Degelo no Ártico, garimpo ilegal na Amazônia, níveis de mercúrio avançando no rio Jaguaribe, no Ceará. Há mais de quatro décadas, a transformação dos ecossistemas e, posteriormente, a conexão entre esses pontos são objeto de estudo de Luiz Drude de Lacerda, de 67 anos, atualmente professor titular do Instituto de Ciências do Mar (Labomar), da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Um trabalho que cada vez mais tem ganhado relevância no mundo. O pesquisador, natural do Rio de Janeiro, mas que desde os anos 2000 fez do Ceará sua morada, foi listado em 2023 entre os pesquisadores mais influentes no mundo, conforme ranking da Universidade de Stanford (EUA).
Mais precisamente, ele figura no seleto grupo de 1% dos pesquisadores, cujas teses são as mais referenciadas no mundo em sua área de atuação. A lista utiliza como critério o impacto das publicações (número de citações) e variáveis como a posição do pesquisador na lista de autores "primeiro autor, autor correspondente, líder do artigo, entre outras" .
Drude que descobriu a vocação para ciência, ainda por volta dos 15 anos, por influência de um professor, hoje também integra a Associação Brasileira de Ciências (ABC), já recebeu o grau de Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico; é membro do Future Earth Coasts Academy (FEC Academy), projeto internacional de investigação das zonas costeiras; e, desde o ano passado, integra o Conselho Gestor do Fundo Clima, em Brasília.
E ele tem usado essa notoriedade a favor de uma causa maior: alertar a comunidade científica e os governos sobre os impactos das mudanças climáticas, que já não são mais apenas prospecções para um futuro sombrio. Estão ocorrendo aqui e agora.
De Brasília, onde ia debater com representantes do governo a contaminação de mercúrio na Amazônia e também no chamado Paradoxo Ártico, que envolve o Rio Jaguaribe e a costa do Nordeste, Drude falou por entrevista de vídeo com O POVO sobre sua trajetória, a necessidade de reconhecer o limiar no qual o meio ambiente vive hoje e como agir de forma menos agressiva. Confira abaixo:
O POVO - Professor, quais foram as vivências que o levaram para a Ciência, para o estudo do meio ambiente?
Luiz Drude de Lacerda - Eu era um garoto do subúrbio do Rio de Janeiro e todo fim de semana o meu pai me levava para a praia para pescar. Eu e um bando de garoto da mesma idade, uns 15 ou 16 anos. Sempre gostei muito disso, colecionava conchas e levava para a escola.
Ainda tive a sorte de ter um professor no científico do 2º grau (atual Ensino Médio) fantástico. Lino Vieira, Gumercindo Lino Vieira. Ele tinha sido estagiário pesquisador no Museu Nacional, tinha cabeça de pesquisador, mas era professor do 2º grau. Para mim, isso foi ótimo. Ele me abriu o mundo para isso e vi que era aquilo mesmo que eu queria.
E aí eu estudei biologia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), na Ilha do Fundão. Era um período bem complexo, ditadura militar no Brasil, você não podia se juntar porque havia delatores espalhados por toda a universidade...
Inclusive, colocaram a universidade no Fundão como forma de tirar os estudantes do Centro da cidade, para não fazer passeata. Mas por outro lado isso obrigava você a ficar o dia inteiro lá (na Cidade Universitária), das 7h às 19h. Para mim, era ótimo. Ficava perambulando pelos laboratórios, fazendo estágio não remunerado e muita atividade de campo.
Comecei a me envolver muito. Depois veio um professor americano que foi muito importante para mim, o John Hay "Atualmente professor aposentado da Universidade de Brasília" . Foi ele que me aconselhou e acabou indo para Manaus, e eu não fui com ele. Foi muito importante na minha formação, até hoje nós somos amigos.
Assim, eu me formei em bacharel em Ecologia, Biologia Marinha, que na época eram separados. Mas, quando eu terminei minha graduação, as opções de pós-graduação eram muito restritas.
Na área de ecologia, que eu estava mais interessado, só existia pós no Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), em Manaus.
Fui lá, visitei os laboratórios e realmente era tudo ótimo, mas eu tinha que sair do Rio e me deslocar para Manaus... Outra opção era Campinas (SP), que estava começando um programa forte de Ecologia, até hoje é um dos melhores programas de Ecologia, mas era teórica e isso não era muito o meu interesse.
O meu interesse sempre foi no funcionamento dos sistemas naturais... E aí não envolvia só bioma, envolvia a Química, a Física, a Geologia... e no Rio de Janeiro não tinha nada disso.
Mas do lado do Instituto de Biologia, na Faculdade de Medicina, tinha o Instituto de Biofísica da UFRJ, que em princípio era um departamento da Faculdade de Medicina, mas tinha um laboratório que era um laboratório de radioisótopos que trabalhava com radioatividade natural.
Para entender isso, por exemplo, os depósitos de tório "Metal importante na fabricação das ligas de magnésio, aumentando a resistência ao fogo e aditivo de catalisadores mistos" no Morro do Ferro (MG), eles tinham grandes projetos de acompanhar os radioisótopos na natureza e todos os equipamentos para trabalhar. Era o que eu queria.
Então, eu me candidatei ao programa de pós-graduação no Instituto de Biofísica, que era uma coisa interessante, mas bem “ draconiana "Expressão faz referência a Draco - ou Dracão -, legislador de Atenas, na Grécia, conhecido pela severidade com que julgava" ”.
Lá não tinha um exame de seleção. Você tinha que fazer um curso de um mês durante janeiro, com quatro disciplinas diferentes que você nunca tinha visto na vida. Lembro neurofisiologia, biologia molecular, física nuclear...
Era um sistema muito interessante, porque não queria saber o que você sabia, mas a tua capacidade de aprendizado.
O Instituto de Biofísica ainda hoje é o melhor do País, voltado para biomedicina, biologia molecular. Foi criado pelo Carlos Chagas Filho, filho do Carlos Chagas "Médico, cientista, pesquisador e sanitarista mineiro que dedicou-se ao estudo das doenças tropicais e descobriu o protozoário do gênero Plasmodium, causador da malária, e o parasita Trypanosoma Cruzi, transmissor da doença de Chagas" e sobrinho do Evandro Chagas "Médico profundo conhecedor de radiologia e eletrocardiografia, exerceu a clínica especializada no Rio de Janeiro, sendo um dos primeiros a fazer exame complementar eletrocardiográfico" , e veio a ser meu professor. Então, eu tive uma formação fantástica, porque lá tinha a multidisciplinaridade, que foi uma coisa que me pegou desde cedo.
Fiz lá mestrado e doutorado já trabalhando com ciclagem "Processo cíclico, o qual, na biologia, determina equilíbrio ou não do ambiente" de nutrientes, ciclagem de poluentes e me apaixonei por contaminação ambiental, degradação ambiental, o que fazer para entender esses processos e concluí mestrado e doutorado com estudos de contaminação.
OP - E quais os objetos de trabalho do senhor nessas pesquisas?
Drude - Contaminação ambiental no Rio de Janeiro. Ciclagem de materiais na natureza. Primeiro, nutrientes. Depois, contaminantes. Hoje, as duas coisas. Pessoal me diz: 'Você publicou um livro sobre restinga "Ecossistemas encontrados nas zonas litorâneas e caracterizado por formações vegetais em zonas arenosas" , um sobre mangue…'
Mas esses objetos, como a Amazônia que eu trabalho desde 1985, são instrumentos para estudar a transferência de nutrientes, metais, energia e outras substâncias no sistema naturais. Como eu sou meio chato com esse negócio, eu acabo lendo, estudando e publicando livros (risos).
Embora muita gente me conheça como um ecólogo de mangue ou restinga, dependendo da idade do sujeito, na verdade, o meu interesse é saber como as coisas circulam na natureza. Principalmente, nesse momento no qual o mundo está completamente alterado pela ação humana.
OP - Como o senhor chegou ao Ceará com esses estudos?
Drude - Eu terminei o doutorado em 1983, mas em 1982 me chamaram para fazer um seminário lá na UFF (Universidade Federal Fluminense), no departamento de geoquímica que estava começando a ser criado.
Eles gostaram e me convidaram para trabalhar e passei 20 anos lá. Foi realmente muito importante para mim porque era multidisciplinar. Tinha oceanógrafos, geólogos, químicos, engenheiros químicos e trabalhando justamente com contaminação, distribuição de metais e nutrientes no ambiente, impacto ambiental no Rio de Janeiro...
Imagina, tínhamos a Baía de Guanabara, a Baía de Sepetiba, a Região dos Lagos, todos com um monte de problema ambiental. Acabei realmente virando especialista nessa área da geoquímica ambiental.
Virei professor titular e, nessa época, eu já tinha casado com a Rozane seu sobrenome é Valente Marins. Ela é química e pesquisadora do Instituto de Ciências do Mar da Universidade Federal do Ceará - Labomar/UFC, atualmente . Ela era pesquisadora do Ministério da Ciência e Tecnologia no Centro de Tecnologia Mineral. Foi quando o Collor Fernando Collor de Mello, o 32º presidente do Brasil entre 1990 até 1992, até sua renúncia defenestrou todo mundo do serviço público, inclusive ela, que ficou de contratos temporários até ser convidada para ser professora da UFC (Universidade Federal do Ceará), em 2000. Eu já estava na UFF há 18 anos. Então, de repente, pensei: "Por que não?".
Eu conhecia o Labomar, onde eu trabalho hoje, mas mais por papers Trabalhos acadêmicos que reúnem resultados de uma pesquisa , não conhecia muita coisa. Na época, eu trabalhava muito com mangue, estava coordenando um grande projeto internacional que era basicamente para conservação e uso sustentável de florestas e manguezal na América Latina, na Ásia e na África.
Ou seja, eu vivia pendurado em asa de avião. Óbvio, foi muito importante porque acabei tendo uma experiência da situação dessas áreas costeiras no mundo todo. E foi importante também para consolidar todo o conhecimento e o Ceará veio numa hora fantástica.
OP - E o senhor veio direto para o Labomar?
Drude - Eu vim cedido pela UFF para prestar serviço técnico especializado, no caso foi o reitor Roberto Cláudio Foi reitor entre 1995 e 2003 e que faleceu em janeiro de 2023 que nos convidou para ficar no Labomar e eu e Rozane, que vem a ser minha chefe hoje, criamos…
Quer dizer, criamos não, o programa de pós-graduação já existia, mas estavam com dificuldade de reconhecimento na Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).
E, bom, eu fui coordenador e criei o programa de pós-graduação da Geoquímica, que é um programa nível 6. Então, tinha uma experiência razoável, conhecia todo mundo na Capes, enfim, sabia os mecanismos de fazer um curso funcionar.
Vim para o Ceará nos anos 2000, a Rozane foi para a Geologia e dois anos depois para o Labomar e eu fui cedido. Quando o professor Ícaro "Sobrenome é de Sousa Moreira. Ele é químico e pesquisador que foi reitor da UFC entre 2007 a 2008, e faleceu vítima de morte súbita." assumiu, ele conseguiu a minha cessão, de modo que eu não precisava mais dar aula no Rio.
Eu já era coordenador e criamos o programa de graduação em Oceanografia. Ou seja, já estava totalmente "cearoca" (risos), totalmente envolvido com vocês cearenses.
Uma coisa interessante de quando eu cheguei à UFC e voltava à UFF é que o pessoal me perguntava: 'O que você está fazendo no Ceará? Lá só tem praia bonita, peixes e lagostas maravilhosas e tu trabalha com poluição! Ainda mais com mercúrio'.
À época eu já trabalhava com o problema de
"Único metal que se apresenta de forma líquida, é utilizado em garimpos ilegais para separar os grãos de ouro de sedimentos"mercúrio
Certo dia recebi uma ligação quando trabalhava na Geoquímica do professor Ari Ott, da Universidade de Rondônia.
Ele disse que estava com problema de garimpo e estava procurando gente que entendesse de mercúrio e viu que eu tinha publicado muito sobre metais, mas eu nunca tinha trabalhado com mercúrio. Ele me chamou para ir até lá e aí me apaixonei.
O problema ambiental é seríssimo, com vertentes em todas as possibilidades, na área de saúde, na área de Ecologia, na área de Conservação, Antropologia...
Inclusive, minha reunião em Brasília é para uma reunião com ministérios para traçar uma linha de atuação para combater isso. O Brasil perdeu muito tempo.
Foi uma experiência muito legal. Nesse ano mesmo, eu publiquei um trabalho sobre os últimos 35 anos sobre a contaminação de pescado e exposição humana ao mercúrio por conta do garimpo.
OP - E, aqui no Ceará, o senhor começou pesquisando o quê?
Drude - Em 2001, eu era professor visitante na Universidade de Toulon (França) e um professor francês veio passar seis meses no nosso laboratório, no Ceará.
Resolvemos fazer algum trabalho conjunto. Um excelente professor nosso, George Satander, que faleceu recentemente (31 de julho de 2022), convidou a gente para conhecer o Jaguaribe, falando que era o maior rio do Estado.
Eu comecei a me envolver, vi que era o maior rio do mundo totalmente dentro de um clima semiárido. Isso é uma coisa muito interessante.
É a principal fonte de sedimentos e nutrientes e qualquer outra substância para plataforma continental desse Litoral Leste do Ceará, barrado por mais de mil açudes pequenos, médios e alguns enormes...
Ou seja, uma situação ambiental que eu adorava, complexa. A Rozane começou a trabalhar lá e eu comecei a acompanhar também.
Ela é geoquímica e começou a orientar na área de Geoquímica de lá, Fluxo de Materiais, Geoquímica de Sedimento e eu me apaixonei pelo Jaguaribe, áreas de mangue maravilhosas…
E à época havia um incômodo, que eram as piscinas de camarão, que eram 100 hectares só. Hoje, são 4 mil. Mas já chamava atenção o potencial de alteração ambiental que poderia causar.
Começaram a sair os primeiros relatórios do
IPCC
"Sigla em inglês para Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas"
. O primeiro relatório foi em 2005, depois em 2007, e a questão da mudança climática começou a ser pautada. Eu entrei para a Academia Brasileira de Ciências e fui indicado para representar a Academia no painel brasileiro de mudanças climáticas.
Na primeira reunião, estava lá o Carlos Nobre "Cientista brasileiro, destacado na área dos estudos sobre o aquecimento global" , o Marengo "José Antonio Marengo Orsini, peruano radicado no Brasil há mais de 20 anos e estudioso do aquecimento global" e eles colocaram as projeções para 2030, 2050, e a minha experiência no Jaguaribe, no Nordeste, é de que já estava acontecendo os problemas de erosão, os problemas de alteração de ciclagem de nutrientes, de mobilização de poluentes, de alteração na química de poluentes, que era o que a gente estudava. E eu falei: "Isso já está acontecendo no Ceará, não é futuro."
E tudo isso virou a principal linha de trabalho que eu tenho até hoje, de como essas mudanças globais remobilizando os nutrientes e metais que ficaram estocados nessa região costeira.
Na época, 2001 e 2002, eu coordenava um programa internacional grande, que era o Land–Ocean Interactions in the Coastal Zone, do IGBP "Programa Internacional da Geosfera - Biosfera" e fizemos várias reuniões, inclusive duas em Fortaleza, para discutir essa transferência de materiais continente-oceano.
OP - Foram esses dados que o senhor levou para o Programa Internacional de Zonas Costeiras?
Drude - Exatamente. Em 2001, eu entro pro Comitê Executivo do programa. Publicamos uns dois livros sobre a situação na América Latina e, no Caribe, vários trabalhos específicos sobre o Nordeste brasileiro e, quando chega em 2005, o programa entra para a fase 2 . E o
CNPQ
"Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico"
abre pela primeira vez o edital, de programa em rede, para o Instituto do Milênio.
Foi quando fizemos o primeiro instituto sobre transferência de materiais em estuários. Em 2008, foram criados os institutos nacionais de ciências e tecnologia e nós criamos o Instituto de Transferência de Materiais Continente-Oceano.
Hoje, nós estamos na fase 3 deste Instituto, que envolve 14 instituições no Brasil, cinco instituições no mundo todo. Formamos mais de 400 pessoas.
Chamava muita atenção esse aspecto da mudança climática, no Ceará, como está aumentando a biodisponibilização de poluentes, principalmente o mercúrio.
Eu lembro que, em 2005, eu li um trabalho de revisão sobre o impacto da mudança climática da biodisponibilização do mercúrio no Ártico. Estava aumentando a carga de mercúrio no Ártico por causa do degelo.
Eu, muito inocente, pensei: no Jaguaribe é o contrário. Começamos a testar e foi ao contrário. A contaminação da biota "Conjunto de todos seres vivos de um determinado ambiente ou de um determinado período" estava aumentando, aumentava em direção ao mar, a mobilidade do mercúrio aumentava também e isso virou um paradoxo.
Foi uma teoria que passamos 15 anos trabalhando e, agora, está publicada. A gente chama de Paradoxo Ártico, que é justamente a mudança climática acelerando a mobilização do mercúrio, aumentando a biodisponibilidade e consequentemente a exposição humana.
No litoral do Nordeste, hoje, você já tem populações que apresentam uma exposição de alto risco ao mercúrio por causa disso, porque não tem fonte de mercúrio no Ceará, e, no Nordeste, é muito pequena.
OP - Mas, em razão das mudanças climáticas, esses índices já estão aumentando, inclusive aqui…
Drude - Exatamente, porque essas regiões estuarinas, cheias de mangue, elas acumulam muito material que vem do continente.
Nós temos umas características muito específicas que uma vez que o mercúrio entra lá, ele fica imobilizado no sedimento, não passa para planta, não passa pra lugar nenhum, mas acumula. Se o mangue ficar do jeito que está não acontece nada, pelo contrário.
Na Baía de Guanabara, lá no início dos anos 2000, a gente propôs e fez pro Governo do Estado um plano de proteção. Você lembra daquele
Aterro de Gramacho
"Aterro Sanitário de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, Rio de Janeiro"
, onde teve a novela Avenida Brasil, que era um negócio gigantesco? A gente propôs e fez um replantio de mangue para evitar a transferência de metais do Aterro do Gramacho para a Baía de Guanabara e funcionou muito bem.
Então, naturalmente, esse sistemas acumulam muito, mas se eles começam a ser alterados, por exemplo, pela erosão, por causa do aumento do nível do mar aí no Ceará e a diminuição dos sedimentos de origem Continental, por causa do barramento dos rios, aí você começa a ter problema, começa a remobilizar e poderá ir para cadeia alimentar.
OP - Professor, recentemente teve o estudo de zoneamento da Costa do Ceará, o senhor chegou a analisá-lo?
Drude - O primeiro, em 2011, eu trabalhei muito na quantificação de cargas de nutrientes, metais. O laboratório que a professora Rozane coordena se envolveu bastante também, então a gente estava vivendo bastante esses problemas e hoje é uma preocupação muito grande.
Um dos impactos disso, que é muito sério, embora o mundo capitalista consiga dar um jeitinho nas coisas, é que, por exemplo, o Brasil não pode exportar para a Europa pescado in Natura para a comunidade europeia por conta de contaminação de mercúrio.
No governo do Camilo (2015–2022), no qual eu fui diretor científico da Funcap "Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico" durante oito anos, estava preocupado com essa questão da contaminação. E aí nós falamos: "Vamos ver se a gente consegue pelo menos convencer os europeus, porque o Ceará não tem problema".
Então nós fizemos um grande projeto sobre a contaminação do pescado no Ceará e realmente não tem contaminação, embora por conta dessas mudanças, dependendo da espécie de peixe e principalmente da taxa de consumo desse peixe, você pode, sim, ter algum risco associado não protegido pelos limites legais da legislação.
Isso foi um resultado muito importante que amanhã é um dos tópicos para tarde inteira dessa discussão aqui em Brasília. Então isso já foi mais recente e esse projeto continua.
Agora, o Governo do Estado se interessou também para saber a qualidade desse material para uso farmacêutico, como algas.
"Como todo ambiente extremo, o Nordeste é muito mais afetado do que, por exemplo, um Rio de Janeiro, que é uma área temperada."
OP - Hoje qual está sendo o foco do seu trabalho?
Drude - Hoje eu trabalho principalmente com mudanças ambientais, regionais e globais, mobilizando contaminantes tanto na Amazônia, pelo desmatamento, quanto no Nordeste brasileiro, por conta da mudança climática. Como todo ambiente extremo, o Nordeste é muito mais afetado do que, por exemplo, um Rio de Janeiro, que é uma área temperada.
E quando você olha qualquer relatório geral de mudança climática uma coisa bem nítida é que os ambientes extremos do planeta são muito mais sensíveis.
O exemplo que eu dou para os meus alunos é que a temperatura global do Planeta subiu 1,34° graus nos últimos 150 anos, o Ártico subiu cinco vezes mais, por isso você está tendo essa preocupação com degelo na Groenlândia, é um problema seríssimo.
O Nordeste é uma situação extrema, é clima semiárido, que está ficando mais árido, agravado pelo aumento de calor do Oceano Atlântico, que é brutal.
Ou seja, o aumento do nível do mar, a força do Oceano bloqueando tudo que vem da terra e o que vem da terra é cada vez menor, porque quanto mais água, mais açude você tem de fazer.
Então, você tem: mais retenção de material no continente, daí essa erosão que vocês veem aí em todo o litoral, em Caucaia, em Fortaleza, enfim, todo o litoral está erodindo por conta disso; um déficit de material continental cada vez maior; e um oceano ficando cada vez mais quente.
OP - Professor, qual o peso que essas pesquisas no Ceará tiveram para a sua carreira?
Drude - A Rozane fala muito, e é verdade, que foi muito importante eu ter ido para o Ceará, porque foi o que me catapultou. Eu saí professor titular da UFF, mas eu virei membro da Academia Brasileira de Ciências, em 2009, no Ceará.
Depois, entrei na Academia Mundial de Ciências, em 2011, no Ceará. A comenda do Mérito Científico Nacional, eu não lembro muito se foi na época do Temer ou se foi antes, mas também tudo isso veio do Ceará.
Esses projetos grandes como o Instituto do Milênio, o INCT Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia Fase 1, 2 3, a Cooperação Internacional, tudo isso veio de quando eu estava aqui. Foi muito importante o ambiente que me era fornecido, pelas características ambientais do Ceará, isso tudo foi muito legal.
OP - O senhor foi também diretor científico da Funcap. Como foi sua passagem por lá?
Drude - O Camilo assumiu em 2015, o Inácio Arruda assumiu a Secitece "Secretaria da Ciência, Tecnologia e Educação Superior do Ceará" e ele me convidou para ser diretor científico da Funcap. Eu fui junto com o presidente que ele tinha convidado, que era o César Barreto "Francisco César de Sá Barreto, que presidiu a instituição em 2015" , também membro da academia, um cientista fantástico, mas que acabou não ficando muito tempo porque ele era de Minas e aí complicava para ver a família. Ele acabou saindo e quem entrou foi o Tarcísio "Tarcísio Haroldo Cavalcante Pequeno, assumiu a gestão da Funcap em 2016" e foi uma grande descoberta como amigo, como profissional. Mas, quando a gente assumiu, eu conversava muito com o Inácio sobre isso, que era um absurdo as desigualdades na área das pesquisas.
Lá em 1997, quando eu ajudava no CNPQ, a gente criou aquelas políticas assimétricas porque era um absurdo porque tudo ia para o Sul, Sudeste e nada ia para o Nordeste, nada ia para o Norte, então, criamos aquele negócio dos 30% para todos os editais para ir o Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Mas, quando cheguei aqui, o que encontrei me chamou muita atenção e eu disse para o Inácio: "A gente lutou tanto para tirar a desigualdade regional e eu chego aqui a desigualdade regional dentro do Estado é gigantesca".
Em 2015, 98% de toda a ciência feita no Ceará era feita na Região Metropolitana e o Inácio até brincava chamando eles de "professores Guanabara", porque eles pegavam o Expresso Guanabara (empresa de ônibus) para voltar para Fortaleza.
E eu pensava que a gente tinha que fixar esses caras lá. Mas como que faz isso? Você fixa gente criando programa de pós-graduação, porque se você cria um programa de pós-graduação, você leva bolsa, você leva a capacidade de competir em editais, você vai jogar como eu estou aqui no Ceará, com o que o Interior pode te dar de oportunidade de fazer ciência de qualidade.
Criamos um monte de programa de pós-graduação e ia atrás das bolsas, programa de cooperação nacional e internacional. Com isso, o sistema expandiu de um programa, em 2010, para 28 programas, talvez até mais.
OP - Em que medida isso repercute na qualidade da produção científica cearense?
Drude - Isso aí, é claro, catapulta a produção científica, porque se você tem um problema de pós-graduação no Cariri ou em São Paulo, a avaliação vai ser a mesma.
Uma vez no Interior, você pega uma política de assimetria como a gente fez na Funcap: um programa de qualidade no Interior e um de qualidade na Capital... O do Interior leva mais bolsa, ponto.
A gente faz editais específicos, como a gente fez, por exemplo, para os professores visitantes de Paleontologia. Hoje, você tem 11, 12 dos melhores professores de paleontologia do mundo trabalhando lá.
Ou seja, a qualidade vem antes e aí você fixa o professor. Tem que dar a bolsa de produtividade, de interiorização, a taxa de bancada para ele comprar o que precisar, e dar, no mínimo, cinco bolsas para ele trazer aluno para trabalhar com ele.
Então isso foi fundamental: montar os programas de pós-graduação, dar condição de nucleação de grupo de pesquisa e não só do docente, tudo isso melhorou muito.
OP - O senhor acha que isso acabou contribuindo, por exemplo, para o fato de mais de 20 pesquisadores cearenses terem entrado, em 2023, na lista dos pesquisadores mais influentes do mundo, elaborada pela Universidade de Stanford, dos Estados Unidos?
Drude - Com certeza. E se você olhar naquela lista tem um monte do Cariri, de Sobral, de Redenção, tem gente que nunca aparecia no mapa de excelência científica e que está lá, e claro, isso impulsiona tudo.
E, no fundo, a Ciência não é muito diferente do TikTok. Se o negócio começa a aumentar e reproduzir, todo mundo presta atenção. E aí um pesquisador começa a citar o outro.
Aqueles pesquisadores que estudam Paleontologia no Cariri, por exemplo, estão virando capa da Science, como é que você não vai citá-lo? Eles estão fazendo pesquisa de qualidade.
E a Funcap teve um papel muito fundamental nisso. Naquele período mais sombrio do último governo, a Funcap segurou o maior programa de bolsa do País.
OP - E entrando nesse tema, a gente passou nos últimos anos por um período de muito descrédito da Ciência. Como é para o senhor, que está trabalhando ao longo de todos esses anos para comprovar as teorias científicas, ter que observar um cenário assim, onde existem pessoas que sequer acreditam em mudanças climáticas ou que acreditam que a terra é plana, por exemplo?
Drude - Aí eu vou jogar bola para vocês. Porque cientista - e aí eu me incluo, então posso criticar - a gente é ruim para caramba de divulgar o que faz.
A gente é muito humilde e tem aquele pensamento de que 'eu não estou fazendo mais do que a minha obrigação' e divulga mal pra caramba ciência. Felizmente, o pessoal começou a perceber isso.
Eu tive a oportunidade de trabalhar como editor da Revista Ciência Hoje, do Instituto Ciência Hoje do SBPC "Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência" lá na década de 1980, 1990 para a divulgação científica voltado para crianças. E isso ajuda? claro, que ajuda. Mas quem lê Ciência Hoje? Sou eu, os teus filhos, você... O cara que acha que a Terra é plana não lê Ciência Hoje.
Então, está faltando uma coisa um pouco mais básica, da grande imprensa, da grande mídia - e que tem feito muita coisa, diga-se de passagem, como essa questão do garimpo ilegal, por exemplo - de trazer isso para o público. É um esforço que depende muito de todos.
OP - Professor, dá para mensurar qual foi o prejuízo para a Ciência neste período?
Drude - O Brasil em 2013 era o 11º maior produtor de ciência do mundo, quando chegou em 2020 nós já tínhamos caído lá para o 17°. O sistema de financiamento de pesquisa no Brasil, em 2015, batia, eu não me lembro dos números direito, mas era algo como R$ 7,5 bilhões, caiu para menos de R$ 700 milhões em 2020.
Enfim, foi terrível. Os laboratórios pararam, as universidades pararam, era só ver a quantidade de obra inacabada na UFC, por exemplo. E não era só na UFC. Praticamente não teve concurso para professor, foi um desastre.
E aí as FAPs Fundação de Amparo à Pesquisa tiveram um papel importante porque elas seguraram a barra legal. Na Funcap nós tivemos um esforço muito grande e claro que teve apoio, óbvio, que se não fosse o Governo do Estado não tinha nem Funcap, pra suprir isso.
Chegou a um ponto tal, em 2018, mais ou menos, que a Funcap dava mais bolsa de pós-graduação no sistema do Ceará do que a Capes, o MEC (Ministério da Educação) e o CNPQ juntos.
No Interior então, nem se fala... Porque é aquela história: esse é um problema também do cientista, farinha pouca, meu pirão primeiro.
Então nesses quatro anos, você voltou muito, porque estava faltando dinheiro no Sul e Sudeste também, e aí vou mandar pro Cariri? Não, não vou. Então muito do Interior ali se manteve por conta da Funcap.
E não foi só no Ceará não, várias outras agências tiveram um papel fundamental. Tanto que hoje o conjunto dessas agências têm um peso muito grande na ciência brasileira. Então foi muito importante essa atuação nesse período nefasto que a gente viveu na Ciência. Infelizmente, o resultado disso é esse negacionismo idiota...
OP - Mas já retomou hoje o volume de investimento pré-pandemia?
Drude - Não. E nem é pré-pandemia, é pré 2015 "À época, a presidente do País era Dilma Roussef, do PT" . A pandemia só entornou o caldo, mas o caldo já vinha vazando desde 2015. Você pega qualquer gráfico, produção científica, investimento, em 2015, começa a cair tudo.
Mas a gente ainda não voltou a esse patamar. Ainda está faltando, não é rápido. Você vê os próprios INCTs, que era a joia da coroa do CNPQ, esse projeto da fase 3 era de R$ 9,5 milhões, sendo que só teve condição de bancar R$ 1,5 milhão.
As FAPs estão entrando com um pouco mais, a Capes um pouco também, ainda é muito longe do patamar que a gente estava antes. Ainda falta muita coisa, mas pelo menos eu acho que estamos no caminho certo. O problema é que, enquanto você tiver gente achando que a Terra é plana, é difícil.
OP - No ano passado, o senhor tomou posse como membro do Conselho Gestor do Fundo Clima, em Brasília. E, na última semana, o presidente Lula anunciou o repasse de R$ 10,4 bilhões para o fundo, que é operacionalizado pelo BNDES, e vai financiar projetos para o combate à mudança do clima e o desenvolvimento sustentável do País. Qual a avaliação o senhor faz desses trabalhos?
Drude - Eu faço parte do Conselho Executivo do Fundo Clima, que a gestão é pelo BNDES e pelo Ministério do Meio Ambiente, e faço parte do Conselho Científico do Fundo Nacional do Meio Ambiente. Todos os dois, realmente, trazem uma outra perspectiva.
Para você ter uma ideia, no governo passado, eu fui membro do CT-Hidro "Pprograma do Finep para financiar estudos e projetos na área de recursos hídricos" , que era o fundo aquaviário, e, em 2021, tinha zero de recursos, mesmo a indústria naval tendo bancado R$ 300 milhões de recursos no fundo. Mas, cadê o dinheiro? E por aí vai, não vou nem entrar em detalhes.
Mas, voltando para o hoje, desses recursos que o presidente anunciou agora do Fundo do Clima, do BNDES, grande parte deles não vão para as universidades.
A maior parte, na verdade, vai para ações diretas de de saneamento, de preservação ambiental, de criação de unidades de apoio a comunidades ribeirinhas e populações tradicionais. Enfim, tudo aquilo que pode afetar a mudança climática do ponto de vista do bem.
E esses recursos só tendem a aumentar porque, na realidade, o fato de o Brasil voltar a ser um país mais bem articulado internacionalmente chama a atenção do mundo, afinal a gente tem a maior biodiversidade do planeta, tem a maior floresta, um oceano gigantesco.
Então você começa também a atrair fundos internacionais. O Fundo Clima recebe, o Fundo Nacional do Meio Ambiente também recebe e isso realmente é fundamental para o sistema de proteção e conservação ambiental.
Sem esse recurso dos Fundos, você não consegue ir para lugar nenhum. Isso porque uma coisa é eu fazer a pesquisa no meu laboratório com recurso do CNPQ e produzir um resultado que, por exemplo, vai proteger as comunidades ribeirinhas da contaminação pelo mercúrio.
Mas quem é que vai efetivamente colocar isso em prática? Quem vai fazer isso é um projeto socioambiental, não é um projeto acadêmico, eu não tenho nem competência para fazer isso. Então, os Fundos, nesse aspecto, são fundamentais para isso.
OP - E que outros mecanismos a gente pode fazer uso, tanto o poder público como a Academia, para tentar reverter esse cenário atual?
Drude - Eu acho que, no caso da Academia, o mais importante são duas coisas. A primeira é gerar conhecimento, senão você faz a Terra plana reversa.
O segundo é colocar esse conhecimento de uma forma que os tomadores de decisão possam fazer alguma coisa. A SBPC e a Academia Brasileira de Ciências fazem isso muito.
Agora mesmo, essa reunião aqui "Reunião em Brasília com ministros do Governo Federal para debater sobre mudanças climáticas" foi deflagrada por uns documentos que a Academia Brasileira de Ciências fez à época da eleição, para os presidenciáveis, sobre o que era importante na área de ciência e tecnologia no País.
E depois vieram tópicos específicos, como a questão do mercúrio, a questão da fome etc. Nós temos o conhecimento.
Agora, não adianta nada você ter o conhecimento se você não passar por um tomador de decisão, entendeu? E isso a Academia está aprendendo a fazer melhor. Hoje está fazendo bem até, só não consegue fazer na parte lá do cara da Terra Plana, isso a gente ainda não consegue.
OP - Como o senhor avalia o potencial econômico desses papéis verdes que estão agora ganhando espaço no mercado financeiro? Qual o interesse das empresas em investir nisso?
Drude - Veja bem, tem dois aspectos que eu sempre tenho um pé atrás e outro na frente. Acho que um pé na frente, porque é óbvio que se a empresa tem recurso e ela pode investir nisso, é fantástico. Eu acompanho, por exemplo, os trabalhos de recuperação do Rio Doce e a Vale investe uma grana lá que uma universidade não conseguiria.
Mas, por outro lado, você tem que ter muito cuidado quando você capitaliza a natureza. Era muito comum à época em que eu estudava, falar de capital natural, depois o pessoal começou a mudar isso porque, na verdade, você está falando de serviços ecossistêmicos e, entre eles, a manutenção do clima.
E aí você tem que ter muito cuidado, porque se você monetiza esse negócio, você entra nas regras do mercado, entendeu? E aí as regras do mercado, às vezes, não estão muito interessadas se é uma floresta primária cheia de castanheira ou se é uma floresta de eucalipto.
Isso porque, do ponto de vista de biomassa de retenção de gás de efeito estufa, não é muito diferente não. E aí fica meio complicado.
Então você tem que de alguma forma olhar para como você faz isso... E o Fundo Clima e o Fundo Nacional do Meio Ambiente fazem muito bem, com o apoio justamente da Academia.
Para dizer: olha, acho que vale a pena fazer biocombustível e tudo, mas você também tem que manter os sistemas do jeito que eles estão naturalmente, porque você pressupõe que existam os serviços sistêmicos que no momento não são quantificáveis.
Por exemplo, eu me lembro, na década de 1970, que a Suzano plantava eucalipto no Espírito Santo inteiro. Ninguém falava de sequestro de carbono.
Imagina hoje você plantar uma mata, do tamanho de um estado, de eucalipto, e colocar isso em termos de sequestro de carbono. Fantástico! Mas, por outro lado, você está substituindo uma Mata Atlântica que levou milhões de anos para evoluir. Você não sabe nem o que tem lá dentro.
E eu não estou nem falando de Amazônia, estou falando de Baturité, o que é que você pode explorar daí que possa trazer benefícios para a humanidade, que você não tem nem ideia?
Então você tem que usar um princípio, que é o mais importante da área ambiental, que é o da precaução.
No meu trabalho de contaminação ambiental, o princípio da precaução me diz que eu tenho que tomar cuidado com a situação atual, que eu posso estar chegando em um ponto onde eu vou, de repente, remobilizar muito contaminante e contaminar o resto.
Você não pode achar que está ‘todo mundo muito bem, obrigado’.
Da mesma forma, tem que usar o princípio da precaução para não transformar toda a floresta tropical numa grande plantação de alguma coisa, de uma fordlândia, que tentou fazer técnica e não deu.
Não dá para olhar só o balanço de carbono, porque senão você vai pensar: 'Está monetizado! É legal!'. Eu estou sequestrando não sei quantas toneladas equivalente de CO2, no valor de não sei quantos milhões de dólares, é fantástico!
Mas à custa de uma biodiversidade que você nem sabia direito o que era, mesmo que ela nem fosse tão significativa em termos de sequestro de carbono... eu acho que você tem que aplicar o princípio da precaução.
E você só pode fazer isso se você tem conhecimento, senão você não pode fazer isso. Então, eu acho muito legal que os títulos verdes estejam ganhando relevância, mas sempre com uma certa restrição.
OP - O senhor tem posição em relação ao projeto de Santa Quitéria?
Drude - Eu conheço pouco o projeto Santa Quitéria. É claro que se você pensou em urânio é outra história, isso apavora todo mundo. Na realidade é aquele negócio da percepção do risco. Ninguém está preocupado muito com metal porque você não vê.
Agora você falar em radiação, você não vê também, mas já matou gente, tem Hiroshima, bomba atômica e tal. Essa percepção é crítica, então é óbvio que você tem um risco associado à exploração mineral lá em Santa Quitéria, não tem dúvida.
Por outro lado, pelo fato da percepção do risco ser gigantesca na área nuclear, talvez seja uma área onde as salvaguardas ambientais são as mais restritivas possíveis.
Eu trabalhei muito nessa área na época do comissionamento da usina nuclear de Angra dos Reis. E comparado com a legislação para outras coisas, para metais, para pesticida, é brincadeira, isso é muito mais rígido.
E aí eu acredito que a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) é absolutamente independente. Tem o seu próprio instituto de dosimetria. Então eu acredito que vai ter um controle muito forte. Mas, novamente, é sempre um risco. Toda coisa que você mexe na natureza, você pode ter o tiro saindo pela culatra.
No caso da energia nuclear, ao contrário do mercúrio, por exemplo, que eu tô vendo aí no Nordeste, não tem porque ter acidente. Você tem tudo funcionando.
Mas e o acidente de Brumadinho? Foi terrível, mas as causas são muito claras. Na questão nuclear você tem a questão ali de um negócio que há muito tempo já vinha sendo levantado que era problemático, que ninguém fez nada a respeito… Aquele monte de rejeitos…
Você vai e faz uma viagem para Belo Horizonte, você vai ver e tem Brumadinho a rodo. Só basta uma chuva mais forte. E outra questão importante é que ninguém leva em consideração que o mundo não é mais o mesmo.
Isso é uma questão fundamental. E isso é muito difícil de passar para a população. O mundo certinho que a gente conhecia não existe mais.
"A gente tem de levar em consideração que o mundo está mudando e radicalmente"
OP - Dos efeitos que o senhor vem pesquisando ao longo desses anos, o que já se observa hoje, o que é ponto de alerta?
Drude - Você vê a frequência, por exemplo, aí problema bem regional, a frequência de secas extremas no Nordeste. A última nossa levou seis anos.
O Marengo, que é um cara fantástico lá na academia também, ele fez um estudo, até reproduzi alguns dados dele nas minhas palestras, em que ele quantificou a quantidade e a extensão de secas extremas desde o século XVI. E ela passou de mais ou menos uma a cada 50 anos para hoje 18.
Passou de secas que duravam entre dois anos e três anos para hoje que duram 4, 5, 6 anos como a última que teve. Então esse é um exemplo claro.
Todo o planejamento que você tem, por exemplo, de produzir 20 mil toneladas de tilápia no Castanhão… Fantástico! Com o Castanhão cheio você pode até dobrar isso, mas quem disse que ele vai ficar cheio? Aí o resultado é que começa a morrer tudo e é uma desgraça na economia do Estado.
Ou seja, a gente tem de levar em consideração que o mundo está mudando e radicalmente… Você vê a intensidade de chuvas localizadas aqui no Rio. Ora, em um dia choveu que antes 560 mm. Isso é mais do que chove o ano inteiro no Ceará, uma loucura. E estão aí os exemplos toda hora.
A frequência desses eventos extremos está aumentando brutalmente. A erosão… Há pouco tempo até liguei para o Tarcísio que tem uma casa lá na Redonda "Praia em Icapuí, a 205,3 km de Fortaleza" .
Ele estava em outra casa, mas aqueles caras que ficaram lá já estão tudo perdendo casas. Isso acontecia já? Claro que acontecia.
Mas não na frequência, na intensidade que acontece hoje. E esse é o negócio, entendeu? Você fala: ‘Mas à época da minha avó também teve uma chuvarada’. Mas quantas vezes isso acontecia? E qual era o tamanho dessa chuvarada? Isso não fica na memória.
Essa percepção é errada. Você tem que pegar o dado. E aí sim, você vê, realmente, está mudando esse negócio.
Então essa é a preocupação que eu tenho hoje na minha área de trabalho em específico. Eu tô aqui em Brasília para isso… Para alertar o Ministério que a gente tem que entender qual o impacto dessas estado em que o planeta está vivendo, no aspecto específico da contaminação pelo mercúrio, que é o objetivo disso aqui.
Mas, tem também para erosão, para desmatamento, para erosão de mangues. Ou ao contrário, tem vazão de mangues para dentro do continente, porque eles saem. A água do mar vai entrando no mangue e vai junto também.
Então hoje no Ceará tem manguezal lá em Itaiçaba "Município localizado na microrregião do litoral de Aracati" . E está é aumentando cada vez mais. Em outros locais não, não consegue ir para lugar nenhum igual aqui no Rio de Janeiro. Não tem planilhas, eles acabam morrendo tudo por erosão.
OP - Nesta questão do Jaguaribe, tem até uma pauta sobre as fazendas de camarão que têm aumentado muito. Qual o impacto disso?
Drude - As fazendas de camarão são críticas. Eu publiquei agora uma revisão com os colegas sobre os 20 anos de impacto da carcinicultura. Você tem um impacto que é cumulativo.
Eu me lembro, há pouco tempo, uns três anos atrás, nós fizemos um campo numa área, que tinha sido de uma dissertação de Mestrado, estava lá o mangue na frente da Copescar (empresa de pescado).
Nós começamos a estudar e a gente verificou que a saúde da floresta estava decaindo. Antes, você só conseguia ver isso usando algumas bandas de satélite, mas com o processo de degradação, chegou num ponto em que foi para o brejo.
E esse é o problema. As coisas na natureza não ocorrem assim progressivamente numa coisa linear. Hoje morreu 10%, amanhã 20%.
Praticamente você olha e não está acontecendo nada, o dia amanheceu muito bem, até que não estava mais tudo bem.
São os limiares, os pontos de ruptura que estão aparecendo muito hoje na literatura, na imprensa também, estamos chegando muito próximos de alguns pontos planetários e no Brasil também… O desmatamento da Amazônia… Talvez você não precise desmatar toda a zona não, talvez…
OP - E isso também traz um impacto econômico, num encarecimento no preço dos alimentos, falta de alguns deles …
Drude - Ah, isso ocorre direto. Você perde uma área de mangue e a quantidade de gente que perde sustento? A produtividade indireta de pesca, um monte de coisa.
São esses sistemas, esses serviços ecossistêmicos que têm que ser levados em consideração, não dá somente para monetizar, porque tem aspectos ali que não são monetizados.
É a tradição, é a religiosidade. Está tudo envolvido com uma série de coisas. Isso foi uma coisa, talvez essa experiência na Ásia tenha sido muito importante, tem áreas de mangue lá que são sagradas, tem toda uma simbologia no sincretismo.
OP - Como o senhor sentiu ao receber as comendas, a ter esse reconhecimento?
Drude - Isso é fantástico, não tem nem dúvida. Ainda mais se for pensar num cara suburbano, que nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, filho de bancário. Eu nem imaginava que a minha vida fosse assim.
E realmente, eu devo isso muito ao fato de ter ido para o Ceará e devo isso muito à estrutura que a professora Rozane montou aí, um laboratório de ponta. Ela nunca falou que ia para o Ceará para trabalhar com equipamento vagabundo não, pensou logo em montar uma estrutura igual as melhores do mundo e foi o que ela fez.
Foi fundamental essa estrutura que ela criou no Labomar para a gente poder fazer esse tipo de trabalho. E isso foi uma coisa muito importante.
Claro que teve apoio do CNPQ, da Finep, da Capes, da Funcap, principalmente da UFC e de várias partes da UFC, de várias pró-reitorias. Porque realmente esse é um problema que a gente enfrentava muito…
É aquela síndrome de vira-lata. Você já deve ter escutado isso: ‘Aqui no Nordeste eu não consigo. Eu estudei na Europa e era tudo ótimo e eu chego aqui e não consigo trocar uma lâmpada’.
Isso não deixa de ser verdade, mas isso não é impedimento não, entendeu? Você tem que suplantar isso…
Quando a gente criou o programa de pós-graduação no Labomar, a gente não criou para ser o melhor programa de pós-graduação da UFC do Ceará não.
A gente pensou qual seria o melhor programa de oceanografia, por exemplo. É da USP? Então a gente tenta ser igual os caras. E agora que já é igual, estamos pensando nos melhores do mundo.
Não tem motivo para você não fazer pesquisa de qualidade, de primeiro mundo, mainstreaming, de qualquer lugar do Brasil. É um gasto, dá trabalho, lógico, mas tem de correr atrás.
E eu agradeço muito a o Ceará por isso também. Como a Rozane fala muito… Se não fosse o Ceará eu, com certeza, estaria bem, estaria fazendo minhas pesquisas lá na USP, mas não assim.
Drude é o único brasileiro, dentre 34 cientistas dos cinco continentes, que integra a Future Earth Coasts Academy (FEC Academy), projeto internacional de investigação das zonas costeiras.
Ele figura desde 2019 no ranking dos pesquisadores mais influentes do mundo, não apenas pela produção anual, mas pela relevância das obras da sua carreira. Em 2023, o Ceará emplacou 25 pesquisadores na lista.
Em 2011, a teoria do “Paradoxo do Ártico”, que traça paralelo entre rios da região do semiárido brasileiro e os rios da região Ártica, conferiu ao pesquisador o Prêmio Bunge, na categoria Vida e Obra na área de Oceanografia.
Internacional
DRUDE é o único brasileiro, dentre 34 cientistas dos cinco continentes, que integra a Future Earth Coasts Academy (FEC Academy), projeto internacional de investigação das zonas costeiras.
Prêmio
EM 2011, a teoria do "Paradoxo do Ártico", que traça paralelo entre rios da região do semiárido brasileiro e os rios da região Ártica, conferiu ao pesquisador o Prêmio Bunge, na categoria Vida e Obra na área de Oceanografia.
Ranking
ELE figura desde 2019 no ranking dos pesquisadores mais influentes do mundo, não apenas pela produção anual, mas pela relevância das obras da sua carreira. Em 2023, o Ceará emplacou 25 pesquisadores na lista.