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Claudia Abreu: "A novela não é uma arte desprezível"
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Claudia Abreu: "A novela não é uma arte desprezível"

Entre sucessos estrondosos na TV e pesquisas solitárias em obras literárias densas, Claudia Abreu constrói carreira em busca do espanto de descobrir outras formas de ser mulher
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FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 27-05-2023: Claudia Abreu em entrevista para o Páginas Azuis sobre seu espetáculo ‘Virginia’ no Cineteatro São Luiz.  (Foto: Samuel Setubal) (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 27-05-2023: Claudia Abreu em entrevista para o Páginas Azuis sobre seu espetáculo ‘Virginia’ no Cineteatro São Luiz. (Foto: Samuel Setubal)

O tiro no peito durante confronto ambientado durante ditadura militar em "Anos Rebeldes". A briga no banheiro entre inimigas que disputam os holofotes em "Celebridade". O show grandioso para alfinetar as "empreguetes" em "Cheias de Charme". Heloísa, Laura, Chayene e tantas outras mulheres marcam a trajetória de Claudia Abreu. As personagens, conta a atriz, agregaram descobertas e permitiram que ela continuasse a olhar para a vida com espanto.

Essa possibilidade de se redescobrir e viver diferentes vidas motivaram a ainda adolescente a escolher os palcos. Desde muito jovem, a carioca se engajou em coletivos teatrais e, logo, conquistou papéis na televisão - o que lhe permitiu conviver com inúmeros Brasis.

Curiosa, quis, além de atuar, escrever e pesquisar. Nesse caminho, encontrou na escritora inglesa Virginia Woolf (1882 - 1941) uma provocação sobre o feminino e a sanidade. Claudia dialoga diretamente com a escritora em monólogo que tem corrido o País e, mesmo sem incentivo de verba pública, tem lotado teatros. Em entrevista ao O POVO, a atriz de 52 anos fala ainda sobre maternidade e visão política.

O POVO - Claudia, você começou a carreira muito jovem, ainda criança. O que mais te assombrava e te encantava naquele início?

Claudia Abreu - Eu acho que, quando você é criança, você brinca de faz de conta e isso é uma coisa muito prazerosa, porque te dá um poder de sair da vida, sair da realidade. Acho que, inconscientemente, ter escolhido a carreira de atriz me levou para esse lugar de estar sempre podendo, de alguma maneira, viver uma realidade paralela. Tirar, de alguma forma, o alívio de ser eu mesma. Não que seja ruim ser eu mesma, mas gosto de poder sonhar, ser outra pessoa, entender outras almas, outras complexidades e existências. Isso me interessa. Se eu não fosse atriz, eu seria psicanalista ou algo assim, porque eu gosto muito dessa investigação da alma humana, da existência, do outro, eu gosto de gente. Ser atriz é isso: poder viver e entender outras pessoas. Na infância, eu fazia outras atividades extra-escolares como jazz, vôlei e inglês, mas nada me fascinava tanto quanto o teatro.

OP - Nesse começo, você teve a experiência de teatro de grupo. Como era essa energia do perrengue juvenil de estar ali criando do zero tudo aquilo?

Claudia - Eu comecei a fazer teatro de grupo muito jovem, com 14 anos, que eu fazia aula de teatro no tablado e depois foram lá escolher alguém, duas ou três pessoas para fazer parte de um grupo de teatro infantil que fazia peças. Um teatro já com uma carreira profissional. Todo fim de semana, eu tinha que sair da praia muito mais cedo que os meus amigos, isso com 14 anos, para ir "filipetar" na rua ou no shopping onde estava o teatro. Isso era uma prova de fogo para saber se você realmente tinha uma vocação. Eu saía muito feliz da praia, eu me sentia muito importante de estar com aquela função de fazer a peça às 17 horas, às vezes às 16 horas e eu ainda que chegar mais cedo para divulgar. Com 16 anos, foram no Tablado e me chamaram para fazer um teste na TV Globo. Então, eu já comecei a fazer novela com 16 anos. Quando eu entrei pro grupo da Bia Lessa com 18, que foi quando eu fiz a minha primeira Virgínia Woolf, foi "Orlando", foi o primeiro grupo de peça adulta, já profissional. A gente ficou oito meses improvisando Orlando e o escritor Sérgio Santana adaptava as nossas improvisações. Eu diria que foi uma faculdade, foi um mestrado. A faculdade foi "Orlando" e o mestrado foi "Hamlet", quando eu fiz o próprio Hamlet com Antônio Abujamra com 20 anos, que foi uma coisa na sequência da outra.

OP - Fazendo novela, você acaba se tornando companhia nos lares das pessoas durante oito, nove meses. Como você se sente enquanto atriz nesse exercício de fazer novela?

Claudia - Acho muito importante a gente fazer novela no Brasil. Às vezes, isso é colocado de uma forma menor e eu acho que é importante você ter um país Continental como o Brasil, onde a maioria não tem acesso a uma TV a cabo, não pode pagar um serviço de streaming, não pode ir ao teatro ou ao cinema, aí você tem a novela, que é a diversão é de grande parte da população. Além de tudo, acho que é muito importante você poder falar com esse público e saber a dimensão, a enormidade que é esse público. Também poder trazer ali essa beleza do circo eletrônico, trazer alívio para pessoas que trabalham, às vezes, em condições muito difíceis e outras pessoas que nem sequer conseguem trabalho, enfim, pessoas que têm uma dificuldade enorme, mas que tem esse alívio de ter acesso à TV aberta. Fora essa essa visão mais social da arte, acho que tem a visão de que a novela te prepara muito para a profissão, porque é muito volume de trabalho e muito pouco tempo de preparação. Acho que a novela não é uma arte desprezível. Você fazer bem uma novela, com tão pouco ensaio, tão pouca intimidade e tempo para você estudar profundidade daquele texto e decorar… Poder fazer isso da melhor maneira possível acaba tendo muito domínio do seu instrumento de trabalho que é você mesmo, manejando as suas emoções, sua rapidez de pensamento, o seu poder de improvisação.

OP - "Anos Rebeldes" é um exemplo de obra de cunho político muito forte que atravessou sua carreira. De que maneira você lida com os temas políticos dentro da sua arte?

Claudia - "Anos rebeldes" foi realmente uma entrada na arte política de uma maneira involuntária. Nenhum de nós poderia imaginar que a arte e a vida iriam se misturar daquela maneira, durante o processo do impeachment do Fernando Collor (em 1992). Esse movimento dos "Caras Pintadas" acontecendo e, de repente, a minha personagem, Heloísa, sendo colocada como símbolo dos "Caras Pintadas". Isso tudo foi muito forte para mim. Eu tinha 21 anos. Tive de ter muita muita cabeça e muito pé no chão assim para não me deixar envolver com isso, porque foi uma coisa tão avassaladora isso de a vida espelhando a arte e todos nós também muito engajados, nessa luta é por essa democracia tão recente e a nossa indignação de que isso já estava sendo barateado da pior maneira possível. Existia uma sedução para que eu de fato me envolvesse, me tornasse a Heloísa da vida real. Então, apesar de não me esquivar de falar a minha opinião política, eu tive muito cuidado para que eu também não ficasse um pouco perdida ou vezes manipulada por essa mistura entre realidade e ficção, mas eu me orgulho muito dessa personagem. Acho que foi, sem dúvida, uma das cinco personagens mais importantes que eu fiz na TV. Eu me orgulho muito de ter participado desse momento através da arte e ter vivenciado nesse momento do País.

OP - Bem diferente dos temas políticos, em "Cheia de Charme", você exercitou outro modo de construir a atuação com a comédia musical. O que essa experiência te ensinou sobre o Brasil?

Claudia - Chayene foi assim um portal que se abriu de novas possibilidades artísticas, porque eu tinha acabado de ter dois filhos na sequência. Eu tenho quatro filhos. Então eu tinha acabado de ter meus dois últimos filhos, que tinham um ano e pouco de diferença, quando eu fui chamada para fazer essa novela. Então, eu fiquei a princípio assim: "Meu Deus, como é que eu vou sair disso?" Porque tinha contrato e não tinha como dizer não. Ao mesmo tempo, tinha dois bebês e mais duas filhas de quatro e dez anos. Não sabia como ia dar conta de fazer uma novela, mas quando eu li a novela, que já era por si só muito engraçado e muito diferente, falando muito dessa questão dessa imersão de contar pelo ponto de vista das domésticas, das empreguetes e, além de tudo, a possibilidade de fazer a Chayene, que cantava, dançava e era tipo cômodo que eu nunca tinha feito na TV, a questão de ser vilã também que é sempre uma coisa muito sedutora. E ainda poder entrar nesse universo do tecnobrega, que me fascinou assim. Eu lembro que eu pensei que ia virar a noite, mas eu ia fazer. Foi assim que eu fiz: eu virava à noite cuidando dos bebês e, durante o dia, muito café. Eu me virava, porque eu tinha que, além de tudo, cantar, aprender as músicas e gravar em estúdio. Eu tinha também que cantar com cantores de verdade, entrar num show de verdade da Ivete Sangalo e do Michel Teló, que estava bombando com "Ai se eu te pego". Eu cantei também com outros cantores como Zezé Di Camargo & Luciano, Luan Santana e vários outros.

Era muito divertido, porque, de repente, eu migrei para outro tipo de trabalho dentro desse mesmo trabalho. Eu tinha que cantar, dançar, ter um certo traquejo para entrar num show de cantores muito populares e ter que resolver. Novela é isso, você tem que resolver muito rápido, aprender muito rápido a música e depois tem que ir para o show e cantar para valer, muitas vezes, eu cantava ao vivo. Foi um exercício maravilhoso e foi, sem dúvida, a novela mais divertida que eu fiz.

OP - Falando agora nos filhos, como foi ser mãe nas diferentes fases da sua vida? De que modo isso te compõe como mulher e profissional?

Claudia - É muito legal falar isso porque eu nunca tive um lado maternal muito exacerbado. Nunca fui aquela que tem paciência e fica brincando com criança dos outros e tal. Sempre gostei de criança, sempre fui mais animada, mas eu não era muito maternal, de ficar cuidando. Aí veio a primeira filha e foi uma iluminação de ter descoberto que isso era de fato um dos meus grandes propósitos. A gente fala muito de propósito e sempre acha que a gente vai atrás de descobrir e, de repente, o propósito se fez, esse encantamento quando tive minha primeira filha, Maria Maud, que agora é cantora e acabou de lançar o primeiro disco dela. Me enche de orgulho ela ter descoberto o caminho dela. Isso se inaugurou com a Maria, essa descoberta de que nada é mais interessante nessa vida do que ver outro ser humano se desenvolver. Nada. Nenhum trabalho que você possa fazer, talvez salvar outra vida. É muito interessante você acompanhar o crescimento de outro ser humano, o espanto. Com a criança, você revive através dela esse espanto nas pequenas coisas, nas coisas mais simples. O encantamento que a gente vai perdendo, né? A gente vai ganhando costume nas coisas mais sensacionais. Isso me encanta até hoje, não é à toa que eu acabei tendo quatro filhos. Não planejei exatamente ter quatro, mas foi a melhor coisa que me aconteceu.

OP - Com os filhos, também nasce uma autora, que criou a série infantil Valentins, do Gloob. O que muda da atriz para a autora?

Claudia - Tudo isso começou na faculdade de Filosofia, que eu fui fazer grávida da minha primeira filha. Isso me colocou muito na escrita. Sempre gostei muito de escrever e de também ficar reflexiva em relação à vida. Acho que isso ajuda muito para quem quer escrever: você ficar horas pensando que faz sentido para você, não só questões existencialistas, mas a própria vida cotidiana. Eu acabei vendo que, além de ser atriz, que sempre me deu muito prazer, eu não tenho do que reclamar, sempre tive convites muito interessantes, mas eu queria também poder criar em outro lugar, ser criadora dos meus projetos. Eu poderia só dar ideia de projetos para alguém desenvolver, aí eu fui encontrar a Flávia Lins e Silva e falei que tinha uma ideia de escrever uma série de uma família de quatro filhos e tal, porque queria homenagear minha família, queria que isso fosse um presente para a infância dos meus filhos e, ao mesmo tempo, queria criar conteúdo, porque a gente reparava que tinha pouco conteúdo brasileiro. Aí resolvi criar esse conteúdo para criança. Aí a Flávia topou escrever comigo, ela já era uma autora de literatura infantil e já estava gravando o "Detetives do Prédio Azul". Aí a gente resolveu escrever e foi muito prazeroso escrever, produzir e escalar o elenco. Isso foi para mim um caminho sem volta, aí eu passei a fazer aulas de literatura também para me aprofundar nessa nesse desejo de fazer literatura. Aí eu queria investigar sobre fluxo de consciência no tempo, era um tema que me interessava, ela minha professora falou que eu tinha que ler Virginia Woolf, ela inovou a literatura com essa alternância de fluxo de consciência. Aí quando eu voltei a literatura da Virgínia, eu fiquei absolutamente arrebatada, foi um reencontro. Claro que eu estava muito mais madura, até para me aprofundar ainda mais na obra dela. A obra da Virgínia me preencheu de uma maneira inesperada, sabe? E aí eu passei a querer descobrir quem era a Virgínia ou falei do Clichê da autora deprimida que tinha se matado no rio. Aí descobri a vida fascinante que ela teve, então levar essa a vida para o palco foi um caminho natural.

OP - De que maneira o que a Virgínia escreveu sobre ser mulher lá atrás se comunica com você, uma mulher contemporânea no Brasil de 2023?

Claudia - Falar da Virgínia é falar de todos nós, porque o que ela fez de melhor foi pensar sobre a existência e falar sobre temas que são muito presentes no nosso cotidiano, como a condição feminina, que na minha opinião não mudou tanto em 100 anos. Ela não pode estudar em uma escola por ser mulher, ela se tornou intelectual que se tornou por ser autodidata, por ter muito desejo pelo conhecimento, mas ela ficou impedida de frequentar uma escola e olha que ela tinha condições financeiras. Era uma questão cultural, uma sociedade machista. Em 100 anos, não mudou tanto. Você vê que a Malala tomou um tiro no rosto, por querer estudar, mulheres são oprimidas pelos pais ou pelos parceiros no casamento. Você vê isso entre os pais da Virgínia. Ela mesma teve um bom casamento, mas ainda assim foi oprimida, tem a questão do desejo por outra mulher, tem a questão de ter escrito "Orlando" para um caso que ela teve com uma mulher. Além de tudo, Orlando troca de sexo. Isso é muito Pioneiro, muito é moderno para o início do século 20: uma mulher falar sobre feminismo, falar sobre o desejo por outra mulher, falar sobre mudança de sexo, questionar o lugar da mulher na sociedade, porque que a mulher não pode na escola falar sobre assédio, escrever sobre o próprio que sofreu dentro de casa. Falar sobre sanidade e loucura, que é uma linha tênue. Esse assunto me interessa, porque em qualquer época a sanidade da mulher é questionada.

OP - Você tem corrido o Brasil com esse espetáculo sem financiamento de leis de incentivo. Como tem sido a logística de bancar uma turnê num contexto pós-pandêmico e após uma gestão federal que pôs fim ao Ministério da Cultura por quatro anos?

Claudia - Eu não quis entrar nas leis de incentivo exatamente por a gente estar passando por essa discriminação, essa falta de entendimento do que é a lei, do que é o fomento, tanta desinformação. Falta informação e sobra preconceito, agressividade. Então eu preferi produzir com recursos próprios. Tive a sorte de ter a parceria do SESC de São Paulo na minha estreia. Eles compram espetáculos, depois também fiz novamente uma parceria com eles pelo interior de São Paulo e fiz 13 apresentações pelo interior de São Paulo. Foi uma turnê muito bacana, robusta. Aí fiz uma turnê pelo sul, fiz no Rio de Janeiro, fiz Belo Horizonte e fiquei muito feliz de vir ao Nordeste. Você acaba naquele espírito do teatro mambembe, eu acho também muito romântico, que é você fazer com recursos próprios, você vai lá divulga. Agora tem a rede social, que eu sempre tive pavor e agora descobriu o benefício, aí você se comunica diretamente com o público. É isso que eu tenho feito com esse projeto em cada lugar que eu vou. Ficar nesse risco também é muito difícil, você não tem nenhum tipo de apoio. É caro você viajar, sem apoio as pessoas não viajam. Então, é um risco que eu corro viajando. Em todos os lugares, eu tive casa lotada, graças a Deus, mas nem sempre compensa o gasto que você tem. Depende de cidade para cidade, mas ainda assim eu quero levar essa peça para o Brasil inteiro. A gente está precisando se ver ao vivo depois de uma pandemia, falando sobre arte, respirando arte, se transformando nesse encontro. Eu estou muito feliz de estar podendo proporcionar isso para mim para o público que se interessa.

 

Monólogo sucesso de público

Claudia Abreu apresentou o espetáculo “Virginia” em duas sessões com ingressos esgotados no Cineteatro São Luiz, em Fortaleza, no mês de maio deste ano. A artista tem conseguido lotar teatros em diferentes regiões do País. Primeiro monólogo da carreira da atriz, a peça tem direção de Amir Haddad, um dos maiores teatrólogos em atividade nas artes cênicas brasileiras.

Saída da Globo
Após 37 anos, a artista encerrou o contrato com a Rede Globo em junho último. Assim como grande parte do elenco veterano da emissora, a carioca trabalhará agora a partir de contratos pontuais e poderá se dedicar a produções do streaming. O último trabalho de Claudia na Globo foi a série "Desalma", do Globoplay.

Próximos passos
A atriz vai protagonizar o thriller nacional “Tempos de Barbárie – Ato I: Terapia da Vingança”, que estreia dia 17 de agosto nos cinemas brasileiros. Ela também será apresentadora da 22ª edição do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, no dia 23 deste mês.

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