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Entrevista com a escritora moçambicana Paulina Chiziane
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Entrevista com a escritora moçambicana Paulina Chiziane

Primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, a escritora Paulina Chiziane questiona tabus, dá voz às mulheres silenciadas por tradições e religiões enquanto descortina, por meio da literatura, novas possibilidades sociais ao seu povo
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Paulina Chiziane rompeu o silêncio e quebrou tabus. A escritora foi, em 1990, a primeira mulher moçambicana a publicar um romance no país africano.

E, ao contrário das expectativas, não se valeu da escrita para falar sobre as idealizações relacionadas ao universo feminino. Por meio de seus personagens e de suas histórias ela questionou tradições, religiões e o papel social da mulher moçambicana. Provocou uma explosão de pensamentos e incitou novas questões. Ampliou visões.


Insurgente, Paulina Chiziane afirma que escreve de forma a “descolonizar” a cabeça do povo moçambicano, independente de Portugal há apenas quarenta anos.


Enquanto primeira mulher escritora ela foi e permanece sendo alvo de críticas dos setores sociais conservadores de Moçambique. Todavia, não se intimida nem se limita por essas posições contrárias.


Em 2003 venceu o Prêmio José Craveirinha, a comenda literária mais importante do país, com seu livro Niketche - Uma História de Poligamia.


Nesta obra ela questiona o sistema patriarcal que impera em Moçambique e coloca a mulher em lugar de destaque.


Aos 61 anos, sendo vinte deles dedicados à literatura, Paulina Chiziane tem nove livros publicados e revela-se cansada de produzir em “larga escala”.


Presença confirmada na programação da XII Bienal Internacional do Livro do Ceará, ela fará parte de debates sobre a força do feminino, o papel social da mulher e a presença dela na literatura.


Questionada sobre como classifica o trabalho que produz, Paulina Chiziane é categórica: “O que eu faço é guerra”.


O POVO - Como teve início a trajetória da senhora como escritora?

PAULINA - Não sei por que iniciei a escrever, nem quando. Escrever é algo que sempre fez parte de mim, desde muito pequena. Sempre que via um papel e um lápis lá estava eu a rabiscar, criando histórias. O primeiro texto que lembro de ter escrito foi uma redação sobre a Páscoa ainda na escola primária. Essa redação foi muito elogiada pela professora. Foi a partir dela que eu vi que era possível escrever e desde então continuei escrevendo. Escrevo porque escrever é minha vontade maior.

 

OP - A senhora nasceu em uma família cristã protestante. De que forma a religião e a fé a influenciaram como escritora?

PAULINA - A religião teve uma influência positiva e negativa sobre mim enquanto escritora e pessoa. Positiva porque me ensinou os valores universais. E negativa porque me mostrou uma visão distorcida do lugar da mulher. Para a religião, a mulher olha sempre para o outro, nunca para si. É sempre coadjuvante, nunca protagonista. A mulher na religião tem um lugar de silêncio. E eu não concordo com essa visão.

 

OP - Como o leitor moçambicano vê a literatura produzida por mulheres?

PAULINA - A primeira reação para comigo foi muito má. Porque ninguém acreditava que uma mulher pudesse escrever. Ou melhor, sabiam que uma mulher tinha capacidade para escrever, mas estavam à espera que eu escrevesse aquelas coisas bonitas, todas cor de rosa. Idealizações. Falar de amor, falar de criança. Então quando eu apareci, de uma forma ousada, houve muita resistência para receber o meu trabalho.

 

OP - Como a senhora se define enquanto escritora? Diria que é feminista?

PAULINA - Não me sinto nem feminista nem coisa nenhuma. Eu me sinto uma guerreira. O que eu faço é guerra. A partir do momento em que eu comecei a colocar determinados temas e pontos de vista em debate eu comecei a mostrar que as mulheres também se levantam. Mostrei que há muita mulher com muita capacidade, que são muito boas no que fazem, mas que tinham medo de escrever. E eu mostrei que escrever era possível. Então foi assim que eu comecei a fazer a minha guerra. Começou-se a se ver que há um grupo de pessoas silenciadas. E que essas pessoas podem se levantar e falar.

 

OP - A senhora foi a primeira moçambicana a escrever um romance, o livro Balada de Amor ao Vento, isso nos anos de 1990. Depois desse lançamento, como foi a abertura para que outras mulheres também escrevessem em Moçambique?

PAULINA - Agora muitas mulheres escreveram e escrevem em Moçambique. Sobretudo as mulheres mais jovens. Mas o problema é sempre o mesmo: elas começam muito jovens a escrever coisas muito bonitas e depois vem o casamento, vêm os filhos, e elas param, só retornando quando os filhos crescem. E aí começam um outro processo de construção enquanto escritoras. Mas há bastante mulheres escrevendo aqui e isso é muito animador.

 

OP - Seu livro mais famoso é Niketche - Uma História de Poligamia, uma história que aborda a quebra com uma sociedade patriarcal e de aprisionamento feminino. Como ele foi recebido em Moçambique?

PAULINA - O meu país é muito interessante. Em termos políticos, o partido no poder é todo pela libertação feminina, e o discurso do poder é um discurso libertário. Mas as tradições, as religiões, são aquelas que ainda querem manter a mulher numa posição muito má, de submissão. Foi por isso que preferi publicar esse livro primeiramente em Portugal e só depois trazê-lo a Moçambique. E isso gerou um efeito bom, porque o livro foi muito bem recebido em Lisboa. Em Portugal ele foi um best seller. Foi muito bem vendido e comentado. Então foi um livro que já chegou em Moçambique com uma boa crítica, e ninguém discutiu se era bom ou ruim. Foram ler. Essa foi uma estratégia que eu usei e funcionou para que o livro tivesse entrada no meu país. Mas mesmo assim houve algumas vozes contrárias. No entanto esse livro foi crescendo com o caminhar dos tempos, foi adaptado para o teatro, para a dança, para a pintura. É um livro que circula o mundo inteiro. Um livro explorado e bem comentado. E aí foi que outras mulheres tiveram coragem para também de começar a abordar essas questões sexuais e de lugar social nas suas conversas e posturas.

 

OP - Mas a senhora sempre fala em “descolonizar” a cabeça do povo moçambicano com sua literatura e começou a publicar um livro polêmico em Portugal, o colonizador de Moçambique. Isso não é contraditório?

PAULINA - É e não é. Não é porque nós temos que usar a melhor estratégia para termos visibilidade e aceitação quando lançamos um novo livro. Um país colonizado como Moçambique acredita mais naquilo que é aceito do lado de fora. A cabeça do povo é assim. Então isso foi uma questão estratégica mesmo. Porque eu sabia que se o livro fosse publicado em Moçambique primeiro seria sempre a mesma barreira, a mesma resistência e preconceito. Então eu fui primeiro para Lisboa. E foi assim que funcionou.

 

OP - A senhora enquanto mulher ainda sofre com algum tipo de opressão na literatura? Ainda encontra dificuldade de aceitação do seu trabalho?

PAULINA - Olha, eu estou a viver uma situação única neste momento. Eu escrevi um livro muito atrevido que coloca um curandeiro para analisar o Novo Testamento bíblico. O livro se chama Ngoma Yethu: O curandeiro e o Novo Testamento. O curandeiro aqui em Moçambique é o que no Brasil vocês chamam de pai e mãe de santo. Então eu fiz essa aventura. Eu coloquei uma mãe de santo a fazer uma comparação entre aquilo que é filosofia do mundo cultural africano e o novo testamento da Bíblia Sagrada. Esse trabalho é inédito, nunca foi feito em Moçambique. E ele assustou muito as pessoas. Segundo as análises comparativas que fizemos, a cultura africana está muito mais perto de Jesus Cristo do que aquilo que as religiões cristãs europeias ensinam e impõem. Então esse é um livro ousado, dentro de um tema ousado. E as igrejas estão muito zangadas comigo, sobretudo as igrejas cristãs evangélicas. Porque eu fui tocar no intocável. Mas a minha situação atualmente, apesar de tocar no que é polêmico, é uma situação de prestígio. Hoje em dia os que não gostam de mim não sabem mais lidar comigo e preferem ficar quietos. Fazem ataques indiretos, ataques mudos. Mas de minha parte estou muito feliz de provar ao mundo que a cultura africana está muito mais próxima de Jesus Cristo do que a cultura europeia. E o livro é um sucesso.

 

OP - Em fevereiro de 2012 a senhora passou uma semana internada em um hospital psiquiátrico e dessa experiência nasceu o livro Na Mão de Deus. A senhora não teve medo de, com esse livro, ser taxada de louca justamente por essas pessoas que a atacam continuamente?

PAULINA - Ora, mas eu estive em um hospital psiquiátrico, querida! (risos). Foi lá onde me inspirei. Eu tive uma crise psicótica. Em um dia que eu queria porque queria entregar um trabalho concluído a qualquer custo. E nesse dia minha cabeça pifou. Então eu fui pra psiquiatria. E lá eu descobri outro lado do mundo. Outra realidade. E pensei: eu vou fazer um livro. Contra tudo e contra todos que critiquem esse tema, eu preciso fazer esse registro. E eu fiz. Contra todas as correntes de pensamento contrárias. Na Mão de Deus é um livro inicial em que eu descobri que afinal de contas existe um mundo ainda por ser descoberto e escrito. Eu ousei. Mas pra que você entenda meu contexto social: esse é um livro que está aqui e é muito lido, é muito bem vendido, mas que ninguém fala sobre ele. Ninguém toca nos temas de crise e loucura. As pessoas têm medo. Porque pensam primeiro na igreja, nas tradições, aquelas coisas todas.

 

OP - A senhora está me dizendo que seu livro é muito lido, mas que ninguém fala sobre ele. Ainda assim acredita que a literatura é um transformador social, principalmente em prol dos direitos da mulher?

PAULINA - Eu não tenho nenhuma dúvida disso. Eu tenho muita certeza. A leitura modifica. Foi por meio dela que eu comecei a perceber o feminino e escrever a mulher de outra forma, um modo diferente do que a sociedade me impunha. E quando eu comecei a escrever sobre poligamia, primeiro foi austeridade, mas logo depois foi uma explosão. Foi por meio do Niketche - Uma História de Poligamia, que portas foram abertas. Viu-se a possibilidade do feminino e que é muito bom escrever sobre o feminino. Começou-se o debate. Agora do debate para mudança, disso eu já não sei. É mais delicado, realmente. Mas acho que é muito bom que as pessoas falem de realidades diferentes dentro de suas esferas pessoais. Para mim, sem dúvida nenhuma, a literatura é o espaço maior de negociação da identidade da mulher.

 

OP - As mulheres moçambicanas se identificam com a literatura que a senhora produz ou existe também uma resistência por parte delas?

PAULINA - Posso dizer que eu tive muita sorte. Porque o livro que eu escrevi, Niketche, é um livro tão agradável que as pessoas primeiro o leram, depois se divertiram, e, no fim, refletiram. As mulheres comuns, no geral, sentiram uma alegria infinita. Mas houve outras mulheres, que pertencem a determinados setores sociais, que se enfureceram, e começaram a procurar maus elementos nele. Eu estou a falar sobretudo do mundo religioso. São elas as maiores conservadoras. Mas para o restante das mulheres foi uma felicidade tamanha. Inclusive os homens leem e riem, acham interessante. Os homens também receberam muito bem o livro.

 

OP - Como é a realidade social entre homem e mulher em Moçambique? Existe algum silenciamento dos homens para com as mulheres?

PAULINA - O nosso país tem uma independência muito jovem, há apenas 40 anos que não somos colônia. É muito pouco na vida de um país. E as mudanças iniciais ainda estão acontecendo. Há uma diferença de comportamento dos homens que vivem nas cidades mais periféricas, no campo. Esses têm mais tendência para mudanças. Olhe bem, é uma tendência, não digo ainda nem que é uma mudança. Digo que lá eles têm uma tendência de enxergar as coisas de modo mais diferente. Já os homens das cidades grandes, mais tradicionais, são mais conservadores. E a sociedade mais tradicional é a que mantém esses estados de opressão. Mas vejo que nossa perspectiva é boa. Penso que haverá uma mudança estrutural. Mas é um processo. Aqui as coisas estão melhorando. A educação está melhorando. Os movimentos femininos estão avançando. Mas a mudança mesmo, grande, ainda não chegou.

 

OP - Quais são as autoras que influenciam a senhora na escrita?

PAULINA - Na literatura moçambicana, pela sua ousadia, eu destaco a (poetisa, jornalista e militante política) Noémia de Sousa (1926-2002). Ela foi ousada em desafiar o sistema naquela altura da história. Eu gosto muito dela. Na literatura portuguesa, pela sua beleza, pela estética, influencia-me muito a Florbela Espanca.

 

OP - A senhora destaca alguma autora brasileira?

PAULINA - A brasileira que, sem dúvida, nos últimos tempos tem estado a me influenciar é Clarice Lispector. Pela sua loucura. (risos). Eu admiro muito aquela forma inusitada de descrever o tempo-espaço. Gosto muito, muito, do trabalho dela.

 

OP - A senhora declarou em entrevistas recentes que deseja parar de escrever. Esse sentimento mudou?

PAULINA - Estou cansada. E às vezes é preciso controlar a opinião pública. Sabe por quê? Há pessoas que me julgam como se eu estivesse a tomar o lugar de alguém. E não percebem que estou no meu lugar, a trabalhar. E algumas vezes a minha presença se torna incômoda. E quando é assim eu digo: “Com licença, fique com o lugar. Bom trabalho”. Mas além disso estou cansada também, não há dúvida.

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OP - Esse cansaço sinaliza o fim da produção da senhora?

PAULINA - Não é propriamente o fim da produção. Mas é uma mudança que preciso imprimir a mim mesma. Já não consigo ficar tanto tempo no computador, canso muito depressa, a coluna já reclama. Então vou tentar descobrir qual a melhor maneira de continuar. Mas posso te afirmar que já não estou mais naquela luta de fazer grandes coisas. Vou fazendo agora o que me apetece fazer. E aos poucos. Eu quero sair dessa corrida de produção em grande escala. E também porque eu entendo que há gente nova que precisa desse espaço para se autoafirmar. Mas se me der na cabeça de que tem algo que precisa ser dito eu escrevo. Mas se não me der também não há cobrança. Quero ficar livre disso.

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OP - Como é a rotina de escrita da senhora? Produz textos todos os dias?

PAULINA - Não. Já fiz isso de escrever todos os dias, mas há muito tempo. Agora sou uma preguiçosa. Gosto de me sentar, ver a paisagem, conversar. E então, se me der de escrever alguma coisa, tomo umas notas, deixo por aí e pego outro dia. Já não faço guerra nem faço esforços. Vou fazendo o quanto posso.

 

OP - A senhora estará presente na programação da XII Bienal Internacional do Livro do Ceará para debates sobre o feminino. O que trará para esse evento?

PAULINA - Pra mim o Brasil representa uma escola. Uma escola de luta, de pensamento, de crescimento. Vocês no Brasil têm os problemas que têm e têm a vossa maneira de fazer a luta. Então eu venho mais pro Brasil pra buscar a força. Porque vocês me dão força e eu tenho que me abastecer disso. Eu vivo com a hostilidade no meu país. Já os europeus, mais especificamente em Portugal, sempre me receberam e me deram força. Mas no Brasil teve muito mais. O Brasil devolve-me a história de ser mulher e ser negra. A partir das vossas lutas comecei a perceber que mesmo estando na África, que sofreu escravidão e colonialismo, eu poderia fazer todo esse trabalho de desconstrução do modelo colonial feminino. E nesse aspecto vocês são muito fortes. Então eu vou levar a minha experiência, mas espero também aprender da mulher brasileira outras maneiras de fazer a luta, de fazer a escrita. Eu sinto a minha escrita muito mais próxima do povo brasileiro por causa das nossas ligações ancestrais.

 

Perfil

 

Moçambicana de Manjacaze, Paulina Chiziane iniciou sua carreira na literatura em 1984, quando começou a publicar contos na imprensa local. Durante a juventude foi militante da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), principal movimento de luta pela independência do país do domínio colonial de Portugal. Desligou-se da política para dedicar-se inteiramente à literatura, espaço onde coloca a mulher em evidência e reconstrói o contexto social moçambicano. Polêmica, é continuamente alvo de crítica dos setores sociais conservadores de Moçambique.


ESTANTE


Niketche - Uma história de poligamia

Publicado no Brasil em 2004 pela editora Companhia das Letras, o livro é uma sequência de histórias sobre o tema da poligamia. As mulheres protagonistas representam a pluralidade cultural de Moçambique enquanto o único protagonista masculino representa a Nação em sua totalidade.

 

Rami é o nome da primeira mulher de Tony. Após sucessivas ausências do marido, ela decide investigá-lo. Começa assim uma trajetória de descoberta do feminino dentro e para além da realidade moçambicana.

 

Veja cobertura do Vida&Arte na Bienal em: especiais.opovo.com.br/bienaldolivro

 

 

Serviço

 

Paulina Chiziane na XII Bienal Internacional do Livro do Ceará


Debate com o tema “Letra de Mulher, Novas Páginas - Áfricas e Mulheres: substantivos plurais”.

Mediação Vânia Vasconcelos

Quando: Terça-feira,
18, às 18 horas

Onde: -Centro de Eventos do Ceará - Sala 6 - Mezanino 2 (Av. Washington Soares, 999- Edson Queiroz)

Gratuito.

 

Diálogo sobre o tema “Mulheres, Literatura e Resistência”

Mediação Luana Antunes

Quando: Quarta-feira, 19, às 16 horas

Onde: Campus da Unilab, em Redenção
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