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Jamil Chade: "As pessoas precisam assumir a responsabilidade pelas instituições"
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Jamil Chade: "As pessoas precisam assumir a responsabilidade pelas instituições"

Entre Trump e Lula, Jamil Chade analisa os novos contornos da diplomacia e as contradições entre populismo e cooperação internacional
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FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 21-10-2025: Entrevista com o jornalista Jamil Chade que possui um escritório na sede da ONU em Genebra, onde atuou como correspondente na Europa por mais de duas décadas. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo) (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 21-10-2025: Entrevista com o jornalista Jamil Chade que possui um escritório na sede da ONU em Genebra, onde atuou como correspondente na Europa por mais de duas décadas. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)

Quando viu o filho cruzar a porta de casa, abalado após uma discussão no recreio, em que uma criança disparou contra o menino a frase “tomara que você seja deportado”, o jornalista Jamil Chade viu materializada, e perto demais, as consequências de uma política anti-imigração.

Residentes nos Estados Unidos, Chade e a família têm os documentos em dia, declarações assinadas e vistos aceitos, não há o perigo da deportação. No entanto, a cena, vivida durante este segundo governo Trump, mostrou ao jornalista algo maior do que uma ofensa infantil: a naturalização do ódio e da exclusão como linguagem política.

Durante a produção de seu livro mais recente, Jamil viajou pelos Estados Unidos durante o período eleitoral e pós-eleitoral do País, observando de perto os apoiadores do republicano, em comícios e reuniões. O jornalista nomeou a obra de "Tomara que você seja deportado" e se concentrou no registro da decadência da sociedade estadunidense, expondo contradições e reflexões em torno da filosofia trumpista.

Segundo Chade, o ressentimento que existe frente às instituições democráticas traz desconfiança e essa desconfiança é instrumento da extrema direita para criar discursos contra essas instituições. “Não existe projeto de extrema direita que não passe pelo desmonte do Judiciário. Serve à extrema direita esse ressentimento”, afirma o jornalista.

“As instituições, por si só, não resistem ao autoritarismo. As pessoas precisam assumir a responsabilidade pelas instituições”, destaca.

Ao O POVO, Jamil Chade fala sobre a fragilidade das instituições, as contradições da diplomacia entre Trump e Lula, os riscos que ameaçam o multilateralismo e a urgência de reimaginar um futuro sem ameaças à democracia.

INSTITUIÇÕES

O POVO - Em seu livro mais recente, ‘Tomara que você seja deportado’, você escreve sobre sua experiência nos Estados Unidos no período pré e pós-eleição do presidente republicano Donald Trump. Você esteve, algumas vezes, rodeado de apoiadores do presidente. Qual é o aprendizado mais urgente no qual acredita que adquiriu com a escrita desse livro e o que seria mais urgente para nós aprendermos também?

Jamil Chade - O mais urgente do que vivi nos Estados Unidos foi a constatação de que as instituições, por si só, não resistem ao autoritarismo. As pessoas precisam assumir a responsabilidade pelas instituições. Se todos nós assumirmos uma instituição da democracia, a resistência vai ser muito mais firme e capaz de frear os ventos gelados desse autoritarismo. Agora, quais são essas instituições? Temos todos que defender do STF? Obviamente, não cabe a nós defendermos o STF, mas todos temos, sim, uma instituição da democracia para defender. A nossa, por exemplo, é o jornalismo profissional, essa é uma instituição da democracia que nós podemos defender.

Por exemplo, uma professora pode defender a liberdade acadêmica, que é também uma instituição da democracia, da liberdade científica e acadêmica. Qualquer um, em qualquer segmento da sociedade, tem uma instituição a ser defendida. A biblioteca da escola, o clube de futebol, a associação de bairro, tudo isso são instituições da democracia. Então, se todo mundo, e cada um, assumir uma instituição da democracia, a resistência vai ser muito mais sólida.


OP - Por que essas instituições pararam de ser defendidas? De onde vem esse descrédito?

Jamil - Quando existe uma situação na qual a democracia é apenas um teatro, que existe apenas no dia da eleição e não se transforma em ganhos reais e sociais para aquela família, para aquela pessoa, obviamente cria-se um ressentimento muito grande de que aquela democracia não te serve, não te atende e não chega até você. Se ela não chegar até você, infelizmente, pode ser vista com muita desconfiança. E aqueles no poder são vistos com ainda mais desconfiança.

Eu posso duvidar da eficiência de uma instituição se, geração após geração, eu continuo na pobreza. ‘Que instituição é essa que não me atende?’ Então, as dúvidas, o ressentimento, o ataque às instituições são, acima de tudo, fruto de uma democracia que não chega a todo mundo. O problema é que nós temos forças políticas que sabem desse ressentimento e vão instrumentalizar esse ressentimento para transformá-lo em ataque a essas instituições.

Não é só no Brasil, eu vi isso em vários lugares do mundo, a extrema direita mobilizando a sua base para atacar o Judiciário. Não é só um fenômeno brasileiro. Por que a extrema direita quer que a sua base ataque o Judiciário? Essa é a pergunta que a gente tem que fazer, e tem uma explicação: a extrema direita precisa do desmonte do Judiciário para que seu projeto possa ser implementado. Não existe projeto de extrema direita que não passe pelo desmonte do Judiciário. Serve à extrema direita esse ressentimento. Esse ressentimento é instrumentalizado e se transforma num ataque deliberado. Esse ataque, obviamente, tem um motivo político para acontecer.

OP - É possível traçar diferenças e semelhanças entre o movimento de extrema direita que se fortalece nas Américas e aquele que avança na Europa, onde líderes ultraconservadores já ocupam o poder em países como Itália, com Giorgia Meloni, e Alemanha, com Alice Weidel?

Jamil-Cada país tem um contexto muito específico, mas mesmo na Europa tem uma data para o começo do fortalecimento da extrema direita, pelo menos nessa última fase, que é 2008. O que aconteceu em 2008? A quebra do sistema financeiro. Os governos europeus vão usar recursos públicos para salvar os bancos, tiram o dinheiro público [que seria usado] para salvar os aposentados, as escolas, o sistema de saúde. Em nome do salvamento, da salvação do capitalismo, o Estado de bem-estar social desmontado.

Quando isso acontece, claro, aquelas gerações que estavam acostumadas com o Estado de bem-estar social, falam: "Calma aí, aquele partido tradicional, aquela instituição está tirando os meus direitos para pagar pelo resgate de um banco. É isso que está acontecendo?”. E aí aparece um charlatão, a extrema direita, um vendedor de ilusão, e fala: "É isso mesmo que tá acontecendo, inclusive, eu faria diferente. Eu busco o teu ressentimento, a tua indignação em relação aos partidos tradicionais e falo: Sou eu a alternativa a esses partidos tradicionais".

Então, também é um ressentimento, não é a pobreza, mas também um ressentimento da constatação de que eu não consigo mais dar para os meus filhos o que os meus pais me deram.

OP - Em seu livro, você retrata que os extremistas americanos se veem como revolucionários, colocando os progressistas como os conservadores na história, e lutando para essa nova sociedade na qual eles acham que é o ideal. Como essa inversão ocorre? É possível traçarmos paralelos com o Brasil?

Jamil - Isso é uma grande manipulação, mas eles se apresentam como aqueles que vão promover uma revolução. Eles têm a ‘força revolucionária’ hoje, e é muito impressionante. Você vai aos comícios e vê uma energia transformadora, mas não é uma transformação para expansão de direitos, é uma força revolucionária, transformadora para a volta de algo que, supostamente, existiu em algum momento da história. A gente sabe que não é exatamente isso, que é um passado idealizado, a gente sabe que é um passado mentiroso vendido naquele momento, mas é possível ver uma força real.

Aqui no Brasil também há uma percepção, não é por acaso que toca Geraldo Vandré. É possível pensar ‘que incoerência’, mas não sei se é tão incoerente porque eles acreditam que eles estão fazendo, sim, essa revolução. Eles falam em uma revolução conservadora na qual algumas certezas vão ser restabelecidas.

Por que isso pega tanto? Porque em um mundo "de tanta incerteza", quando essa incerteza passa a tirar, inclusive, o chão de muita gente, elas vão buscar certezas. E esses partidos trazem certezas simplistas, mentirosas, e absurdas na maioria das vezes, mas que acolhem um sentimento de angústia, uma população que não sabe como vai ser o dia seguinte, não sabe mais se o filho "vai ser homem ou mulher", tudo isso entra nesse pacote.

Para a extrema direita, a guerra cultural existe, principalmente, para trazer aquela população para uma suposta certeza biológica, religiosa e bíblica. E você retoma tudo isso como um acolhimento, como um abraço — ‘Olha, o mundo tá tão caótico, mas aqui a gente sabe o que a gente é’ — sabemos que é muito mais complicado do que isso, mas é muito eficiente. É uma questão de populismo em seu conceito.

OP - Pode exemplificar a sua experiência nesses comícios, principalmente em questão das eleições do Trump e depois as mudanças que tiveram em alguns personagens que o senhor conheceu.

Jamil - Eu fui ao comício do Trump no Madison Square Garden, no centro de Nova York. Era um comício histórico, porque era um dos últimos comícios, e em uma cidade democrata. Então, ele tava desafiando, ele tava ali provocando e ele colocou 20 mil pessoas. Naquele dia, eu optei por não ir como repórter, optei por fazer parte da fila, entrar naquela massa de pessoas e ouvir o que aquelas pessoas estavam dizendo. E para você ter ideia, foram 5 horas de fila. E mais 4 horas de comício. Então, fiquei com eles durante 9 horas.

Foi fascinante porque era uma coisa que eu queria entender: quando o estádio vem abaixo de euforia, quando isso acontece? Então entendi. É quando, acima de tudo, há um sentimento de revanche às instituições, à elite cultural e àqueles que estão no poder e foram muito hábeis em dizer: "Nós, o partido republicano, estamos com vocês nessa revanche. Vocês destruídos, abandonados, querem o restabelecimento no lugar de vocês? Então, nós estamos aqui”.

Nesse comício, teve um momento que fiquei muito assustado. Um dos apoiadores do Donald Trump subiu no palco para então anunciar uma medida que iam tomar: estabelecer a pena de morte para qualquer imigrante que tivesse cometido crime. O estádio veio abaixo de euforia.

Aí você pergunta: "Quem são essas pessoas que movem alguém para gritar como se tivesse feito um gol no final de uma Copa do Mundo na prorrogação? Era essa euforia que estava ali, muito assustador isso.

Outro momento que também fiquei muito assustado foi na noite da contagem dos votos. Escolhi ir a uma festa do grupo mais radical do trumpismo. Eu pensei: "Se eles perderem, eu quero ver a reação deles, será que eles vão aceitar a derrota? E se eles vencerem, eu estou com os vencedores". Achei que era um lugar mais adequado para acompanhar. Conforme Trump foi vencendo a eleição, aquela festa relativamente civilizada, passou a ser um evento de muito ódio. Eles gritavam com um sentimento de vingança. "Chegamos de volta ao poder e vocês vão se ver conosco a partir de agora", diziam. Ninguém chorou de alegria, não vi abraço fraternal, era uma agressividade impressionante.

Em um momento, um deles veio me perguntar como eu vivia sob o comunismo? Eu falei não sei. 'Mas vocês têm lá um comunista', disse o homem. Falei: "Não, não. Nem ele é comunista e nem o Brasil, estava vendo sob o comunismo". Eu vi que naquela hora ele percebeu que eu não era do grupo e foi essa  primeira pergunta que fez.

OP - Como se sentiu quando eles começaram a demonstrar essa raiva e sentimento de vingança?

Jamil - Eles tinham chegado de volta ao poder com muita legitimidade, e com sentimento de vingança. O evento acabou às 3h30 da manhã e eu saí andando para casa. Eu senti vontade de voltar andando para extravasar. Andando na rua, teve uma hora que eu não aguentei e chorei — não porque a Kamala Harris não ganhou, não é essa questão — era a constatação de que tinha chegado ao poder, de novo, da maior potência militar e econômica do mundo, um grupo que defende a retirada de direitos, a morte, o ataque contra a civilização cientifica. Esse era o grupo que tinha chegado ao poder.

OP - É possível traçar paralelos entre a diplomacia dos Estados Unidos e a do Brasil neste momento em que o mundo enfrenta crises simultâneas, como na Faixa de Gaza, e diante de tensões comerciais globais? Donald Trump representa um obstáculo para a diplomacia internacional?

Jamil - Temos que entender que estamos vivendo uma transição na ordem internacional. A ordem internacional criada em 1945 acabou, está encerrada. O problema é que a gente não sabe o que vem em seu lugar, e estamos neste período de transição. Nessa transição tem um país, no caso dos Estados Unidos, que não quer perder o seu lugar de hegemonia no século XXI.

Então, o que os EUA estão fazendo é, sem respeitar o direito nacional, as práticas diplomáticas, etc., tentar redesenhar o mundo para uma vez mais assumir como uma superpotência o resto deste século XXI. É um ato deliberado, estratégico por parte dos Estados Unidos. Não é uma loucura apenas, é também, mas não é só uma loucura, tem uma base e uma estratégia que é, mais uma vez, remodelar as regras internacionais.

Primeiro, qual é a nossa posição sobre isso? Nós não temos a capacidade de enfrentar os EUA de igual para igual, mas temos a possibilidade de não ceder, não sucumbir a uma tentativa de chantagem e de ataque à independência da soberania brasileira. Não é um exercício fácil, feridas poderão ser abertas, inclusive econômicas, com danos reais para economia brasileira. Mas o que está em jogo é muito mais do que a exportação de móveis de Santa Catarina, ou de castanha para os Estados Unidos. Está em jogo a redefinição da ordem internacional no século XXI.

A pergunta que nós, no Brasil, temos que nos fazer é: que país nós queremos ser no século XXI? Hoje a gente só quer garantir o superávit comercial do próximo mês daquele setor, porque é fácil. Aí você cede, autoriza e desautoriza o STF e retira as tarifas. Mas é isso que nós queremos? É esse o país que nós queremos no século XXI? Eu acho que não. Então é um momento complicado, é um momento de encruzilhada, mas é momento de perguntar que país nós queremos ser no século XXI.

DIPLOMACIA

OP - Lula tem adotado um discurso firme em defesa da soberania nacional nas negociações com Donald Trump. Isso tem sido suficiente? O Brasil está conseguindo equilibrar firmeza e pragmatismo nesse início de processo negociador?

Jamil - Ainda é muito cedo para a gente dizer qual o caminho que vai ser tomado nessa negociação. Tudo vai depender de quais vão ser os critérios que vão ser exigidos do Brasil para que essa negociação seja concluída. Por exemplo, na negociação que houve com a Argentina para que o governo americano emprestasse dinheiro, [a exigência] é que eles criassem um semi protetorado financeiro na Argentina. A Argentina sucumbiu em termos soberanos em troca de dinheiro americano. A gente vai também sucumbir nesse caso e vai em troca de uma retirada de tarifas para ceder, por exemplo, no controle das terras raras brasileiras. Então, tudo isso continua em jogo. Nós estamos só no começo e, sinceramente, é absolutamente prematuro prever qual vai ser o resultado dessa negociação. O fato dela existir já é positivo, mas nada garante que essa negociação seja concluída de uma forma, eu diria, satisfatória. Enfim, é ainda muito cedo.

OP - O senhor mencionou que a política de Donald Trump pode parecer caótica ou até “maluca”, mas há uma lógica estratégica por trás de suas ações. Como podemos desmistificar essa imagem do ex-presidente e compreender o propósito político e simbólico de seu discurso?

Jamil - Primeiro, precisamos tirar o ruído, a poluição, que vem com todas as frases dele. Ele fala coisas que se parecem — e são — absurdas, mas temos que ir além da fala dele, o que ela significa, que mensagem de fato ele manda e o que ele quer por trás disso. O que ele quer é reposicionar os Estados Unidos como a grande hegemonia do século XXI em todos os aspectos. Então, quando ele ataca um presidente, quando ele faz um gesto, está sempre pensando numa palavra absolutamente central: poder. Não poder dele nos Estados Unidos,[mas sim] poder dele no mundo. De que forma ele pode chantagear, criar um bullying, uma situação de bullying e fazer algum tipo de ofensiva que aquilo resulte em mais poder para os Estados Unidos naquela situação?

OP - O discurso de Donald Trump na ONU é estratégico para esse objetivo também, certo?

Jamil - Totalmente, é justamente a redefinição de quem são os americanos ou do que é o governo americano no mundo: um país que, nas últimas décadas, vive um processo de decadência e vê no resto do mundo alguns polos de uma ascendência muito forte, principalmente na China.

Hoje os americanos consideram a China como o maior desafio existencial da história dos Estados Unidos, maior inclusive do que a União Soviética foi na Guerra Fria. Então eles têm uma consciência muito grande de que essa talvez seja uma das últimas oportunidades que eles têm de se restabelecer como hegemonia, e para isso vale tudo mesmo. Começa por não existir Direito Internacional, nem tribunais internacionais, nem instituições internacionais, só interessa o poder deles. Por isso a questão com o Lula ainda vai ser muito complicada, porque Trump só vai agir se o interesse dele mesmo for atendido.

EXTREMA DIREITA

OP - Durante as eleições nos Estados Unidos, a extrema direita mostrou uma presença ruidosa e mobilizada. Já o campo progressista pareceu menos visível nesse embate. O que explica essa assimetria?

Jamil - Há um lado que não tem limites no que fala e nem na forma que usa instrumentos e armas, que acho que os progressistas não deveriam sequer usar. Então tem uma discrepância que já vem embutida nesse debate.

Alguns progressistas passam a usar esses instrumentos, mas eu acho, sinceramente, que esses instrumentos e principalmente a desinformação, nós não podemos dizer 'porque eles usam, nós também vamos usar'. Acho um passo muito complicado de ser utilizado. O que eu acho que falha de uma forma muito profunda na ala progressista, é garantir que não só a mensagem passe, mas que haja uma diferença palpável na vida das pessoas a partir daquelas ideias.

Ou seja, que a democracia vive com aquelas ideias, que a pessoa veja que existe uma diferença real a partir daquela da vida daquela pessoa com aquele grupo. É um desafio gigantesco, porque de um lado eles se autorizam a utilizar todos os instrumentos, inclusive da mentira, da desinformação e do ataque pessoal, do ódio. Do outro lado, se a gente fizer isso, sinceramente, eu acho que vai ser muito prejudicial.

OP - Como os democratas enxergam a extrema direita nos Estados Unidos hoje?

Jamil - Eles olham com uma espécie de ameaça sem dúvida nenhuma, mas também como um fenômeno passageiro, o que não é verdade. Pode ser passageiro, mas esse período é longo, há quem diga que ainda vai durar mais uma década, o movimento populista da extrema direita, até eventualmente começar a perder força. Então, os democratas apostaram que, por exemplo, o histórico era tão longo no primeiro mandato (de Donald Trump na presidência dos EUA) que não era possível que as pessoas votariam nele de novo. Apostaram que todos os escândalos que aconteceram durante a campanha seriam suficientes para derrubar. E nada disso foi porque, claro, por baixo disso tinha uma base muito mais importante, que era justamente o ressentimento de um enorme volume de americanos.

Essa linha também foi traçada aqui no Brasil, o Bolsonaro não foi reeleito, mas a gente vê que ele tem uma legião de apoiadores que fariam o que for possível para que ele volte ao poder. Essa linha de ‘não vamos prestar muita atenção neles porque eles são doidos, vai passar com o Bolsonaro preso, agora tá tudo certo’. Não, nem o julgamento do Bolsonaro é o fim da história, nem a prisão eventual do Bolsonaro é o fim da história. Nem uma nova eventual vitória do Lula na eleição é fim na história.

Não há como pensar que um movimento tão amplo e disseminado, com tanto dinheiro e ambição, morre da noite para o dia. Não é assim que acontece na política, muito menos em um movimento social, e eles têm que ser considerados como um movimento social. A pergunta é como desmobilizar aquele movimento social? Por isso que eu insisto, com mais democracia, com justamente a Justiça punindo quem viola a democracia, sem dúvida nenhuma, mas não basta só colocar aquelas pessoas na prisão, você vai precisar dar uma resposta para aqueles milhões de eleitores.

OP - Existe algum remédio para o extremismo, ou apenas estamos aprendendo a administrar essa radicalização?

Jamil - A resposta vem em três dimensões. Justiça, ou seja, punir todos os que de alguma forma cometem crimes contra a democracia, contra os direitos humanos, contra o outro, contra minorias. Ou seja, fazer com que a justiça de fato tenha respostas civilizatórias.

A segunda é o combate à desinformação. E nós, no jornalismo, temos um papel fundamental, porque nós somos um antídoto à desinformação. Mas eu vou além, não é só o jornalismo que é o combate à desinformação. Leis, regras precisam ser criadas justamente para que a desinformação seja crime, seja limitada, que ela não possa ser disseminada sobre o pretexto da liberdade de expressão.

E, finalmente: memória. É a gente sempre entender os processos políticos e sociais pelos quais a gente passa. Não estou falando só da memória da escravidão ou a memória do golpe em 1964. A memória constante do aprendizado do que são os vários movimentos políticos.

Por exemplo, na pandemia, a memória do que aconteceu com 700 mil brasileiros que morreram, aquilo ali faz parte de uma resposta mais global, de uma forma, se a gente pegar tudo isso em conjunto, é mais democracia, uma democracia mais eficiente, mais radical. E radical não significa quebrar vidros de concessionárias ou de bancos. Uma democracia radical significa um orçamento extraordinário para saúde e para educação. Esse é o radicalismo da democracia que pode, obviamente, desmobilizar esses extremismos.

JORNALISMO

OP - De jornalista para jornalista, como que o jornalismo profissional pode ainda se manter relevante nesse tempo de desinformação? E como que a gente consegue enxergar que realmente está fazendo a diferença.

Jamil - A gente precisa entender que nós temos um papel fundamental na defesa da democracia. E que esse papel não é um papel pré-eleição do próximo ano, não é uma questão partidária. A defesa da democracia é algo muito mais profundo. E se a gente entender que nós somos parte justamente da defesa da democracia, eu acho que nós temos a chance de sermos como um elemento fundamental nesta invenção de uma nova democracia. E nesse contexto, tem um elemento que vai exigir de todos nós, jornalistas, chefes, editores e donos dos jornais: coragem.

OP - Além de tudo, você ainda é otimista?

Jamil - Sim. Se pegarmos a linha da história de uma forma mais ampla, ela mostra um avanço importante em direitos fundamentais. Existem, claro, os movimentos de reação a isso e nós estamos nesse movimento de reação à expansão de direitos. Significa, obviamente, uma espécie de contra revolução, de uma tentativa de restringir e mais uma vez restabelecer a ordem da qual o homem branco é o líder da família.

Mas, no fundo, tem gente que até pensa isso. O que quero dizer é que meu otimismo vem do fato de que dentro de cada movimento de opressão, de repressão, de autoritarismo, surge uma força muito potente de ruptura em relação a isso. Então, acho que apesar das dificuldades, nós temos uma grande possibilidade, com instrumentos democráticos, de dar uma resposta para isso.

Profissão

Jornalista brasileiro, nascido em São Paulo em 29 de fevereiro de 1976, Jamil Chade é repórter e colunista, abordando temas da política externa e diplomacia mundial

Trabalho

Chade ocupa um escritório na sede da ONU em Genebra, cidade onde morou durante mais de duas décadas. Hoje, ele vive em Nova York com a família desde 2024

Livros

Publicou nove livros, quatro deles indicados para finalista do prêmio Jabuti. Na última premiação, Jamil foi indicado na categoria Biografia e Reportagem com o livro "O indomável: João Carlos Martins entre som e silêncio", publicado pela Editora Record

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