amplamente reconhecido por isso.
"O Tancredo era um político conservador, mas era um político que tinha feito carreira na oposição. Era um líder moderado, mas era de oposição (...)Foi a pressão das ruas que colocou o Tancredo na posição em que ele se encontrava naquele momento"Oscar Pilagallo
OP – Qual foi o papel da classe artística e da imprensa nas Diretas?
Pilagallo – Eu destaco isso no meu livro porque não quis apenas recuperar o painel cultural da época. Foi mais do que isso. Os artistas tiveram um papel de protagonistas. Foram pras ruas, puxaram seus públicos, emprestaram suas imagens e credibilidade. Houve realmente um empenho muito grande num momento delicado em que não se pode dizer que foi por conveniência. Não foi, porque se tivesse uma reversão, iriam sofrer na carne. Mas não, eles foram para as ruas, os grandes nomes, tipo Milton (Nascimento), Chico (Buarque), Fafá de Belém, e pessoas também que não eram a nata da MPB, mas que também estavam lá, assim como atrizes e atores e artistas de outras áreas. Enfim, trouxe para o primeiro plano esse papel que não foi pequeno. E no caso da imprensa ainda mais. A Folha de S.Paulo, por exemplo, teve papel de destaque pelo fato de ter sido pioneira no apoio declarado à campanha. Foi uma coisa totalmente fora da curva da cobertura jornalística como a gente conhece. Não foi uma cobertura, foi uma campanha mesmo. A imprensa, de modo geral, embora críticas possam ser feitas aqui e ali, cobriu ao vivo grandes comícios, como o da Candelária. E isso acabou de contagiar a sociedade, porque evidentemente as pessoas se informam muito mais pelo Jornal Nacional do que pela leitura dos jornais impressos. Essas duas classes, jornalistas e artistas, tiveram um peso que foi bem grande nesse processo.
OP – Embora tenha havido campanha, o retorno à democracia foi negociado pelos militares. Isso teve reflexos depois e frustrou de algum modo aquelas pessoas envolvidas nas Diretas?
Pilagallo – Acho que houve muita frustração, sim.
OP – O movimento era “Diretas já”, não é? Não era “Diretas” daqui a dois ou mais anos.
Pilagallo – E no fim acabou sendo para dali a cinco anos, porque só em 1989 houve eleição direta mesmo. Não foi só de não ter sido já, foi também a questão dessa tutela militar que houve e que ficou pairando sempre sobre o processo. Já se sabia que de alguma maneira isso tinha que ser negociado. É uma particularidade brasileira. Por exemplo, se a gente compara com o que aconteceu na Argentina. Lá foi o seguinte: houve também particularidades, no caso a Guerra das Malvinas, que humilhou o Exército e a Argentina, e a ditadura acabou caindo na sequência por causa disso. Os militares lá estavam tão por baixo pelo fato de terem perdido a guerra que foram parar no banco dos réus quase que imediatamente. Isso é uma coisa que nunca aconteceu no Brasil. E da maneira como a coisa foi conduzida, não apenas durante as Diretas, mas já anteriormente, dificilmente tomaria esse rumo. Porque aqui o processo passou muito mais pela conciliação e do olhar pra frente e não pra trás, esse tipo de conversa. Lá na Argentina foi algo definitivo, logo o passado já foi trazido de volta, a situação foi resolvida, os militares foram punidos de maneira exemplar. Não foi algo como dois anos presos, em alguns casos foi prisão perpétua. Isso evidentemente causou no Brasil a frustração de muitos segmentos da sociedade que queriam ver uma transformação, tanto que muita gente no começo nem estava muito ligada na questão das Diretas, porque as Diretas em si não eram uma garantia de que fosse haver alguma transformação estrutural no país. Por isso se defendia uma assembleia nacional constituinte que viesse na frente e aplainasse o terreno. Quando não só as Diretas não passaram, como na sequência houve toda aquela série de negociações em que apenas se usava o que tinha acontecido durante a campanha para endossar as negociações futuras, aí a frustração aumenta. E aumentou ainda mais quando morre o articulador e assume o (José) Sarney, que era ninguém menos do que uma pessoa que tinha feito carreira política à sombra dos militares. A frustação foi ainda maior. Na verdade, foram duas ou três frustrações na sequência: a primeira foi a derrota da emenda no Congresso, a segunda foi o processo de eleição indireta e a terceira foi o vice, que era o Sarney. Foi um período de muita frustração para quem fez aquela campanha. Mas, ainda assim, eu coloco as Diretas como uma campanha importante realizada num momento em que a democracia estava renascendo no Brasil. Certamente está lá no embrião da nossa redemocratização. Fez a diferença.
"Foi um período de muita frustração. Mas, ainda assim, eu coloco as Diretas como uma campanha importante realizada num momento em que a democracia estava renascendo no Brasil"Oscar Pilagallo
OP – O fato de que os militares nem antes e nem depois foram julgados, e que houve uma Comissão da Verdade que também não resultou em punição, pode explicar a presença que as Forças Armadas ainda têm hoje na esfera civil, principalmente nesses quatro anos de governo Jair Bolsonaro? Isso tem relação com essa saída negociada da ditadura?
Pilagallo – Acho que sim, mas acho que o problema é bem anterior. Na verdade, se a gente for puxar o fio histórico disso, os militares no Brasil passaram a ter importância ainda na Guerra do Paraguai, no século XIX. Quando ganharam a guerra e voltaram para o país, reivindicaram espaço público compatível com a conquista que eles tinham obtido, o que acabou gerando a chamada questão militar no fim do período do império. A própria proclamação da República foi um golpe com militares à frente. Depois houve o movimento tenentista dos anos de 1920, que conturbou a sociedade na época e levou à revolução de 1930. Eram militares de baixa patente que depois cresceram na carreira e tiveram importância em momentos posteriores, inclusive no golpe de 1964, alguns deles egressos do tenentismo, quarenta anos antes. De certa maneira, os militares sempre estiveram associados ao governo ou tentando influenciar, e influenciando em muitos pontos. O caso do Bolsonaro é um dos maiores exemplos, um ex-militar que levou para o governo uma parcela grande de militares. Por que não temos isso em outras democracias liberais? Porque talvez sejam países em que a democracia esteja mais estabelecida e não haja tanta necessidade de alguém que queira tutelar o processo. No fundo, o que os militares querem muitas vezes é atuar no sentido de fazer uma tutela do governo, um pouco com esse discurso anticomunista que fazia sentido durante a Guerra Fria – com o qual se podia concordar ou não, mas fazia sentido – e que hoje não tem sentido nenhum porque não existe uma ameaça comunista vinda de qualquer lugar. Mas ainda assim a tutela militar prevalece. Toda hora a gente vê alguém de alta patente observando, falando, palpitando. Nos Estados Unidos e em várias democracias a gente não vê esse tipo de coisa, militar cuida de questão militar e pronto. Acho que, a partir da anistia e da maneira negociada como se deu a transição para a democracia, os militares continuaram incrustados no poder federal, mas num processo que é bem anterior a isso.
OP – Quarenta anos depois das Diretas, como é olhar para movimentos e episódios como o do 8 de janeiro, que pediram a volta exatamente do regime militar?
Pilagallo – É até meio difícil de acreditar que haja ainda esse tipo de comportamento, porque o resultado que se obteve, sob nenhum aspecto, pode ser considerado positivo. E ainda assim tem ressonância em alguns segmentos. Quero acreditar que não seja uma parcela expressiva da sociedade. Historicamente, essa extrema-direita não costuma ter mais do que 15% do eleitorado, não só no Brasil, como na França e nos Estados Unidos. Hoje em dia, um problema é que a direita, não a extrema-direita, perdeu seu espaço. No Brasil o PSDB praticamente se desmanchou, as pessoas mais conservadoras ficaram sem opção. Para onde vai se não tem candidato de uma direita civilizada para votar? Muitos deles teriam votado num candidato de direita, mas de uma direita dentro do jogo democrático. O próprio (Geraldo) Alckmin era mais de centro-direita, FHC (Fernando Henrique Cardoso) fez um governo de centro-direita e assim por diante. Havia candidatos e políticos com relevância eleitoral que podiam canalizar o voto dessa parcela do eleitorado. Como isso desapareceu, esse contingente de votos foi para um candidato de extrema-direita, no caso Bolsonaro, que se beneficiou disso. Não quer dizer que essas pessoas tenham se radicalizado, elas apenas votaram no candidato eleitoralmente possível dentro de um contexto de polarização. Acho que as pessoas que realmente são de extrema-direita estão numa porcentagem menor. Se nas urnas deu 50% para cada, dos 50% que votaram em Bolsonaro imagino que 15% tenha sido voto consciente de bolsonarista, mas muita gente não é um eleitor convicto. São pessoas que a gente pode e deve tentar ganhar, no sentido de convencer, e uma maneira de convencer é contando a história. Olha, lá atrás foi assim (repressão e ditadura). Vai querer entrar numa situação da qual depois é tão difícil de sair?
Livro
Recém-publicado, "O girassol que nos tinge" (editora Fósforo) percorre o período de nascimento e os desdobramentos das Diretas Já, uma das maiores manifestações populares do Brasil, a partir de 1983
Histórico
DE AUTORIA de Oscar Pilagallo, a obra joga luz sobre as disputas dentro do movimento, seus principais articuladores e os impasses em torno dos debates que dominavam a cena política daqueles anos
Trajetória
Pilagallo é jornalista e escritor. Foi finalista do Jabuti com o livro "História da imprensa paulista" (Três Estrelas, 2011). Também escreveu "A aventura do dinheiro" (2000) e "O Brasil em sobressalto" (2002), os dois pela Publifolha