Foi o bom exemplo de uma mãe, o amor pelo filho e o comprometimento com as ideias e não com as circunstâncias, que Eduardo Lyra, Edu Lyra, lista dos ingredientes que o fizeram um dos principais ativistas sociais do Brasil. O filho de Maria Gorete de Brito Lira nasceu, cresceu e viu de perto todas as dificuldades que rondam aqueles que vivenciam o dia a dia das favelas brasileiras.
Mas ele escolheu trocar toda a escassez do seu entorno por prosperidade. Resolveu contar sua própria história no livro "Jovens Falcões".
A publicação não impactou apenas sua realidade, mas a de milhares de pessoas e famílias que se beneficiam e acreditam no poder da transformação social.
Elas foram mobilizadas pela Organização Não Governamental (ONG), Gerando Falcões, que fundou em Guarulhos, onde nasceu, com o lucro do livro.
De lá para cá foram 12 anos que, segundo ele descreve, foram de muita luta, coragem, espírito comunitário e liderança.
Já foi palestrar em Harvard, mas mesmo assim não parou. Quer transformar a favela em peça de museu, dar um olé no Elon Musk e mostrar o potencial criativo dos seus. Valorizar o que vem da favela e transformar a vida de milhões em dignidade.
Hoje, também batalha pelo novo projeto Favela 3D - Desenvolvida, Digna e Digital. Esteve em Fortaleza para arrecadar recursos com empresários e poder público a fim de viabilizar o projeto na capital cearense, na Favela do Inferninho.
Por intermédio da empresária, fundadora e presidente da Somos Um, Ticiana Rolim, aceitou o convite de conversar com O POVO para falar sobre sua história de vida, os desafios que vivenciou até agora, as conquistas e os problemas e soluções de tudo que envolve o desenvolvimento socioeconômico dos moradores da favela.
O POVO – Como foi a sua infância em Guarulhos, Região Metropolitana de São Paulo?
Edu Lyra - Assim que eu nasci meus pais me tiraram de dentro do hospital e me levaram para morar dentro de um barraco, numa favela, em Guarulhos, São Paulo. Então eu cresci dentro de um barraco de chão de terra batida.
Meus pais não tinham grana para comprar um berço para eu dormir e me colocaram para dormir dentro de uma banheira azul, nos meus nove primeiros meses de vida. O meu pai acabou embarcando no mundo do crime e preso, indiciado por roubo a banco.
A partir daquele momento eu tive que crescer visitando meu pai dentro de um presídio com minha mãe.
O POVO – Como foi isso?
Edu - Ao mesmo tempo do que aconteceu com meu pai, eu fui tremendamente inspirado por minha preta, minha rainha, minha heroína, meu mundo, meu tudo, que é a dona Maria Gorete de Brito Lira.
Que todo dia ela olhava nos meus olhos e me dizia: 'Filho, não importa da onde você vem, o que importa na vida é para onde você vai e você pode ir para onde você quiser, você pode muito e você pode tudo.'
O POVO – O que isso significou?
Edu - Eu estou vivo por conta da minha mãe, eu me tornei um empreendedor social por conta da minha mãe, porque enquanto o meio jogava um vírus na minha cabeça dizendo que eu não podia, minha mãe passava um antivírus todo dia e dizia: 'Tu pode!' e 'Vambora'.
Aí eu fui para trás, eu fui para universidade, estudei (ele cursou Jornalismo, mas não concluiu) e lá eu escrevi um livro chamado "Jovens Falcões". Publiquei esse livro de forma independente e aí eu montei um time com 30 jovens, treinei todo mundo e a gente vendia o livro de porta em porta.
Em três meses nós vendemos cinco mil livros. Eu usei esse dinheiro para fundar a Gerando Falcões.
O POVO – Quais memórias e lições aprendeu enquanto visitava seu pai no sistema carcerário?
Edu - Eu era muito pequeno, foi entre um ano até os meus oito ou nove anos, eu tive todo esse conflito mais duro do ponto de vista social. Eu tive duas grandes lições com meu pai. A primeira é tudo que eu não deveria ser, na figura do meu pai, naquele momento de vida, naquelas circunstâncias.
Mas em algum momento meu pai tomou a decisão de deixar tudo aquilo para trás e voltar para casa e me criar e cuidar da família dele.
Então eu vi meu pai abandonar as drogas, eu vi meu pai abandonar a noitada, eu vi meu pai abandonar o crime e eu vi meu pai refazer todas as suas escolhas de vida por mim e pela minha mãe. Então eu percebi (pausa) que ideias valem mais do que circunstâncias.
"Então eu estou aqui porque vale muito mais acreditar em ideias do que as circunstâncias. As ideias mudam as circunstâncias."
O POVO – Por quê?
Edu - Porque as circunstâncias mudam, mas as ideias ficam. Por que que eu estou dizendo isso? Minha mãe sempre dizia: 'Nós vamos salvar teu pai'. Ela tinha uma ideia. Mas a circunstância dizia que era impossível tirar meu pai daquilo que ele estava.
Eu vi helicóptero da polícia em cima do meu barraco, arma, droga, violência, todo mundo achava que meu pai ia morrer. Mas minha mãe tinha uma ideia. Que a família podia mudar. Meu pai podia ser diferente e essa ideia da minha mãe era muito mais forte do que as circunstâncias, que diziam que era o fim da minha família.
Então eu estou aqui porque vale muito mais acreditar em ideias do que as circunstâncias. As ideias mudam as circunstâncias.
O POVO - Além das ideias, quais os outros ensinamentos que vieram da sua mãe?
Edu - Algumas coisas sempre foram muito fundamentais, como o exemplo do trabalho, o exemplo do caráter e o amor pela família. Minha mãe sempre foi absolutamente apaixonada por mim.
Eu nunca tive coisas, mas eu sempre tive muito amor, então esse amor fez toda a diferença na minha capacidade cognitiva, na minha inteligência emocional, para que eu pudesse estar aqui sem necessariamente trazer um peso de rancor, de mágoa, de ódio, daquilo tudo que eu vivi.
Não, eu tô leve. Eu tô liberto (risos) por conta da minha mãe.
O POVO - Por que resolveu se tornar um ativista e empreendedor social?
Edu - Minha mãe sempre olhava para aquelas circunstâncias de extrema pobreza e me dizia: 'Filho, nunca ninguém veio mudar isso. Se você quer que a sua favela seja diferente, você tem que transformar a sua favela'.
Então, ela sempre me dizia que não viria um salvador da pátria que vai lá e arruma tudo e muda tudo. Ela me falava sobre o poder dos indivíduos, sobre o que eu podia fazer para mudar tudo aquilo.
Quando eu olho para favela eu não espero que os americanos venham transformar a favela, que o Bill Gates ou Bill Clinton ou Elon Musk ou Jeff Bezos não, eu quero ser a resposta para o meu Brasil.
Não quero que tomem as decisões no meu lugar eu quero ser parte da decisão, eu quero ser parte da resposta. Então, tem uma frase da Madre Teresa de Calcutá, que eu acho ótimo: 'As mãos que fazem são mais sagradas do que os lábios que rezam'.
Tem um valor muito grande em fazer e eu acho que a gente é possivelmente a última geração sobre a face da Terra que tem a chance de evitar uma grande catástrofe. Tanto do ponto de vista ambiental, como social, a nossa geração está se autodestruindo humanamente, socialmente e do ponto de vista ambiental.
A gente precisa se levantar de uma forma intencional, estratégica e construir uma solução, uma resposta e um caminho alternativo. E é exatamente isso que a gente está construindo com a Gerando Falcões.
O POVO – Como foi contar sua história, fazer o livro... Em que momento achou que essa ideia seria uma saída para criar algo de maior impacto social?
Edu – Na vida, quando você me pergunta do livro, a gente tem que valorizar muito os pequenos começos. O livro foi um pequeno começo. Eu queria começar e mudou completamente, de onde saiu, para onde veio e para onde eu estou indo. O que eu queria mesmo era criar impacto na minha comunidade.
Eu queria (pausa) ser um criador, um inventor, um produtor de alguma coisa nova e o começo ali era um livro. Foi maturando e se transformou na Gerando Falcões.
Uma missão clara que a gente tem, que é transformar a pobreza da favela numa peça de museu antes de Marte ser colonizado. A gente vai vencer a pobreza no tempo e como consequência dar um olé no Elon Musk
O POVO – E a partir daí?
Edu - A Gerando Falcões hoje está presente em mais de 6 mil favelas do Brasil, trabalhando com projetos integrados de educação, de desenvolvimento econômico e de cidadania.
Só na pandemia, a gente alimentou mais de 1,5 milhão de pessoas, mobilizamos mais de R$ 120 milhões e na grande crise do Litoral de São Paulo (ocorrida no início deste ano) a gente estava lá diretamente mobilizando mais de R$ 22 milhões em cinco dias.
Nós mobilizamos quase 50 mil doadores e a gente criou instabilidade no Pix do banco que a gente é cliente.
O POVO – O que isso mostra?
Edu - Isso mostra muito de uma estratégia digital, de uma missão clara que a gente tem, que é transformar a pobreza da favela numa peça de museu antes de Marte ser colonizado. A gente vai vencer a pobreza no tempo e como consequência dar um olé no Elon Musk.
Ou se ele chegar lá em cima, e eu torço também por ele, pois ele é um grande inventor, ele vai pegar o telescópio dele, olhar aqui para Terra e vai ver a gente na favela Marte, ele vai falar: 'Errei, não era nessa Marte era a Marte lá debaixo'. Porque eu acho que a pobreza é o maior desafio do século.
A favela brasileira é a grande questão em cima da mesa não resolvida do Brasil. O número de favelas dobrou na última década. De sete mil favelas para quase 14 mil. Então um problema que dobra de tamanho a cada década é um problema que o Brasil tem que parar e fazer uma reflexão.
Onde nós estamos errando? Por que que a gente está sendo tão omisso? Por que (desde) o nascimento da primeira favela, há 123 anos, no Morro da Providência, a gente deixou esse desafio social, essa desigualdade viraram uma franquia com quase 14 mil unidades.
Se a favela fosse uma franquia seria maior do que Burger King, Correio e Mc Donald's juntos. É um erro de País e a gente tem que transformar esse fracasso em um desafio coletivo.
O POVO – Já são 12 anos de Gerando Falcões. Quais foram os desafios iniciais, naquele momento, para hoje?
Edu - Naquele momento eu vinha de um nível de escassez econômica muito grande. Eu fui criado num lugar de muita pobreza, logo você é ensinado que tudo é escasso, é pobre, é pouco. A primeira vez que eu fui no Morumbi (bairro de classe alta de São Paulo) eu vi um monte de casas, de mansões, de gente rica.
Primeira vez que eu passei ali pela Faria Lima (avenida com muitos escritórios comerciais em São Paulo), pela aquela região toda endinheirada, eu fiz uma reflexão:
"O mundo é maior que a minha comunidade, tem riqueza. Se o mundo não é só pobreza e também riqueza eu preciso pegar parte dessa riqueza e levar para a minha comunidade. Pegar isso para criar tecnologias sociais e transformar a realidade".
Naquele momento a minha mente começou a virar uma chave de escassez para prosperidade. Isso foi absolutamente transformador porque o obstáculo era o dinheiro. Hoje, o obstáculo não necessariamente é o dinheiro, mas eu sei que existe e que eu posso de alguma forma capturar parte deste recurso.
O grande desafio atualmente é a execução das grandes ideias, porque elas são difíceis de serem implementadas. Eu acho que o empreendedorismo social no Brasil ainda tem esse grande obstáculo diante de si, que é o obstáculo do recurso, mas o que os empreendedores sociais precisam saber?
Que os recursos existem, mas talvez não estão sendo alcançados, mas eles existem, talvez seja uma questão de estratégia.
O POVO – Como a Gerando Falcões atua no pilar da Educação, Desenvolvimento Econômico e na Cidadania da população?
Edu – Toda a nossa teoria de mudança social começa pelo ativo na favela que são aos líderes sociais. A gente investe anualmente mais de R$ 15 milhões na formação de gente. Uma vez que encontramos esses líderes, através de um edital, a gente capacita eles numa universidade da liderança social chamada Falcons University, que a gente montou.
Depois de formado, já temos mais de 1.300 e esse ano a gente chega a 3.500. Parte destes líderes recebem recursos para que eles liberem esses projetos que vão desde desenvolvimento de habilidades socioemocionais em crianças e adolescentes a desenvolvimento de competências e técnicas para formação para inclusão produtiva no mercado de trabalho.
Formando programador, design, comunicador social, operador de logística, vendedor e outros. Levando oportunidades.
A gente está cada vez mais ampliando o nosso ecossistema com líderes, estamos presentes em 6 mil favelas e queremos estar presentes em 100% das favelas do Brasil. Onde tem pobreza a gente tem que está lá para enfrentar, olhar nos olhos dela e falar nós vamos te vencer.
O POVO - O que as lideranças das favelas espalhadas pelo Brasil podem nos ensinar?
Edu – Eu acho que eles ensinam muito sobre resiliência, é uma gente que lidera em territórios de conflito, de conflito armado.
Muitas das vezes, eles dão uma lição de inovação que eles estão lá fazendo muito com pouco. E eles são, sobretudo no meu ponto de vista, desarmadores de bomba relógio.
A pobreza é como se fosse uma bomba relógio (emite o som tic tac tic tac)... Ela vai explodir a qualquer momento. Se você descobre uma bomba relógio aqui não é qualquer pessoa que pode desarmar, tem que chamar um desarmador e um desarmador de bomba tem que ter três habilidades em especial.
A primeira, profundo conhecimento técnico para não cortar o fio errado; a segunda ternura, porque é uma bomba. Se for alguém atrapalhado ou bruto demais, nervoso demais, bravo demais não rola.
E a terceira, paciente. Tem que ter paciência social, porque não existe fast food social, a transformação social ela é uma trilha, às vezes de longo prazo.
O POVO - E me conta o que a sociedade ainda precisa aprender com as favelas para a gente melhorar a dignidade das pessoas?
Edu - Eu acho que a sociedade tem muito a aprender do ponto de vista de comunidade, de viver em comunidade. Só quem vive em comunidade é a favela. Se alguém tem comida na favela, o vizinho nunca vai passar fome, porque se divide na favela.
Isso é o senso de comunidade, o Brasil precisa viver mais em comunidade. A gente precisa refazer os nossos parâmetros sociais e boa parte da desigualdade é fruto do egoísmo. Somos uma sociedade profundamente egoísta. A gente tem que descobrir uma fórmula.
Acho que tem duas coisas, tem rico e tem elite. Rico é como se fosse um depósito. Ele ganha, ganha, ganha e põe no depósito e guarda só para si.
Você não encontra ele, não fala com ele, não vê ele, ele vive escondido. Elite é diferente, é como se fosse um CD, conceito de distribuição, ele ganha, guarda, processa e redistribui.
Seja em doação, em tempo, em conhecimento, em engajamento. O Brasil precisa de menos rico e mais de elite. Eu conheço gente tão pobre que a única coisa que ela tem é dinheiro, isso é pobre demais.
O POVO – Qual a relação da Gerando Falcões com outros movimentos relacionados à favela, como a Central Única das Favelas (Cufa), que tem um cearense no Conselho?
Edu – A gente tenta trabalhar em colaboração com muitas Organizações Não Governamentais (ONGs), a Cufa é uma parceira nossa. Basicamente 85% do que a gente capta, a gente manda para a ponta.
E parte dessa ponta são as ONGs que não são a Gerando Falcões, são ONGs como a cearense Pensando Bem, como a Manda Vê, lá em Maceió, como as Valquírias, em São José do Rio Preto, em São Paulo.
A gente, no fim do dia, é um grande orquestrador, um grande mobilizador de recursos, de consultor de tecnologia e a gente distribui isso para o Brasil. Faz o dinheiro da filantropia chegar em lugares que jamais chegaria.
Aqui no Ceará, a Pensando Bem, antes de chegar na Gerando Falcões, não tinha captação de recursos, atendia menos de ter 50 crianças. Hoje, ela é mil vezes maior e atende mil vezes mais pessoas e está transformando toda a sua comunidade.
Então o nosso papel é fazer o terceiro setor mudar de liga e ir para outro patamar e vencer a pobreza em favela.
E parte da solução do Brasil passa pela favela, não dá para o Brasil competir com um mundo desenvolvido do Biden, ou da Europa, menosprezando a favela, negligenciando esse território. Está cheio de Albert Einstein morrendo de fome. Quantos Edus Lyras melhores do que eu poderiam surgir? Então o Brasil tem que pagar essa dívida histórica e moral com os mais pobres.
POVO – Aos 35 anos o senhor já coleciona reconhecimentos nacionais e internacionais. O que isso significa para o Edu pessoa física, não o Edu Lyra da Gerando Falcões?
Edu – (pausa) Eu acho que representa o sonho de uma mulher negra, diarista, de que o impossível pode acontecer materializado no seu filho. Tudo isso (pausa) é também uma amostra do potencial da favela brasileira. Favela brasileira é a grande startup do Brasil.
Fez o Pelé, o Neymar, a caipirinha, a Anitta, o samba, o Edu Lyra, o Preto Zezé (cearense conselheiro da Cufa), o Rutênio Florêncio (idealizador da ONG cearense Pensando Bem)... E isso é uma coisa absolutamente incrível, que o Brasil menosprezou por anos.
E parte da solução do Brasil passa pela favela, não dá para o Brasil competir com um mundo desenvolvido do Biden, ou da Europa, menosprezando a favela, negligenciando esse território.
Está cheio de Albert Einstein morrendo de fome. Quantos Edus Lyras melhores do que eu poderiam surgir? Então o Brasil tem que pagar essa dívida histórica e moral com os mais pobres.
O POVO – Como surgiu a ideia de tornar a favela uma peça de museu?
Edu – Eu desarmei a bomba-relógio da pobreza na minha vida, eu conheço os pontos fracos dela, eu sei que dá para vencê-la. É uma ilusão de óptica às vezes a gente enxergar um problema grande demais, mas é só uma ilusão de ótica.
Se a gente tiver liderança, algum fanático ou uma fanática do bem puxando todo dia, empurrando, faça sol, faça chuva, isso dá para ser bem vencido. Eu estou disposto a entregar a minha vida e mover céu e terra até entregar essa missão que eu me comprometi com o Brasil. Nós vamos conseguir.
O POVO – Outra iniciativa que está trabalhando aqui no Ceará é a Favela 3D – Desenvolvida, Digna e Digital. Do que se trata?
Edu – A nossa missão é derrotar a pobreza em favelas, mas isso é muito complexo. Ninguém conseguiu vencer a pobreza. Ela é dificilíssima, ela é profunda e ela não é só falta de dinheiro, ela é falta de uma série de coisas.
Tem a pobreza energética, de infraestrutura, de habitação, de alimentação, de água potável, tem várias dimensões da pobreza. Portanto, eu comecei a rodar o mundo e fui parar em Medellín e lá encontrei o melhor case de redução da desigualdade e da violência.
Lá existia quartel de Calí, de Medellín, do Pablo Escobar, toque de recolher às 18 horas... E eles conseguiram fazer uma grande transformação. O grande aprendizado é que não existia uma bala de prata, é uma sistêmica.
"Tem que ser de dentro para fora, debaixo para cima. Favelado no centro, tomando as decisões."
O POVO – E o que fez?
Edu – Voltei para o Brasil e contratei uma agência de inovação e começamos a prototipar ideias e chegamos numa solução que é a Favela 3D. Que combina políticas públicas e tecnologias sociais dentro das favelas para destravar valor para interromper o ciclo da pobreza.
A gente cria trilhas individuais e personalizadas de superação da pobreza para cada família. E faz uma intervenção física aliada com intervenções com pavimentação, habitações, energia, wi-fi, água potável, mas sobre tudo uma intervenção humana com capacitação profissional, retorno das crianças nas creches e geração de emprego e renda.
Para ter noção da dimensão, na favela dos Sonhos a gente zerou a fila em creche, estamos derrubando drasticamente o analfabetismo e o desemprego, que era da ordem de 70% há um ano contra um desemprego do Brasil de 12% à época. Hoje, esse desemprego baixou menos de 5%.
A brincadeira, mas com muita verdade, é que os únicos lugares que têm pleno emprego são os Estados Unidos e as favelas que são 3D. Porque você tem um approach de ousadia, de coragem. De não passar uma demão na vida do favelado, mas de reconstruir as experiências de vida. Tudo isso tem muito.
A grande beleza dessa história é que quando fui captar dinheiro para desenvolver esse projeto, que já passa de mais de R$ 120 milhões na carteira de projetos em favelas acontecendo. O que disse para os doadores é que o Brasil não sabe lidar com pobreza e não sabe superar.
Me dá dinheiro para eu aprender, se eu aprender com o meu time eu vou sistematizar conhecimento, produzir software, sistema de gestão e depois eu vou doar isso para o Brasil, doar para governos, para indústria social, para as ONGs, para que isso seja escalado.
Vir para Fortaleza (ele esteve na última semana de abril deste ano) faz parte dessas estratégias de doar esse sistema e implementar. Vamos começar pela Favela do Inferninho, porque lá existe um líder extraordinário que é o Rutenio Florêncio, da ONG Pensando Pem, que se tornou uma ONG de referência.
E tem empresários aqui no Ceará, eu mencionaria a Aline Ferreira (Instituto Aço Cearense), Aline Telles (Grupo Telles) e a Tici (Ticiana Rolim), da Somos Um. O governador Elmano já sentou com a gente e decidiu ser parte do projeto com todo o aparato público do governo.
Também tem a própria Prefeitura de Fortaleza. Então, esses dias foi para produzir um grande acordo social em torno de tornar a Favela do Inferninho um grande case de combate à pobreza e a superação de desigualdade e é isso que vamos fazer para no futuro ser escalado aqui no Estado.
O POVO – O seu discurso é de transformar a ideia da Favela 3D em política pública. De que forma isso acontece? Já assinou protocolos com São Paulo e com o Rio Grande do Sul...
Edu – O primeiro passo foi arrumar dinheiro para viabilizar esse sonho. O segundo foi prototipar a solução. Então, a gente está prototipando, levando o time no limite do rompimento para aprender tudo que a gente puder aprender numa velocidade muito grande.
E a terceira, depois de ter evidências de que isso funciona, é tornar isso política pública e escalar isso no Brasil inteiro. Eu só vou ter sucesso se os governos e a indústria social decidirem escalar isso. É que nem o celular. Alguém inventou o celular.
Abriu um mercado e aí surgiram muitas empresas como Motorola, Apple, Samsung e muitas outras que trabalham em cima de uma base construída que é o celular. Meu sonho é que a favela 3D saia do meu controle.
Que seja replicada em todos os lugares e que alguém faça uma fórmula 3D melhor do que a minha. Que evolua ainda mais, que mature essa tecnologia e que leve isso para o estado da arte. Mas para isso, a gente precisa de muita densidade, de muita gente prototipando, fazendo, errando, acertando, melhorando.
Por isso, que eu digo que a favela 3D é um código aberto. Tudo que a gente produziu nós vamos doar, vamos abrir o código na rede, todos os sistemas, acertos, erros, como não fazer, como fazer tudo. E aí sempre vamos encontrar e vai aparecer gente absolutamente espetacular que vai mais além.
Esse é o nosso sonho, que isso seja escalado por meio de políticas públicas no Brasil. O Brasil não pode ter como único modelo de superação da pobreza a transferência de renda. Num País tão desigual como o nosso, o Bolsa Família é fundamental, mas ele não derrota a pobreza, ele só avisa o desafio da pobreza. O Brasil precisa ter um modelo de emancipação social para os pobres.
O POVO – De que forma a gente pode articular esse pacto social entre iniciativa pública, privada, social e educacional para tirar o Brasil dessa linha da pobreza e dar dignidade?
Edu – Acho que a gente não pode adotar aquele modelo de votar a cada quatro anos e voltar para casa e tocar a própria vida. Tem que todo mundo descobrir uma forma de participar. É um problema tão grande que não tem um governo que consiga resolver. Tem que estar todo mundo trabalhando junto para resolver.
Todo mundo. Governo Federal, governos estaduais, governos municipais, empresas, startups, universidades, academias... Todo mundo junto criando um grande acordo para gente sair do outro lado de lá.
O POVO - E o principal também é que a solução saia de dentro da favela e não seja imposto?
Edu – Você falou tudo agora. Tem que ser de dentro para fora, debaixo para cima. Favelado no centro, tomando as decisões.
O POVO - Em relação ao Governo Federal como estão os diálogos, pois sabemos que as pautas sociais estão entre as principais bandeiras do governo Lula...
Edu - A gente está tendo uma conversa direta com o Ministério das Cidades. Inclusive eles têm data para visitar a Favela dos Sonhos para conhecer o nosso modelo. Estamos falando também com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para ser um grande motor econômico e de fomento para a replicabilidade dessa tecnologia.
E, também, já tivemos em reuniões com a ministra Simone Tebet, que está agora construindo um plano de 20 anos para o Brasil. A gente está tendo uma conversa muito próxima com o Governo Federal porque, de novo, não dá para mudar o Brasil sem a presença do Governo Federal e essa agenda do presidente Lula, de fazer a superação da fome e da pobreza, é crucial e tem uma combinação muito forte.
O POVO – A Simone Tebet teve um forte papel no resultado das últimas eleições. Como que está sentindo essa abertura com ela?
Edu - A abertura é ótima e ela é uma mulher muito técnica. Ela é muito sensível e inteligente ao nível de ser brilhante, eu diria. Uma mulher brilhante.
O POVO - Queria que comentasse as diferenças e as semelhanças em relação às favelas de outros locais e no Ceará...
Edu – (pausa) A primeira coisa é que aqui no Ceará tem muito desafio social. É um dos estados mais desiguais do Brasil com muita concentração de renda. Mas, agora, o que me deixou absolutamente feliz, eu diria que bastante emocionado, é que nesses três dias (em abril que esteve presencialmente) nós mobilizamos quase R$ 15 milhões.
Do ponto de vista de um grande acordo, envolvendo o Governo Estadual, Governo Municipal e iniciativas privadas. Só da iniciativa privada foram mais de R$ 5 milhões acordados em investimento.
Com o governador (Emano de Freitas) tivemos uma reunião de quase duas horas e ele confirmou a participação do ponto de vista de infraestrutura, de intervenção e habitações e, também, o próprio município com a Secretaria de Infraestrutura. Foram três dias que eu fui muito bem recebido pela sociedade, estou muito satisfeito. Foi muito célere.
A gente praticamente teve quase que 100% de conversão em todas as conversas. O Ceará é uma referência para o Brasil. A educação de Sobral, os programas de primeira infância, a economia, a representatividade política de vocês no cenário nacional.
O ministro da Educação no Brasil é do Ceará. Vocês são referência. Acho que o Ceará também pode ser referência do ponto de vista e fazer coisa de muita relevância em favelas.
O POVO – No Ceará as pessoas usam mais o termo comunidade do que favela. Como a Gerando Falcões age em situações assim pelo Brasil?
Edu - A gente tenta respeitar todos os códigos locais e respeitar os nossos próprios códigos também, porque favela é a favela brasileira. Talvez não parece ser adequado mudar o nome antes de mudar o local, a realidade. É quase que passar uma demão, que é tudo que a gente não quer.
E favela é um produto brasileiro reconhecido no mundo. O Brasil tem dois grandes ativos, o ativo ambiental e o ativo social. A Amazônia e a favela são dois produtos que o mundo inteiro conhece.
A gente não pode esconder esse produto debaixo do tapete tem que utilizá-lo como um processo de reinvenção do próprio País. Esse é o nosso desafio. Transformar a favela e não o nome.
O POVO – Temos também o Banco Palmas que foi criado no Ceará com relevância social...
Edu - É outra grande tecnologia. Eu venho para o Ceará com muito carinho, com muito respeito. As tecnologias que vocês produziram, as políticas públicas que vocês produziram...
E eu estou vindo aqui também para aprender, para acelerar, maturar e amadurecer ainda mais a tecnologia que eu criei. Porque eu sei que aqui nós vamos dar força, maturidade e aprender com o processo.
O POVO – O senhor visitou a Favela do Inferninho, local que vai receber a favela 3D, como que vai ser, o que sentiu?
Edu – Acho que temos liderança lá na figura do Rutenio Florêncio e a gente já tem o início de uma grande transformação, pois esse menino pega um lugar chamado Inferninho e transforma no Beco do Céu.
Esse menino é uma das grandes coisas desse País e ele já tem um time, ele tem um pensamento urbanístico, ele tem planos, tem diagnóstico, tem formação de gente, tem as famílias com ele, tem adesão da favela, você tem um território pronto para uma grande mudança.
Nós vamos criar um dos maiores do Ceará na Favela do Inferninho que vai iluminar políticas públicas e uma transformação da pobreza urbana nesse Estado.
O POVO - O que o Edu Lyra ainda quer para a sua vida profissional e pessoal?
Edu - Eu queria um pouquinho mais de tempo para as minhas filhas. Eu quero saúde e que Deus proteja a minha família e que eu continue sendo uma referência para minha esposa e minhas filhas.
No profissional eu quero eliminar a pobreza, não quero mais nada para mim. Tenho tudo o que eu precisava como ser humano e quero usar os meus dons e as minhas habilidades para levar a corrida social para um outro patamar para fazer o Brasil entender que a gente tem uma corrida social.
Eu quero aquecer essa corrida, desenvolver as tecnologias que realmente possam superar a pobreza. Eu quero fazer da Gerando Falcões a ONG mais inovadora da América Latina para a gente mostrar que pobreza não é uma coisa invencível.
O POVO - Qual legado quer deixar por essa sua passagem na vida?
Edu - O Museu da Pobreza. Tem que ter o Museu da Pobreza, temos que ter uma página de omissão do Brasil em relação às favelas virada e uma página de protagonismo. Todo o estado brasileiro deveria ter uma política de transformação sistémica em favelas.
Se a gente conseguir isso significa que a gente vai colocar a favela brasileira no orçamento com bilhões e bilhões de reais de investimentos. E isso com o tempo vai trazer um retorno para o Brasil ser uma máquina de desenvolvimento e superação dessa desigualdade que e tão obscena.
Em 2011, a Gerando Falcões iniciou suas atividades. Para conseguir dinheiro para a ONG, Edu Lyra, lançou, de maneira independente, o livro “Jovens Falcões”. Juntou cerca de 50 amigos da comunidade para vender seu livro. Em três meses, foram vendidos mais de 3 mil exemplares.
O Favela 3D (Digna, Digital e Desenvolvida) é um projeto de erradicação da pobreza de maneira sistêmica. Contempla moradia digna, acesso à saúde, direito à educação, cidadania e cultura de paz, primeira infância, meio ambiente, geração de renda e cultura, esporte e lazer. Já está em andamento em SP, Capital e interior; Rio de Janeiro, Alagoas, e Ceará.
A Falcons University é o braço educacional da Gerando Falcões. É uma aceleradora de talentos com iniciativas inovadoras e tecnológicas, de experiências humanas profundas. Visa desenvolver crianças, jovens, educadores e líderes sociais que desejam expandir e melhorar a estrutura de suas Organizações Não Governamentais (ONGs), focando no desenvolvimento de gente.