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Hidelbrando dos Santos: do balcão da mercearia para a cadeira de reitor
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Hidelbrando dos Santos: do balcão da mercearia para a cadeira de reitor

Em conversa com O POVO, ele lembra da infância em Canindé, fala sobre a fé que herdou dos pais e conta como foi sua trajetória até se tornar o primeiro reitor negro da Uece
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FORTALEZA-CE BRASIL, 09.04.2025 - Entrevista com reitor da Uece   Hidelbrando dos Santos Soares  (Foto Joao Filho Tavares O Povo) (Foto: João Filho Tavares)
Foto: João Filho Tavares FORTALEZA-CE BRASIL, 09.04.2025 - Entrevista com reitor da Uece Hidelbrando dos Santos Soares (Foto Joao Filho Tavares O Povo)

Foi na mercearia do pai, em Canindé, 118,60 km de Fortaleza, que ainda menino Hidelbrando dos Santos Soares aprendeu a arte da comunicação e da negociação. Do tempo e daquela terra carrega saudosas memórias, a fé em São Francisco e um aprendizado de vida que, junto a uma extensa bagagem profissional e acadêmica, o levou a ser reitor da Universidade Estadual do Ceará (Uece), sendo o primeiro negro a assumir o cargo.

Antes de sentar na cadeira mais importante da instituição, Hidelbrando precisou contrariar a vontade do pai, de que se tornasse comerciante como ele. Mesmo herdando o talento para tocar o negócio de família, ele resolveu sair do sertão cearense ainda moço para estudar em Fortaleza. Tinha fome de estudo.

Chegou a prestar serviço por um tempo no Exército, acreditando que na instituição encontraria possibilidade de um local para viver enquanto, nas horas vagas, mergulhava nos livros. Se desiludiu em pouco tempo. Apesar das dificuldades, conseguiu engrenar depois nos estudos e se encontrou cursando Geografia na Uece, onde fez mestrado, virou professor e consagrou uma carreira acadêmica. 

A gestão chegou na sua vida por acaso, quando foi convencido a se concorrer ao cargo de diretor da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (Fafidam) e venceu, ficando á frente da instituição entre 2004 a 2012. Pegou gosto pela coisa. Feito uma dança surpresa, ele seguiu sendo levado pelos caminhos da administração e hoje já se encontra no segundo mandato consecutivo como reitor da Uece.

Em conversa com O POVO, Hidelbrando lembra da meninice no sertão, fala sobre a fé que herdou dos pais e conta como foi sua trajetória, costurando em uma mesma narrativa o ontem, o agora e o depois.

O POVO- Sobre a sua infância em Canindé, o que o senhor traz de memória desse período?

Hidelbrando dos Santos- Primeiro o próprio território lá, a própria cidade. Tem coisas assim muito marcantes. O rio Canindé, tenho uma relação de infância com o rio, seja o rio para pegar água, que antigamente a gente pegava água do rio, seja o rio para jogar bola. Então, essa é uma imagem muito forte da infância. Eu sou filho de um pequeno comerciante, de um agricultor que virou comerciante. Os meus pais são originalmente agricultores. Família de agricultores.

E meu pai foi um pequeno comerciante, então dez anos da minha vida entre os 10 até os 18 anos eu era bodegueiro. Eu ajudei meu pai durante esse período todinho. A minha infância ela é assim misturada com o tempo da escola, o tempo da rua, que era muito limitado, e principalmente o tempo da mercearia.

A mercearia é a minha referência maior de tudo, de crescimento. Dessa fasezinha de infância para adolescência. De um certo entendimento do mundo a partir daquele micro espaço ali da mercearia. Foi lá que eu aprendi um monte de coisas que até hoje eu tenho na minha vida atual, qualquer canto que eu esteja, nesse sentido foi um ponto meio de síntese das coisas que eu aprendi na vida, no comércio, na atividade comercial, naquele contato diário permanente com as pessoas. Foi muito marcante. E lá também foi o local que eu desenvolvi uma relação muito forte com a religiosidade. 

Então, assim, eu também sou uma figura que ali na infância, na adolescência fui mergulhado nessa espiritualidade franciscana. Tem o São Francisco assim como uma espécie de guia, mentor. Padroeiro que eu acredito que nos protege, então essas coisas todas aqui de certa forma traçaram muito da personalidade que eu tenho hoje, né? Uma família religiosa, uma vida infanto-juvenil muito fortemente ligada à igreja, e uma experiência assim de trabalho que eu não via como trabalho.

OP- E a mercearia ainda hoje é ativa?

Hidelbrando- Minha mãe continua tocando a mercearia. A grande finalidade da mercearia já não é mais propriamente comercial, mas ela continua porque ela acha que tem que dar continuidade aquilo que o pai começou, uma questão sentimental dela muito grande, ela está lá parece que ela está se encontrando com ele (que já faleceu). Eu acho que a mercearia para ela é uma grande terapia. 

É um refúgio também, de se achar ainda produtiva. Eu fico imaginando que ela passa o dia ali se vendo também na relação mesmo que imaginária com o meu pai. Então a bodega, para todos nós é um negócio mesmo mágico, né? É um negócio que une todo mundo e é um negócio meio mágico assim na família, pelas lembranças, pelas memórias...

OP- Dos aprendizados que levou desse período, quais aplica hoje como reitor?

Hidelbrando- Eu particularmente acho que a mercearia foi a minha grande imersão no mundo adulto. Então, mesmo criança, é ali que eu mergulhei no mundo adulto. Talvez eu tenha passado por um processo de amadurecimento também mais rápido que se eu tivesse só correndo na rua, né? Embora eu gostasse demais de estar na rua, eu gostasse demais de futebol, mas tinha um tempo muito grande da minha vida, ali entre os 8 e 18 anos, que basicamente eu me dediquei à mercearia, tava lá na mercearia.

Mas eu acho que a mercearia acelerou meu processo de visão de mundo, de interpretação de mundo. A mercearia me ajudou a ser uma pessoa comunicativa também, o comércio faz isso com a gente. A impressão que me dá é que a minha capacidade de mediação, a minha capacidade de escuta, mas também de comunicação, tem muito a ver com essa experiência, né? E da negociação propriamente dita também de negociar, fazer, por exemplo, gestão pública, é você tá negociando todo o instante.

OP- O senhor falou sobre a presença da religiosidade na sua vida. Como a religião teve impacto na sua caminhada e de certa forma também no seu trabalho?

Hidelbrando -  Há um negócio muito forte na família da gente, e eu posso voltar lá para meus avós, que é um sentimento de caridade muito grande. Olha que eles eram pobres, não tô falando de gente que tem posse e é caridoso, é de gente que é muito pobre, mas é muito caridoso também. Então, essa relação com a ajuda, com apoio, esse sentimento de fraternidade com os outros é muito forte.

Vou dar um exemplo para vocês, meu pai foi [em um bairro de Canindé] e encontrou um senhor que morava numa casa muito isolada. Esse senhor tava em uma situação muito deplorável. Ele levou para casa e ficou com o senhor lá, e o senhor passou mais de 10 anos lá em casa, morando com a gente. E assim, parece a coisa mais normal do mundo. Claro que não é normal. Mas a pessoa ficou com a gente lá morando e tudo mais. Antigamente não tinha o SUS. Você não tinha, por exemplo, em Canindé uma ambulância. E você tinha uma maternidade muito acanhadazinha. Muitas mulheres tinham filhos em casa. E meu pai comprou um carro.

O meu pai se tornou o sujeito que ia pegar as mulheres para trazer para a maternidade. E em razão disso, o pessoal da política viu que ele poderia entrar na política. Ele se tornou vereador. Ele foi por três mandatos vereador, só com uma ação. Então, a minha vida de juventude e adolescência é vendo meu pai, minha mãe, com ações assim que a gente se perguntava, porque que ele precisava fazer aquilo? Que que ele ganhava com aquilo? Não ganhava nada. Era uma ação de bondade.

Então, eu acho que isso tem tudo a ver com com a religião e particularmente por eles já desde muito jovens, depois que casaram, entrarem logo imediatamente na Ordem Terceira Franciscana, e parece que isso impactou muito também nessa percepção deles em relação às questões franciscanas. Por exemplo, minha mãe criou há mais de 25 anos, em Canindé, o Café dos Romeiros.

A mãe via que a maioria das pessoas que iam para Canindé não tinha dinheiro para comer. Durante a festa, tem uma procissão que vai até a igreja do Monte. Ela resolveu que ia dar café para aquele povo ali. Eu faço parte das atividades do café. Depois que eu virei reitor tem um pessoal aqui da universidade que ajuda também com recurso, com dinheiro. 

OP- E todos os anos o senhor vai?

Hidelbrando- Todos os anos eu tô indo para lá. E aderi a outro movimento, uma caminhada. A minha ainda é só de 20 km. Não é de 100. Mas assim, para mim ,o Café dos Romeiros hoje é uma ação que eu considero muito impactante.

A gente pensa que é coisa pequena. Porque na verdade é coisa pequena, você pegar uma xícara de café, botar leite, dar um pão com a margarina, com manteiga e dar uma banana. Mas rapaz, quando você bota para a pessoa falar, parece que ela ganhou assim, um prêmio, é mais pela generosidade, que ela se pergunta 'por que as pessoas fazem isso pela gente, né?', de onde é que vem o dinheiro para fazer isso?

Aí ela sabe que isso é produto de uma movimentação, que não não é uma pessoa só que faz isso, é muita gente. Então assim, eu acho que essa questão da relação com a chamada atividade solidária, tem muito a ver também com essa origem também familiar, com a questão da religiosidade, da relação com o santo de Assis. Eu sou um leitor da vida de São Francisco, seja da perspectiva mais espiritual ou da mais humana, porque sou um pouco fascinado pela história dele.

OP- Fora o café, falou que faz uma caminhada agora, como é que funciona?

Hidelbrando- A caminhada é mais para mim mesmo. Há um elemento terapêutico para mim na caminhada. Têm muitas romarias no período da Festa de São Francisco e tem uma caminhada histórica lá que é de Caridade a Canindé. É uma caminhada que reúne muitos grupos familiares, amigos e tudo mais. É uma caminhada muito espiritual. É uma espécie assim de um esforço físico que está vinculado, na verdade, a uma dimensão muito espiritual também. E eu gostei de ir, achei bacana o descarrego assim, de estresse, essa questão da dimensão da vida que você começa a perceber.

Você vai caminhando ali, a questão do trabalho já não é mais a questão que vai lhe mover. Então é o momento também de você ver tanto a finitude da vida, mas também o que é importante. É um momento de terapia muito interessante, de muito silêncio também. Sempre você reza, canta, mas também você fica muito tempo em silêncio.

OP- Falando da sua formação, eu sei que o senhor é bacharel em geografia, já prestou assistência voluntária para o MST... acha que esse caminho foi muito impulsionado pelo seu histórico familiar? Essa ligação com a questão rural, agrária?

Hidelbrando- Meu pai tinha um projeto de vida para mim muito claro e muito decente. Ele queria que eu repetisse ele. Com 18 anos, eu queria estudar, queria sair de Canindé, tinha terminado o ensino médio. Aí ele fez uma casa, em um bairro mais afastado de lá onde a gente morava, e fez um ponto como mercearia na frente da casa. Ele me leva lá e diz: "Ó, isso aqui é a sua mercearia".

Eu cheguei em casa e fui conversar com a mãe. Eu disse: "Mãe, eu não quero ser comerciante. Quero estudar". Para ele foi difícil. Foi uma decepção. (Meus pais) são pessoas que estudaram muito pouco, mas minha mãe veio para Fortaleza e isso também acaba abrindo os horizontes dela.

Ela veio para cá para ser doméstica, mas tinha um desejo na vida, ela queria ser costureira. Ela queria um curso, ela queria ter um diploma. Então ela veio para Fortaleza para ser doméstica, mas pensando em fazer o curso de costureira. E ela conseguiu fazer tudo isso. 

Depois ela teve a oportunidade de ser assistente de dentista. Ela foi trabalhar em uma casa como babá e nessa casa o dono era um dentista e transformou ela em assistente. Meu nome inclusive é por causa dessa família, sou Hidelbrando porque o menino que ela era babá era Hidelbrando. É nessa relação da mãe aqui em Fortaleza, que ela botou na cabeça que os filhos tinham que estudar.

Eu queria estudar e a mãe era a que movia essas ideias de que a gente estudasse, tivesse o diploma. Na família do meu pai, tinha dois tios que tinham feito isso. Era os únicos da família que tinham feito isso. Um fez pedagogia, o outro fez Direito. Então, eles eram uma espécie de modelo pra gente. Eu disse: "Não, se eles conseguiram, eu também vou conseguir".

E botei na cabeça que eu ia ser economista. Porque lá em Canindé eu passei a conviver com o pessoal do sindicato rural. Eu botei na cabeça que eu queria ser economista porque eu achava que a economia era a profissão que poderia mudar o mundo. Ai minha mãe foi falar pro meu pai, meu pai "eu não tenho casa lá, como eles (os filhos) vão morar em Fortaleza? Eles só vão morar quando eu comprar a casa".

Aí eu me alistei no Exército. Eu disse 'vou me alistar no exército e eu vou morar em Fortaleza porque eu vou ficar lá no quartel e à noite eu estudo'. Eu passo o dia no quartel e à noite eu estudo. E eu fiz essa besteira. Fiz a minha licença, fui convocado, aí começou a primeira semana de atividade. Cara, pensa em um arrependimento assim do tamanho do planeta, do mundo? Era humilhação em cima de humilhação.

 

OP- Mas ai já havia passado no vestibular?

Hidelbrando- Não, eu vim para morar, eu tinha que ter um lugar para morar.  Eu resolvi que eu vinha pro Exército, que eu morava no Exército e a noite eu estudava. Eu achava que isso era possível, depois descobri que não era possível. Mas eu tive uma sorte danada. Meu primeiro exame que eu fiz de físico não deu problema nenhum. Só que eu sabia que eu tinha uma pequena hérnia no umbigo, mas como eu não tinha problema, queria era ficar, não disse nada. 

Passou a semana todinha chegou um oficial e disse assim: "Tem alguém ainda pendente de exame médico? Que o médico vai fazer os outros exames agora". Eu levantei o braço e disse: "Eu tenho uma hérnia aqui umbilical e eu acho que eu não tenho condição de ficar aqui não". Foi por isso que eu fui dispensado, depois de uma semana lá. Aí voltei para Canindé, voltei desesperado. Foi quando mãe conversou com uma tia nossa que morava na Praia Futuro. Resultado, vieram os dois (ele e a irmã) morar na casa dos tios. 

Quando eu chego aqui, eu vinha com destino de fazer economia, eu passo a me relacionar com um grupo de jovens muito fortemente ligado às comunidades de bases, ligados aos movimentos políticos mais à esquerda. E ai eu conheço um professor que era das escolas aqui de Fortaleza, e ele passa a ser uma espécie de mentor do grupo, era o mais intelectual, e ele era da geografia e ele passa a mostrar que a geografia é a ciência que vai mudar o mundo. E nessa brincadeira eu sou completamente influenciado por esse professor e decido fazer geografia. Eu vou começar a fazer uma relação dessa geografia com o movimento camponês, com a questão agrária, no mestrado, bem mais a frente. Eu me aproximo da natureza não somente política como teórica, em particular com os movimentos de luta pela terra. Então a minha associação com o MST, como assessor e tudo mais, ela acontece após a graduação. É na universidade, em particular já como professor universitário e já nas primeiras grandes ações de pesquisa, que eu me vejo ali como uma pessoa que além da origem eu preciso trabalhar nisso, e é partir dali que eu crio uma relação com os movimentos sociais, não só com o MST.

OP- Foi durante esse período também que a sua relação com a Uece começou né? Foi bacharel, professor, coordenador de projetos... em que momento disso tudo veio a vontade, a intenção de ser reitor?

Hidelbrando- Tenho que ser sincero em tudo que digo, eu nunca pensei em ser professor universitário. Quando eu fiz bacharelado em geografia, a única coisa que eu pensei foi em ser bacharel em alguma empresa estatal. Quando comecei a graduação eu não me via professor, por necessidade eu fui pra escola (ensinar), mas eu não queria ser professor, achava nem que tinha talento pra ser professor. Eu queria ser geógrafo, no sentido mais técnico da palavra. Então a entrada na escola por necessidade acabou desenvolvendo alguma coisa em mim que eu comecei a gostar. Eu passei meus quatro anos da graduação sendo professor das escolas daqui. Comecei na escolinha comunitária, mas passei pelo Tirantes...em vários colégios do Centro de Fortaleza, e passei a gostar desse negócio.

Então eu me descubro professor por necessidade. Eu estava fazendo especialização na UFC e tinha um sujeito chamado José Borzacchiello, que é um geógrafo muito respeitado. Ele chegou lá e disse: "Todo mundo tem que se inscrever no concurso público de geografia da Uece lá em Limoeiro". Realmente uma parte grande da turma se inscreveu e eu me inscrevi, não porque eu achasse que eu estava preparado para entrar na universidade, eu me inscrevi porque o coordenador disse que eu tinha que me inscrever. 

Por essas coisas também assim, das conspirações do mundo, eu passei, fui o primeiro colocado. Fiquei super feliz, logicamente. A partir daí, vi na docência um caminho que eu tinha que seguir. Ao entrar na universidade, jamais passou na minha cabeça que além de ser professor ia ser reitor. Eu achava a reitoria um negócio muito distante, mas muito distante de qualquer possibilidade que eu tinha. Eu já estava muito feliz em ser professor. Nunca tive um projeto de ser reitor quando eu comecei a minha atividade. Tem gente que entra hoje na universidade e diz: "Eu quero ser reitor". Eu nunca tinha pensado nisso.

Eu entro na universidade, com dois anos eu saio para o mestrado em Recife. Queria basicamente só seguir minha carreira acadêmica. Eu queria ser só professor, fazer uma carreira acadêmica legal, bacana. Quando eu volto do mestrado, eu encontro a Fafidam (universidade em limoeiro) em disputa eleitoral. Eu tinha passado só dois anos na Fafidam e sai pro Recife, né? Mas eu tinha tinha uma amizade, o pessoal gostava da gente e tal. Quando eu cheguei, o pessoal (falou): "Ó, tu tem que ser candidato". "Mas meu irmão, tô chegando, eu não quero ser diretor de nada". Botaram pressão, botaram pressão. Eu disse: "Não, tudo bem. Se for só pra pra gente fazer aqui só o movimento, eu vou". Aí fui. A primeira eleição que eu  concorri foi em 2000. Eu perdi por um voto. Tenho essa experiência lá que não foi vitoriosa, eu dei graças a Deus não ter sido vitoriosa, porque eu não queria ser diretor de verdade.

Eu vou para minhas atividades. Vou fazer projeto de extensão, vou me relacionar com os movimentos de base, vou produzir paper, estudo e tudo sobre a questão agrária. É a partir daí que eu vou exercer, de fato, a atividade acadêmica. Era isso que eu queria fazer, as minhas aulas. Viver minha vida profissional lá, desenvolvendo as coisas com o MST, com o movimento de barragem, com os camponeses da região.

Quando deu em 2004, o pessoal disse: "Não, você vai ter que ser candidato". Aí resolvi me candidatar para desgosto da minha esposa. Ela não queria, ela achava que eu devia só seguir a carreira acadêmica, ter mais dedicação para os filhos, para ela também. A contragosto dela, eu fui candidato. Para meu azar, eu ganhei a eleição. Ganhei eleição e, logicamente, a partir daí fui ter que dar conta da faculdade. E pelas sortes também do mundo, essas coisas que conspiram, a gente conseguiu fazer um monte de coisa que as pessoas até então não conseguiram fazer.

Por alguma razão que eu também desconheço, as pessoas que não ajudavam a faculdade passaram a ajudar, eu consegui dinheiro para construir mais lá dentro, modernizar a faculdade, construir mais dois blocos de sala, terminar o auditório e aquela coisa ganhou uma fama, eu fiquei famoso dentro da universidade como o cara que sabe fazer as coisas.

Na verdade era só isso, eu ia atrás e por alguma razão dava certo. Eu consegui emenda parlamentar, consegui destravar processos que estavam no governo. Consegui organizar a faculdade que era muito bagunçada. Consegui botar todo mundo para trabalhar. Então, todas essas coisas eu fiz lá naquele micro espaço e o pessoal começou a achar que eu tinha talento para gerir as coisas. Porque as coisas passaram a se organizar. O pessoal diz que eu sou virginiano, sou, gosto muito de organização.

OP- Metódico?

Hidelbrando- Metódico também. Resultado, eu ganhei fama de ser um bom gestor. Aí pronto, quando eu ganhei fama de ser um bom gestor, tomei gosto para esse negócio de ser diretor. Ai vamos pra segunda eleição. (Entre concorrentes) Tinha o pessoal da região e tinha o pessoal de Fortaleza. O pessoal da região era muito ligado ao poder local e esse pessoal perdeu a eleição para mim.

O nosso pessoal achava que se não fosse eu, podia ter uma chance de eles voltarem. E para não voltarem, eu fui novamente para a eleição. Ganhei, não teve nem concorrência. Eu concorri sozinho. Primeiro mandato a disputa acirrada, o segundo mandato ninguém se candidatou. Novamente, continuei fazendo aquilo que eu sabia fazer, deu tudo certo, as coisas caminhavam, melhoravam.

Quando chega ali por volta de 2008, eu vou para a reeleição e aí coincide com eleição para a reitoria daqui (de Fortaleza). Eu sou procurado pelo movimento sindical, (porque) o pessoal me identificava como uma pessoa da esquerda e do movimento sindical. Eles queriam um candidato do sindicato. E tinha já uma candidata, que era a professora Leda, que tinha sido presidente do sindicato. Me convidaram para ser candidato a vice-reitor. Eu passei a gostar de fazer gestão, eu me encontrei com esse negócio, eu gosto de fazer isso.

Eu vou para essa eleição, assim mais para contribuir com o movimento sindical e tudo mais. E nós disputamos essa eleição, a Leda é a terceira colocada de uma disputa de cinco chapas. A nossa diferença do segundo lugar é de um voto. Volto pra minha vida de diretor, quando dá ali por volta de 2012, eu sou procurado pelo Jackson Sampaio. Foi lá para conversar comigo. Ele chega para mim lá na sala, falou: "Professor, vim aqui para fazer o convite irrecusável". Está certo, professor Jackson.

Ele disse "rapaz, olha, eu faço parte de uma geração que tá se aposentando ou morrendo. A gente precisa de uma nova geração de gestores. E eu vejo você uma pessoa que pode ser uma dessas pessoas que vão fazer essa transição. Eu quero passar o bastão para você. Eu quero saber se você quer ser meu vice-reitor". Como eu vinha de um movimento político, eu entendia que aquela decisão não era só minha, pessoal. Aí chamei o grupo.

Metade do grupo era contra, metade era a favor. Fomos para a assembleia e o resultado foi por um ou dois votos de diferença, a favor da coligação. Isso fez com que metade do pessoal que estava comigo até então me deixasse de mão, não continuaram com a gente. Porque achavam que era uma traição a toda a história política da gente e tudo mais. Mas parte do grupo disse: "Sim, vamos lá, tu tem que aprender".

Fomos para a eleição, ganhamos tranquilamente a primeira eleição, agora uma eleição muito concorrida. Vamos para a reeleição, eu como vice novamente. Lá no segundo mandato, eu já tinha tomado a decisão de que a gente ia se apresentar como candidato (a reitor). Em 2021, nos apresentamos, uma eleição também muito disputada, mas ganhamos bem a eleição. Foi assim que eu cheguei a ser reitor. Ou seja, eu não entro na universidade com intenção de entrar na vida política, nunca pensei nisso...

OP- É algo que aconteceu?

Hidelbrando-  Te digo com todo coração assim puro, que eu possa ter, a parte pura do meu coração. Quando eu entrei na universidade a única coisa que eu pensei na minha vida era ter uma vida acadêmica bacana. Uma boa produção acadêmica, ser um professor legal, bacana, reconhecido. Tudo isso eu pensei, mas ser diretor de faculdade, nunca pensei. Fui pelas circunstâncias que acabaram me envolvendo. E como eu tenho na família um pai que foi político, embora um político mais de fazer as coisas do que de falar. Talvez essa ideia de entrar entrar na política, mesmo sendo a política universitária, tem a ver um pouquinho com essa minha experiência lá acompanhando ele também na vida partidária. 

Meu pai nunca gostava de andar sozinho. Se ele ia fazer uma viagem, não gostava de ir sozinho. Levava alguém. Eu era o auxiliar ali dele. Eu acompanhei muito a vida política dele também, né? Talvez isso possa ter sido um elemento que me influenciou a dizer: "Não, tudo bem, eu vou entrar nesse negócio. Eu vou me candidatar porque vocês estão me cobrando, estão me exigindo, vocês acham que eu tenho algum talento, eu vou lá e vou ver o que é que acontece".

Então, eu chego à reitoria por uma via que não é aquela em que você se projeta. É aquela que a vida te atropela. Então, eu fui atropelado por essa conjuntura que disse: "Não, você é a pessoa que deve assumir esse negócio". Aí depois você vai pegando gosto. Vai pegando o gosto pela gestão.

Eu sou o primeiro reitor do Interior. Primeiro reitor do interior da Universidade estadual. Sou o primeiro reitor que não vem do grupo originário de reitores ao longo de quase três décadas. (Havia uma) hegemonia muito forte aqui. Então eu apareço como uma novidade.

 

OP- O senhor também é o primeiro reitor negro da instituição, o que acredita que isso trouxe de representatividade?

Hidelbrando-  Eu acho que a coisa mais significativa é a gente começar como comunidade a refletir sobre a questão mesmo racial na universidade. A gente começa a fazer mudanças também do ponto de vista institucional dentro da universidade, ou provocada pela lei ou provocada pelos movimentos internos da própria universidade. Ou seja, a questão do estabelecimento dentro da universidade, de um núcleo que faz todo acompanhamento da política étnico-racial dentro da universidade.

A preocupação que a gente tem, de que a gente possa garantir para os meninos, para as meninas que efetivamente são beneficiadas pela política de cotas sociais, que possam de fato ter sua vaga garantida. Mas eu acho que o grande impacto disso também é para nossa população negra dentro da universidade. Eu acho que isso também tem uma relação de dimensão política muito significativa.

A nossa relação com a guarda...a guarda sabendo que o menino negro que entra aqui, ele não pode ser barrado só porque ele é negro, porque o reitor é negro. Aí, tu vai fazer a mesma coisa com o cara, pô? 

OP- O senhor sentiu algum tipo de preconceito ou resistência em razão disso quando assumiu?

Hidelbrando- Olha, são dois preconceitos. Talvez meio velados. Um é da minha origem institucional, sou um professor de Interior. Então, (havia) a questão se eu tinha competência ou não, mesmo tendo uma experiência exitosa lá. Eu não vim apadrinhado, eu não tinha um padrinho, eu não tinha um corpo político de gente importante me apoiando, nunca tive na verdade, nem para ser diretor. 

A outra (questão) foi as minhas origens. Sou de uma família que é uma família simples, não tenho nenhum sobrenome que diga que eu sou de uma estrutura hierárquica, de uma família muito poderosa, muito importante. A gente sabe o que é que pesa sobre a gente, por ser negro também. Acham que a gente tem menos competência porque a pele da gente é negra, escura, né? Preta. Parece que a cor tira de você algum tipo de brilho. Todo preconceito em relação a mim eu sempre recebi como preconceito velado.

Eu nunca fui assim, diretamente vítima de uma ação racista que você tá ali no confronto direto. (Mas) As pessoas avaliavam (a minha) capacidade a partir dessas subjetividades aí, de materialidades também, já que a negritude é uma materialidade também, tá estampado aqui na nossa cara.

OP- E que legado deseja deixar na Uece?

Hidelbrando- Nesse novo mandato eu disse para a comunidade: "Olha, eu tenho aqui alguns desafios que a gente já avançou, mas para mim são desafios que eu vou me medir quando eu terminar o mandato". O primeiro deles é a gente dar continuidade a algo que eu considero extraordinário que aconteceu no Ceará, que é a política de expansão e interiorização. Para mim o caminho da Universidade Estadual é se interiorizar e se internacionalizar. 

Então, eu tenho a percepção e a compreensão que inclusive as possibilidades que o Ceará tem de saltos do ponto de vista econômico, social, passa por uma extensão ainda maior, não só da Uece, logicamente, mas de você ter uma rede ainda mais ampla de educação superior pública gratuita em todo o território brasileiro, seja pela Federal, seja pelo IFCE, seja pelas estaduais. Porque a gente leva não somente a formação, a gente leva pesquisa, a gente leva desenvolvimento, a gente leva inovação e a gente leva extensão universitária.

Para mim, essa chegada no Interior é uma condição do nosso desenvolvimento, do nosso salto do ponto de vista qualitativo. O que eu quero garantir é que essa interiorização não pare e não tenha interrupção. E esse é o meu debate, a minha luta hoje nesse exato momento.

Nós abrimos de uma vez só nove cursos, três deles da área médica, dois de medicina e um de medicina veterinária. Três no interior do Estado. Pode ir para qualquer estado da federação, nesse momento, ninguém fez isso. Só o Ceará fez isso, isso em pleno governo Bolsonaro ainda. Eu quero terminar meu mandato com esse processo de expansão consolidado. 

OP- E olhando para sua trajetória agora, o que o senhor considera que foi seu maior ato político?

Hidelbrando- Se eu tiver falando da minha experiência como gestor, eu acho que hoje a coisa mais marcante na minha história é de estar tocando o que eu considero a maior e a mais qualificada política de expansão e interiorização da Universidade Estadual do Ceará. Isso para mim é a coisa mais marcante.

Apreço pela arte

A sala de trabalho de Hidelbrando, onde ocorreu a entrevista, estava repleta de quadros, entre obras que ganhou e aquelas que trouxe para dar vida ao espaço. Logo depois que paramos de gravar, ele revelou ser um apreciador da arte e disse pensar até em fazer uma galeria na instituição. 

Fé em São Francisco

Hidelbrando tem uma forte ligação com São Francisco. Além de ter falado reiteradamente sobre a mesma, o reitor deixou claro a devoção nas imagens do santo que guarda em sua sala. 

Ligação com a universidade

O reitor mostrou que carrega a universidade no peito, literalmente. É que ao nos receber ele chegou com um broche em alusão aos 50 anos da instituição cravado na camisa. Logo ao fim da entrevista, no momento de despedida, entregou acessórios do tipo para a nossa equipe de reportagem.

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