O que seria uma floresta de gente? A definição tem cenários diferentes para cada um que lê a pergunta. Em Parelheiros, periferia da zona sul de São Paulo, essa concepção de florestamento se ergue a partir do plantio de 10.639 árvores desde a última quinta-feira, 5, Dia Mundial do Meio Ambiente. A ação, promovida pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac), faz parte do movimento "Contra o Racismo, Eu Planto" e é referência à Lei 10.639/2003, medida que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas.
"Os jovens estão registrando as histórias dos moradores de Parelheiros, elas estão guardadas num depositário e depois vão para o Museu da Pessoa. A ideia é que as árvores tragam trechos", intenciona a educadora social Bel Santos Mayer, coordenadora geral do Ibeac, em entrevista ao O POVO durante a XV Bienal Internacional do Livro do Ceará - programação que aconteceu entre 4 e 13 de abril no Centro de Eventos do Ceará, em Fortaleza. Em meio ao desalento ambiental, a transformação propõe uma metamorfose simbólica num território onde 60% da população é preta ou parda e 49% tem até 29 anos.
A educadora acompanha de perto as mudanças que acontecem no distrito. Esteve à frente da decisão de instaurar a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura no bairro após o mesmo ser eleito em 2008 como a pior região da cidade para morar - mesmo tendo a maior reserva vegetal de São Paulo, não usufruía do acesso a direitos básicos. "Tão importante como ter comida no prato, é ter histórias e livros na mão", justifica Bel ao esmiuçar o poder revolucionário da literatura que a acompanha desde a infância.
Cresceu com as narrativas compartilhadas pelos pais, parte dos nordestinos que migraram para a capital paulista, o que ajudou a desenvolver repertório suficiente para auxiliar na alfabetização de jovens no Parque Santa Madalena, onde morava, com somente 14 anos. Foi a primeira da família a se formar com diploma em Matemática, mas acabou sendo convertida pelas letras. Desde então, se tornou mestra em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Turismo da Universidade de São Paulo (EACH/USP) e está na gestão da Rede LiteraSampa, pontos de destaque no currículo extenso de quem atua há mais de quatro décadas na formação de leitores. É, pela força do querer, ativista da leitura e defensora do encanto pelas palavras.
O POVO - Nós estamos falando em um momento muito oportuno para essa conversa, dentro da Bienal Internacional do Livro do Ceará - um evento muito querido pela população do Estado - e realizando a entrevista dentro da Casa Vida&Arte. Você traz uma narrativa para a programação sobre a importância das bibliotecas comunitárias e da mediação de leitura. Queria que você explicasse, a partir da sua vivência, o que faz esses espaços comunitários serem transformadores na vida das pessoas...
Bel Santos Mayer - As bibliotecas de acesso público nos unem enquanto bibliotecas públicas, escolares e comunitárias. Todos constituímos espaços abertos ao público. Criança, adolescente, jovem, adulto. A questão que a biblioteca comunitária traz é que ela acontece em espaços em que geralmente o Estado não chegou. Ela nasce de uma ausência do Estado, da ausência de uma política de cultura, de acesso aos livros e à leitura. E essa ausência se junta com um desejo de indivíduos ou instituições que querem garantir esse direito humano. Quando falamos de direito humano, estamos falando daquilo que é essencial. Tão importante como ter comida no prato, é ter histórias e livros na mão. Como a gente alimenta, hidrata, esse desejo? Esse sonho de encontrar palavras para dizer o que a gente sente e para dizer também aquilo que a gente quer inventar. É isso que a literatura faz.
OP - Quando você fala destes espaços nos quais o Estado pode não chegar, quais são as políticas públicas necessárias para que as bibliotecas não apenas existam, mas também possam ter oportunidades de expansão?
Bel - A gente está num evento no qual o livro está no centro, mas tem uma programação bastante densa sobre as conversas, sobre os livros. Tem encontros com autores, autógrafos, ações de histórias, mediação de leitura, eventos musicais. Gosto de dizer que a gente não está falando de "literatura e". A gente está dizendo de "literatura é". Literatura é a contação, a publicação, o corpo, a música. A professora Leda Maria Martins fala: "O corpo é um corpo-tela". O nosso corpo tem escrito uma série de histórias e palavras. Quando vamos falar de uma política de biblioteca, temos que pensar em tudo isso, nos corpos que ocupam esses espaços.
Então, a gente tem que pensar em acessibilidade. Não temos um acesso comum a pessoas letradas e a pessoas que não foram alfabetizadas. Como essas pessoas podem acessar livros se a biblioteca não é para elas? Como uma pessoa com baixa estatura - não só as crianças, mas também adultos com baixa estatura -, pode ter o livro ao alcance das mãos? Os livros precisam estar dispostos para todos os tipos de estatura. Uma pessoa com dificuldade de mobilidade, precisa poder acessar esse espaço. Isso quando a gente fala desse corpo que ocupa a biblioteca.
Mas se fomos falar de gosto, a gente acabou de se conhecer. Eu não sei do que você gosta de ler. Eu não sei quais são os seus interesses. Como que podemos saber quais são os gostos, os interesses de todas as pessoas? Isso não é possível. Uma biblioteca tem que ter algo que se chama bibliodiversidade. Ela tem que considerar a diversidade de gênero, de autoria. Tem que ter livros escritos por autores jovens e autores que são jovens há mais tempo, autores indígenas, negros, de toda região do nosso País.
Uma política pública que funcione para as bibliotecas periféricas, para as bibliotecas comunitárias, tem que ser uma política que dê margem para a diversidade e necessidade de cada território. Política de biblioteca e de leitura não é só distribuir livro e muito menos distribuir os livros que não conseguiu vender. Quando digo: "Quem é que lê qualquer coisa?". Quem já é leitor. Quem não é leitor precisa da melhor trama, das melhores ilustrações, das melhores publicações, porque ele precisa ainda ser encantado pela palavra.
APROXIMAÇÃO >>>> OP - Nesse contexto, qual é a importância das mediações de leitura? Por que essas dinâmicas de mediação são portas de entradas tão importantes para conquistar um novo público de leitores?
Bel - Hoje de manhã eu estava na mesa com a Fabíola Faria, uma pessoa muito importante nesse espaço das políticas públicas de leitura em Minas Gerais e no Brasil. Ela falava algo muito importante: às vezes a gente pensa em mediação só como o fato de pegar um livro e ler para alguém. A Fabíola falava que uma biblioteca, todo o espaço dela, é mediadora. Uma biblioteca cheia de grades e catracas, com alguém na porta perguntando: "Quem é você?", ela já tem um espaço pouco mediador de aproximação.
Imagina uma biblioteca num território que você tem muitas pessoas de várias origens e na parede da biblioteca está escrito "Seja bem-vindo" em vários idiomas. Isso já é uma mediação. Porque você encontrar na sua língua alguém dizendo: "Vem". Depois você encontra na estante um livro de um autor que é do seu território, que te faça lembrar. Tudo isso é mediador. A gente entendeu há um tempo que precisa ter expositores, porque isso chama atenção; ter pessoas que fazem os livros caminharem, saírem da estante e irem para a rua.
Não é possível fazer mediação sem conversar. O mediador de leitura é um perguntador. Poucas pessoas vão chegar na biblioteca, isso é mais comum nas relações escolarizadas. A mediação é feita desse conjunto, olhar os espaços, construir estratégias de convite e de aproximação, de perguntas, e ler. Sem leitura você não consegue fazer a indicação.
OP - Como você pontuou, eventos como a Bienal são importantes porque as pessoas conhecem as histórias, podem perguntar sobre assuntos de interesse e, assim, vai formando cadeias de novos leitores…
Bel - Verdade, é super lindo. Adoro feiras de literatura, bienais. É tão bonito você ver as crianças. As pessoas querem se fotografar perto dos autores, perto dos livros. Aí depois ela vai descobrir o que é, está tudo certo. O importante é a gente conseguir conviver nesse ambiente que fala de literatura, de palavras. Eu venho de uma família que não tinha estante de livros em casa, mas nunca faltou história. Hoje, quando venho e encontro lá no espaço do cordel muitas histórias que minha avó contava, poder encontrá-las, levar para minha mãe e falar: "Mãe, lembra aquela história que a avó contava? Está aqui. Alguém escreveu". Isso é muito importante. Quando a gente tira foto com alguma autora que se parece conosco, a gente se sente pertencente. Tudo isso é mediação de leitura, todos são jeitos de transformar leitores.
AVANÇOS >>>>>>OP - São décadas na educação social, sendo ativista da leitura. Agora, nós temos no Ministério da Cultura uma secretaria de Formação, Livro e Leitura. Quais são as principais diferenças do cenário da leitura nas escolas em comparação com o início, quando você começou a trabalhar na educação social?
Bel - Sou uma matemática convertida à literatura, não comecei na literatura, mas acho uma mudança grande de cenário. Hoje, dificilmente vamos encontrar alguém que ache que ler é uma bobagem. Já partimos de um tempo em que se achava que leitura era bobagem, passamos tempos em que mulheres eram proibidas de ler. Vamos continuar tendo situações de censura, mas não temos mais quem ache que ler seja uma bobagem.
A gente saiu recentemente de um governo que não tinha Ministério da Cultura (MinC), mas digo que até eliminar o ministério é um reconhecimento de sua importância. Se não fosse importante, teria ficado ali. Tiraram porque sabem que a literatura, a cultura, a arte de modo geral, discute as verdades, nos traz a possibilidade de pensar e de discutir outras dores.
Quando a gente tem diversidade de autoria, começa a ler autores e autoras negros, indígenas, a gente começa a entrar em contato com outras dores que não eram nominadas, que não estavam presentes na literatura. Temos muito para caminhar, ter uma secretaria não resolve. É um marco importante, mas não podemos nos iludir e achar que a solução para nos tornarmos um País de leitores e leitoras está em alguém ou em um órgão.
Se cada um de nós não assumir a sua responsabilidade - estados, pessoas, coletivos e empresas - e enfrentar o não letramento; se cada um de nós não assumir a responsabilidade e encantar pessoas pela leitura e pelo pensamento, não tem jeito. Não tem política que se sustente. Agora, temos que ter política que entenda que é mais do que distribuir livros. Temos que ter mediação de leitura, bibliotecas dentro das escolas, possibilidades das pessoas terem recurso para comprar o livro. Não temos que precisar escolher sempre se vamos comer ou comprar um livro.
OP - Quando trazemos o ativismo literário como uma forma de luta diária, quais são os principais obstáculos que podem ser enfrentados ao longo do caminho nesse atual momento?
Bel - Cada um de nós, no lugar onde estamos, temos que olhar em volta e perguntar: quem não está aqui?. A gente tem que olhar para a programação das bibliotecas, dos eventos e perguntar: "Quem é que está aqui?". No passado, a gente dava uma resposta muito simples: vem quem quer, quem não está, não quer.
Hoje temos dados suficientes para dizer que não é bem assim. Muitas pessoas não chegam porque os obstáculos são muito maiores, porque aquilo que deveria ser direito é tratado como privilégio. Então, cada um de nós tem um poder de decisão. A gente tem que falar quem não está aqui e (se perguntar): como convido para que essa voz seja ouvida?
Ter uma curadoria de uma Bienal como essa, que está na sua 15ª edição, com mulher indígena, mulher travesti, mulher negra. Isso é uma decisão, não acontece de forma espontânea. Se não tem essa diversidade, estamos sempre com as mesmas pessoas, os mesmos livros, as mesmas conversas.
A poeta Audre Lorde (1934 - 1992) tem um poema que gosto muito e diz assim: "Bons espelhos não são baratos". Ah, mas para trazer um grupo do interior, para trazer gente do Brasil inteiro, saí caro. Bons espelhos não são baratos. A gente pode escolher ficar com os espelhos distorcidos que a gente sempre teve. Mas se queremos que as pessoas se vejam, se reconheçam, se identifiquem com aquele evento e com aquela literatura, tem que investir nisso.
OP - É importante mencionar a curadoria da Bienal, porque também fala um pouco da sua proximidade com a produção literária do Ceará. Queria que você falasse sobre o que conhece e o que acha interessante no movimento literário daqui.
Bel - Primeiro, morro de inveja dos nomes das cidades que vocês têm (muitos risos). Tem uma criatividade, né? Uma literatura tão presente no criar, falar, pensar. Vocês têm uma Bienal sem catracas, gente. Parece pouca coisa e não é. Tem um estacionamento que é caro, é verdade. Mas tem muita gente aqui que chega de transporte público. Isso já é algo lindo: garantir o acesso.
Conheço a Jangada Literária, que é uma rede de bibliotecas. Em rede a gente faz mais, se conhece melhor, consegue ter mais força. Eles estavam aqui em peso participando dos eventos. Fui visitar a comunidade do Curió (onde está situada a biblioteca Livro Livre Curió), que tem mulheres à frente, uma comunidade que fez uma construção coletiva. Isso é transformador na vida da gente. Tudo que nasce ali, vai nascendo também coletivamente. Sou muito admiradora de tudo aquilo que vocês têm feito aqui, é uma honra estar aqui com vocês.
OP - Você é uma das coordenadoras do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac). Quais são os planos do projeto? A gente poderia ter uma via de mão dupla com o Ceará?
Bel - Fundei uma nova fase do Ibeac, quando levamos as ações para um único território. O Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio à Comunidade já trabalhou com várias políticas: formação de agentes comunitários de saúde; de quarteiras da floresta; de lideranças indígenas, de profissionais de saúde.
Em 2008, a gente começa a trabalhar e concentrar tudo que a gente sabia fazer num único território. Que território é esse? (Parelheiros) O lugar que na cidade de São Paulo era considerado o pior lugar para se nascer e viver, porque tinha os piores índices de desenvolvimento humano. E não existe um pior lugar sem um melhor lugar. Alguém está se beneficiando daquele pior lugar para ser considerado melhor. A gente concentra as nossas ações em Parelheiros, cria uma biblioteca dentro do cemitério. Hoje são cinco bibliotecas comunitárias.
Hoje temos um terreno que chamamos de "Todos os Nossos Sonhos", onde vamos plantar 10.639 árvores. Vamos começar, no mês de junho, a plantar 1.000 árvores, e chamar esse movimento de "Contra o Racismo, Eu Planto". A gente está plantando a quantidade de árvores que é o número da lei contra o racismo na educação, isso num território em que 60% da população é negra ou indígena e 60% da população tem até 19 anos.
Nesse lugar, temos que plantar árvores mesmo. "Contra o racismo, eu planto", é também dizer "contra o racismo, eu leio", "contra o racismo, eu transformo a realidade que estou inserido". Tudo isso está envolvido dentro do plano da organização e dentro do meu projeto de vida. Sonho em ver essas árvores crescerem. A minha expectativa é viver bastante e ver nascer ali dentro uma floresta de gente.
O que estamos chamando de floresta de gente? Os jovens estão registrando as histórias dos moradores de Parelheiros, elas estão guardadas num depositário e depois vão para o Museu da Pessoa. A ideia é que as árvores tragam trechos das histórias, por isso floresta de gente. A ideia é que, antes da biblioteca nascer lá dentro, as pessoas vivam a floresta.
A gente tem que andar no bosque, acompanhar o crescimento das árvores, porque isso vira eterno. Essa é a nossa ação como Ibeac. Sobre os planos, nós estamos no estado de São Paulo discutindo o Plano Estadual do Livro e da Leitura. Essa política também tem que ser pensada. Não pode comprar livro com o dinheiro que sobrou. O crescimento e o nascimento de bibliotecas tem que ser planejado. Esses planos precisam trazer uma escuta com todo mundo que está no círculo do Livro e da Leitura.
FUTURO >>>>>>>>OP - Dentro desse esboço de planejamento, quais seriam as prioridades?
Bel - O prioritário é ter biblioteca. Estive com o professor Jorge La Rosa, que é filósofo, pedagogo e pensador da educação. Nós estivemos juntos em Barcelona no ano passado e ele falava que as bibliotecas são cápsulas de atenção.
E eu dizia: "E um mundo de distrações". Se tem um lugar em que podemos pensar os livros, as leituras, a formação de leitores, os processos de escrita, são as bibliotecas. O livro sozinho não dá conta. O autor sozinho não dá conta. A editora sozinha não dá conta. O gestor público sozinho não dá conta. Qual é o lugar que você ajunta todo mundo? É a biblioteca.
A gente tem que se juntar, não pode deixar que as bibliotecas fechem as portas, sejam elas públicas, escolares ou comunitárias. Temos que lutar, igual lutamos para ter escolas em todo lugar que tem gente. Ali, dentro da biblioteca, precisa de livro, de leitor, de processos de escrita. Aí vamos gerando todas as outras políticas. Não pode fechar biblioteca. Temos que ter biblioteca em todo lugar que tem gente, isso é central.
Bienal do Ceará
Bel Santos Mayer participou da XV Bienal Internacional do Livro do Ceará, em abril, com as mesas "Bibliotecas de acesso público (públicas, escolares e comunitárias): mediações para a promoção de leitura e da escrita" e "Uma revolução de leituras". Durante o evento, ela foi recebida pelo O POVO para conversa na Casa Vida&Arte - estande de cultura e fruição.
Prêmio Jabuti 2024
A criação da Biblioteca Comuitária Caminhos da Leitura ocasionou a conquista do Prêmio Jabuti de Fomento à Leitura em 2024.
Contra o racismo, eu planto
A campanha da Mata Atlântica em Parelheiros acontece em terreno doado ao Ibeac e à Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo. Doações são recebidas no site do projeto (www.ibeac.org.br).