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Entrevista de Páginas Azuis com Sérgio Abranches
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Entrevista de Páginas Azuis com Sérgio Abranches

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O POVO – O que essa crise tem ensinado ao Brasil?

Sérgio Abranches – Eu costumo dizer que a política ficou atrasada, analógica, e a sociedade se digitalizou, avançou, mudou. E hoje há setores muito amplos da sociedade que não se sentem representados pelo sistema partidário existente. Isso está claro no mundo inteiro. As eleições na Alemanha e no Reino Unido estão mostrando isso com muita clareza. É algo que está se manifestando como uma crescente dificuldade de obter maiorias parlamentares. No Reino Unido, num espaço de uma década, houve dois parlamentos paralisados. A última vez que isso tinha acontecido foi na década de 1970.  Isso mostra como esse processo está avançando, de deslegitimação dos partidos e de descontentamento da população com a política. Na França, a mesma coisa, só que lá foi um passo adiante, provavelmente. Lá, os partidos tradicionais perderam fragorosamente e surgiu um candidato novo, com novas ideias, para mudar uma situação no país e fazer uma super-maioria. Na verdade, o eleitor repetiu a dose na França, mas, ao mesmo tempo, a gente vê uma taxa de abstenção recorde. Isso mostra que uma outra parte do eleitorado não está nem aí mais para o que acontece na política. Está cuidando da própria vida. A sociedade acaba empurrando as pessoas a viver por conta própria, e nisso há uma certa atitude de dar as costas pra política, de alienação, de desmobilização. No Brasil, nós temos oligarquias partidárias fortes, mas temos também um processo endêmico de corrupção. É o sistema partidário inteiro, da esquerda à direita, sobretudo nos dois partidos que têm se alternado no poder presidencial desde a Constituição de 1988, que é o PSDB e o PT. É a peemedebização geral do sistema partidário brasileiro, o que faz com que ele se torne ainda mais ilegítimo e a sociedade se sinta menos representada ainda do que nos outros países. O lado positivo disso é o fortalecimento das instituições de fiscalização e controle da própria política, num sistema que a gente chama de pesos e contrapesos. É um Judiciário mais forte, o Ministério Público independente, a Polícia Federal com capacidade de investigação. Isso produziu a revelação da corrupção. Agora, as oligarquias estão atacando esse sistema, mas é difícil porque a classe política está deslegitimada. No entanto, ainda pode atravancar o processo criando medidas que reduzam e controlem esse poder e essa autonomia das instituições de controle.

OP - Esse sistema político entrou em colapso, mas continua tentando impedir o avanço das investigações. É possível estancar a Operação Lava Jato?

Abranches – Olha, esse sistema vive uma crise de legitimidade que é terminal. Não acredito que qualquer um desses partidos consiga recuperar a sua reputação junto à população e portanto recuperar legitimidade política e social.  Mas, nesse período de transição, as instituições decadentes, as instituições que estão apodrecendo ainda retêm uma força desproporcional porque o novo ainda não surgiu. Na política isso é ainda mais dramático. Porque o novo ainda não surgiu e há muitas barreiras para o surgimento do novo. Eles ainda têm força política suficiente pra fazer muito estrago. Mas isso também depende daqueles que ainda estão dispostos a se acumpliciar com esse sistema partidário corrupto em nome de uma falsa noção de estabilidade e de continuidade ou em nome de reformas genéricas ou mesmo essas reformas que estão propostas. Principalmente no Judiciário. Há alguns ministros no Judiciário que já estão acumpliciados com esse sistema, com esse processo de combate à Lava Jato.

OP – O senhor fala do ministro Gilmar Mendes?

Abranches – Não vou personalizar, mas há uma minoria de ministros que se acumpliciou a essa tentativa de domesticar a Lava Jato, de colocar a operação num trilho que interesse a eles. Isso é pior ainda porque agudiza o conflito. Nós estamos falando da reação de parte de uma das oligarquias, ou seja, que deixa de lado a outra parte, o que só contribuiria pra mais instabilidade e mais polarização do sistema. O processo de punição tem que ser pra todos. Ninguém é forte demais, popular demais ou importante demais pra não ser punido se cometeu crime. Ou é isso ou livra a cara de todo mundo. Faz como na Itália, derruba o sistema.  Eu, particularmente, acho que nós estamos caminhando para outro lado, que é o de um conflito mais intenso no Judiciário, com resistência de uma parte dos ministros, e entre o Judiciário e o Executivo. Num curto prazo, acho que não temos perspectiva de não haver um agravamento dessa crise.

OP – A gente viu um reflexo dessa crise na decisão que absolveu a chapa Dilma/Temer no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Como o senhor avalia aquele julgamento?

Abranches – Esse julgamento desacreditou a Justiça Eleitoral. Mostrou que, se a gente quiser fazer uma democracia mais robusta e representativa, nós vamos ter que pensar seriamente em reformar a Justiça Eleitoral e até nos indagar se é realmente necessário ter Justiça Eleitoral no País. Foi uma decisão muito política, com pouca base jurídica e que violentou todos os princípios de igualdade e representação no processo. No fundo, as duas chapas que foram para o segundo turno de 2014 estavam financiadas com dinheiro ilegal, com propina. E isso é eleição para presidente da República num regime que é presidencialista. Então, é grave demais para o tribunal tomar uma decisão tão irresponsável.  Isso obviamente agravou a crise e tirou a credibilidade da Justiça Eleitoral. Ela já era morosa, já era leniente e complacente, e agora ficou claro que ela também está a serviço das oligarquias partidárias. Eu diria que foi uma decisão paradigmática, porque demonstra que essa Justiça que nós temos não tem servido pra muita coisa.

OP – O senhor fala sobre a dificuldade de construir maiorias no parlamento. Como ficará a capacidade de governar a partir de agora, com mensalão e Lava Jato? Como é possível construir maiorias, como o próximo presidente vai se relacionar com o Congresso?

Abranches – A gente tem que começar a pensar é em que condições nós vamos ter eleições em 2018. Nós temos hoje um presidente sem legitimidade e sem capacidade de articular boas decisões no Congresso. Na verdade, ele se tornou refém da sua coalização e passa boa parte do tempo fazendo concessões apenas pra se preservar no cargo, mantendo o foro privilegiado. Nós estamos exatamente onde nós estávamos meses antes do impeachment da Dilma, com um presidente sitiado no Palácio articulando exclusivamente a sua preservação. E, no meio disso, nós precisamos aprovar regras até setembro que deixem claro como serão as eleições em 2018. Como será o financiamento? Não vai ter financiamento de empresa. Tudo bem, e o financiamento individual? E o fundo partidário?

OP – Como o senhor acha que é o modelo ideal?

Abranches – Eu acho que a gente devia ter financiamento de empresa, mas com teto. A gente vem discutindo a reforma política de uma maneira completamente descolada da realidade. Porque, na verdade, não é um problema de quem paga a campanha, mas de quanto custa a campanha. Então, pra olhar a questão do financiamento de forma mais clara, a gente precisa olhar o formato da campanha. Esse horário de televisão enorme, gratuito, que requer produções caríssimas, com produtoras e marqueteiros se transformando em canais de corrupção. Pra pagar a produção, o candidato recorre a dinheiro ilegal. Evidentemente, há uma relação de causa e efeito entre o tipo de campanha que a gente tem e o tipo de financiamento. Mais do que isso: essa acaba sendo uma campanha mentirosa por definição, é uma campanha baseada exclusivamente nos artifícios da publicidade, da propaganda política. O candidato se expõe pouquíssimo ao eleitor, não vai mais pra rua, é o tempo todo dentro de um estúdio declamando coisas que os marqueteiros prescrevem e aparecendo pouco mesmo na televisão, com boa parte do tempo sendo ocupada por artistas profissionais, por gente que sabe fazer esse tipo de coisa, que é basicamente enganar a população. Eu acho que a gente precisa mudar radicalmente o tipo de campanha, fazer uma campanha mais europeia, na qual o candidato vai pra rua, vai conversar com o povo, vai se aproximar de novo da realidade e não ficar fazendo comício apenas em palcos estruturados pra câmera captar e levar pra televisão. Eu reduziria drasticamente o tempo de televisão e proibiria esses artifícios na propaganda. Com isso, a gente poderia ter um financiamento muito menor, com tetos de gastos muito claros e um sistema de contabilidade e auditoria em tempo real.

OP – Que outro ponto acha que precisa de revisão na reforma política?

Abranches – Outro aspecto que está me preocupando muito e que tem a ver com uma coisa que todos nós, e aí eu me incluo, caímos, que é essa visão unilateral do mundo. Foi o seguinte: como o Collor se elegeu num partido pequeno, era um cara desconhecido e acabou virando presidente – um péssimo presidente –, foi afastado, não conseguiu fazer coalizão etc., o que nós fizemos? Nós passamos a considerar que qualquer novo na política, qualquer cara que venha se apresentar sem nunca ter feito política antes – o que não era verdade em relação ao Collor, porque ele era filho e neto de políticos profissionais –, é chamado de aventureiro. E aí nós começamos a criar regras de distribuição de tempo de televisão, de distribuição do fundo partidário para bloquear esse chamado aventureiro. Ou seja, nós usamos o Collor como álibi para que as oligarquias criassem barreiras na entrada impedindo a renovação política brasileira, sobretudo na disputa pela presidência da República. Hoje, você não consegue que um Macron, por exemplo, se torne presidente da República no Brasil.

OP – O senhor fala de modelo, agenda, mas não se trata apenas disso. O Brasil tem de lidar com algo que é constitutivo do sistema, que é a corrupção. Como isso impede mudanças no País?

Abranches – É um problema de modelo e um problema de cultura, que é muito mais difícil de mudar.  Mudar comportamentos é um processo longo. Mas o passo mais importante é eliminar os incentivos para a corrupção. Quais são esses incentivos? A leniência, a complacência, a ausência de mecanismos autônomos e independentes de investigação, controle e punição. Esse arsenal cria um sistema que desencoraja e até atemoriza, o que reduz a corrupção. Corrupção não acaba em lugar nenhum. Os Estados Unidos têm uma revista que trata apenas de corrupção política, e são muitos casos, sempre. Mas, quando a gente olha, percebe que são casos isolados, não é sistêmico como aqui. Então, quando a gente fala de compromisso com uma agenda de qualidade, o primeiro ponto tem que ser não atrapalhar essas instituições, não querer domesticá-las e colocá-las a serviço do Executivo e do Legislativo porque, na hora em que elas caem, esse processo de combate à corrupção desmorona. Além disso, precisaríamos rever os tribunais de contas para que eles fiquem ainda mais profissionalizados, com mais técnicos e mais independente.  Mais transparente, mais aberto, mais digital, mais equipado, de tal forma que acompanhe as demandas em tempo real da sociedade. Esse sistema de desincentivos pelas instituições de controle é absolutamente fundamental. E ele deveria ser intocável, não no sentido de que ele possa fazer arbitrariedades, que o Ministério Público possa fazer qualquer coisa, ou os ministros do Judiciário possam qualquer coisa, ou a Polícia Federal. Não. Tudo dentro da lei. Agora, o devido processo legal no Brasil tem sido usado como arma de impunidade, quando ele é, na verdade, uma defesa das pessoas, uma proteção da sociedade.  Portanto, ele tem que servir à sociedade e não ao criminoso. Então, o que nós precisamos combater não é a corrupção em si, que é quase invisível, impalpável, mas a impunidade.

OP – O senhor disse que o sistema cria dificuldades para o novo, mas, por razões especiais, as eleições do ano que vem devem abrir oportunidade pra isso. Os dois maiores partidos do País vão chegar igualmente desgastados. Dentro disso, o senhor não acha que 2018 será uma chance talvez única pra que alguns nomes se apresentem como novidade?

Abranches – Olha, que eles vão se apresentar como novidade, sem dúvida alguma. Mas que sejam novidade de fato, eu tenho sérias dúvidas. Os que estão se colocando hoje como novidade são de uma velhice a toda prova. Bolsonaro é a coisa mais velha que o Brasil tem. O Doria não tem nada de novo.  Mas ambos terão tempo de televisão, e o problema é exatamente esse. As novas lideranças que poderiam promover um realinhamento partidário e apresentar novos caminhos para o Brasil não vão ter espaço na campanha, tampouco vão se tornar conhecidas, a não ser que haja uma tempestade perfeita a favor. Que é assim: surge uma liderança nova, de qualidade, que olha pra frente, pensando no futuro do Brasil, essa pessoa usa as redes porque vai ter barreira na entrada dos canais convencionais da política, viraliza e ganha. Isso pode acontecer. Porque o único canal de entrada do novo na política brasileira hoje é o digital.  É o cara – ou “a cara” – que explode na rede social e pode prescindir do programa gratuito de televisão. E aí fazer uma campanha digital. Mas, mesmo nesse caso, tem obstáculos importantes. A Justiça Eleitoral pode funcionar a favor das oligarquias. Houve um deputado que quis financiar toda a campanha dele por crowdfunding. E aí, quando ele começou a coletar, o Tribunal Superior Eleitoral proibiu. Ou seja, há dificuldade pra que um candidato ou candidata seja realmente inovador ou inovadora, pra que leve mudanças efetivas ao País e realinhe o sistema como o Macron fez na França...  E nem estou dizendo que Macron será revolucionário, pra mim ele está sendo até conservador. Mas, ele já fez o que tinha que fazer, que foi derrotar as grandes oligarquias partidárias que dominaram toda a V República francesa. No mínimo, ele está obrigando a uma reorganização geral do sistema partidário francês. Daí pra frente, nem é mais o papel dele. Essa é a diferença entre o revolucionador e o revolucionário, que é baseada numa análise do historiador e filósofo da ciência Thomas Kuhn. Ele fala que a revolução do Copérnico, por exemplo, não foi derivada do que ele falou ou do que ele fez, mas o que ele falou e o que ele descobriu produziram os revolucionários mais à frente.  Ele rompeu o dique de paradigmas conservadores da ciência, que, a partir dele, pode evoluir e abrigar novas ideias. Acho que Macron foi exatamente isso na França. Foi um revolucionador, ele abriu um caminho. Dá pra fazer. Então pode surgir uma nova esquerda, uma nova direita.

OP – O senhor acha que há espaço pro imprevisto nas eleições?

Abranches – Acho que há espaço para o imprevisto, para um revolucionador ou revolucionadora, que fique viral na rede e faça campanha assim.

OP – Desde 2013 houve uma explosão de demandas nas ruas e também alguma dificuldade de surgimento de lideranças que canalizem essas mudanças. Falta alguém que possa ajudar o País a dar esse salto?

Abranches – Há muito tempo nós não discutimos, nas eleições, projetos alternativos para o Brasil porque as campanhas não têm nenhuma qualidade substantiva. Sobre as demandas nas ruas, há duas dimensões diferentes. Uma dimensão tem a ver com uma coisa sobre a qual estou escrevendo agora, em um novo livro, que é a seguinte: há uma irritação, uma indignação e um descontentamento generalizado com a qualidade das coisas no Brasil. A qualidade da nossa escola, da nossa saúde pública, a qualidade das ruas, a qualidade das cidades. Quer dizer, o Brasil é um país que vem se desenvolvendo com baixa qualidade. Nós nos tornamos uma sociedade que tolera níveis cada vez mais baixos de qualidade, que vive adaptando a má qualidade das coisas. E todo o sistema é assim. Então, a maior parte das demandas das ruas é por mais qualidade. Eu quero ônibus melhor com tarifa mais baixa, posto de saúde funcionando, metrô melhor com tarifa mais baixa, e cada pessoa pede mais qualidade pra aquilo que está precisando na hora.

OP – É a escola “padrão Fifa”, um dos bordões de 2013.

Abranches – É, exatamente. Foi isso mesmo. E é uma demanda antiga. Na campanha do Collor, uma das coisas que ele falou e que foi bolada pelo marketing dele, dizia assim: vamos tirar as carroças da rua e colocar carros de verdade. Isso era a cara da classe média na época.  Era uma demanda com qualidade também. Vem de longe essa complacência brasileira com a baixa qualidade das coisas. O sucesso monumental do plano Real é que, pela primeira vez, nós tivemos um processo de estabilização com boa qualidade. O sucesso do Bolsa Família é porque era uma coisa que visava a qualidade, obrigava as crianças a estarem na escola, ainda que a escola fosse ruim. Há muito tempo que nós procuramos essa ideia de qualidade, esse padrão Fifa das coisas. Depois foi que se descobriu que o padrão Fifa não é tão Fifa assim (risos)... Essa é uma dimensão, que é a da qualidade. A outra dimensão é a dimensão de horizonte, de perspectiva. Aí é olhar pra frente. É quando um casal de classe média ou baixa renda olha hoje e pensa: que país o meu filho vai ter? Que oportunidades ele vai ter daqui a dez, 15 ou 20 anos? Como vai ser o futuro dele? Esse alongar do olhar é fundamental. E quem alonga esse olhar? Os intelectuais, os políticos, as lideranças e os empresários. E o que a gente faz hoje no Brasil? Todos só olhamos para a conjuntura. Os analistas só analisam a conjuntura, os economistas só pensam no crescimento do trimestre, o mercado financeiro só enxerga a rentabilidade do dia, os políticos só pensam neles. Ninguém pensa com horizontes mais amplos, ninguém pensa num Brasil onde muitos de nós não estará mais, mas é assim que a gente faz, a gente joga pra frente. Os únicos livros que li recentemente que têm essa ideia de projetar uma utopia, um projeto, falar das várias potencialidades do Brasil, mostrar o que temos de bom pra aproveitar pra gente construir uma sociedade melhor são o Trópicos utópicos, do Eduardo Giannetti, e História do futuro, da Míriam Leitão. São os dois únicos livros que tentam pensar pra frente, pensar pro futuro, e mostrar que o Brasil não é uma tragédia, tem futuro e pode ser um grande país. No meu livro, eu mostro que o tipo de transição do Brasil permite que a gente se torne uma potência no futuro, mas nossa elite intelectual é atrasada e não consegue o liderar o País nessa direção. E temos algumas coisas que nos prendem ao passado, que é a baixa educação, a falta de mecanismos adequados, públicos e privados, de desenvolvimento de pesquisa. Por outro lado, temos também vantagens estruturais que nos permitiriam ser um dos grandes vitoriosos dessa corrida de transição no século XXI. Nós poderíamos atravessar essa ponte e chegar ao outro lado dando exemplo de como é que se constrói uma boa sociedade. Eu me lembro de ter feito um projeto a pedido do PMDB, antes da Constituinte, pra mudanças preparatórias pra Constituinte, por iniciativa do Miguel Arraes. Ou seja, houve um momento em que a política brasileira pensava em projetos de longo prazo para o Brasil. Isso morreu. E morreu em grande medida por causa do tipo de campanha que nós temos. Porque você só faz isso quando pode discutir com o eleitorado. Se for pra vender candidato como quem vende refrigerante, não precisa discutir conteúdo. 

OP – Como o senhor interpreta o vazio das ruas hoje, sobretudo diante dessa escalada de denúncias envolvendo políticos e mesmo o presidente?

Abranches – Houve dois momentos nessas manifestações mais recentes. Um era protesto mesmo, coisa espontânea de quem ia pra rua. Isso aconteceu em vários países, com os indignados na Espanha, na praça Tahrir, no Egito. Em 2013 foi isso, com protestos articulados via redes sociais. As pessoas foram sem muita organização. Depois vieram as claques partidárias que polarizaram o País. E aí as manifestações deixaram de ser manifestações do povo, da classe média, e passaram a ser manifestações aparelhadas, com objetivos políticos específicos, todos de preservação de suas respectivas oligarquias. Essa manifestação aparelhada e agressiva expulsa o cidadão da rua.

OP – O “Fora, Dilma” foi isso?

Abranches – O “Fora, Dilma” foi o início desse aparelhamento pela direita e o movimento de defesa da Dilma foi o aparelhamento pela esquerda.

OP – Por que não há um “Fora, Temer” hoje?

Abranches – Porque o “Fora, Temer” desorganiza essa polarização. Quem queria tirar a Dilma também queria tirar o Temer. E quem queria manter a Dilma, hoje é contra o Temer. Ou seja, continuam ressentidos e polarizados, ainda que com uma agenda comum, não podem se juntar para ir juntos protestar contra o Temer. Na verdade, hoje o núcleo mais radical do petismo e o núcleo mais radical da direita são igualmente fascistas. São todos autoritários, intransigentes, intolerantes, e isso esvazia as ruas.

OP – O senhor vislumbra um desfecho a curto prazo pra essa crise?

Abranches – Essa crise é complexa. Ela tem dois momentos, dois estágios críticos: primeiro, o que a gente faz com o Temer? Um presidente isolado, sem legitimidade, que usa todas as armas que a Presidência lhe dá para se defender e com isso paralisa o País. O desfecho ideal seria o mais rápido possível: renúncia, impeachment ou autorização para processar no Supremo e uma condenação tão rápida para ele sair do jogo e a gente poder ter um governo que faça uma boa transição.

OP – Alguma dessas vias vai se efetivar?

Abranches – É difícil de prever. Nós temos um problema grave no Brasil que é essa coisa do impeachment. O que torna o impeachment complicado é o fato de que presidente da Câmara dos Deputados pode sentar em cima dele. E se ele pode sentar em cima, ele se torna uma arma de chantagem, como a Dilma diz que aconteceu com o Eduardo Cunha. Não parece ser o caso agora, até porque o Rodrigo Maia é uma linha auxiliar do Temer. Então, é um quadro com poucas variáveis positivas. Eu acho que um processo de impeachment hoje ainda seria difícil de passar na Câmara, mas daqui a duas semanas talvez passe. A autorização para investigar do mesmo jeito. Hoje a Câmara não autoriza, mas talvez daqui a duas semanas autorize. Tudo vai depender da maneira pela qual o Supremo vai reagir à denúncia do procurador-geral à corrupção do Temer. Mas o ideal seria que alguma dessas soluções acontecesse com rapidez. A renúncia é uma decisão de foro íntimo, mas ninguém é totalmente imune à pressão. Se houvesse uma pressão das lideranças políticas mais influentes para o Temer sair e deixar o país desembaraçado, não teria muita escapatória senão sair. Agora, nós temos a crise política em si que realmente passa por 2018. Como nós vamos fazer com que as eleições criem alguma alternativa de renovação política no País que permita que a gente tenha um governo que possa encaminhar reformas pra valer, não apenas pra atender o mercado financeiro, mas pra atender a necessidade de melhorar a qualidade das coisas no Brasil. Não é fazer corte, austeridade, mas mudar totalmente a estrutura orçamentária. O País vai ter que fazer uma avaliação se não é o caso de fazer uma nova Constituinte para que o Brasil vive mais governável, para que o presidente possa governar com uma coalização de 51% e não de 70% pra aprovar reformas. Isso é que vejo com mais dificuldade. Sou pessimista no curto prazo. Sou otimista com relação aos potenciais, mas as oligarquias ainda têm muita força ainda. E não vejo, entre os candidatos que não fazem parte dessa tríade PT-PSDB-PMDB, algum com visão realmente inovadora. Por outro lado, quem tinha ideias mais novas, que poderia mudar alguma coisa, que era a Marina Silva (Rede), ficou muito fora do debate, fora do jogo. E o Ciro Gomes (PDT), que poderia representar essa novidade, também está olhando muito pro retrovisor, não está apontando caminhos pro futuro nem pra possibilidades de renovação efetiva.

OP – Mas, feita essa ressalva, o senhor vê o Ciro com potencial?

Abranches – Acho que as eleições de 2018 vão ser muito mais abertas que as anteriores.  Nomes como Ciro, Marina, Doria, Bolsonaro, e outros que possam entrar, são candidatos competitivos. Acho que vão para o segundo turno candidatos com votação muito baixa. Vão ser uma eleição parecida com as eleições do Collor do que com as do FHC, Lula e Dilma, que foram para o segundo turno com mais de 30% dos votos. Vai ser mais pulverizado. E o segundo turno se torna de fato uma nova eleição, em que pode dar qualquer coisa. Ciro e Marina têm chances de chegar a disputar um segundo, mas o problema é o seguinte: vão disputar com que ideias? O Bolsonaro a gente já sabe, é voltar pro Brasil de 1964 ou o 1969 pós AI-5. Com o Ciro, pelo que ele tem declarado, é quase mais ou mesmo, só que com uma linguagem mais agressiva. E a Marina tem as ideias, mas ela não consegue ter o ímpeto pra levar a eleição até o final. Fica muito fragilizada com os ataques. E campanha é isso mesmo, é agressivo, não tem outro jeito. A gente tem poucas possibilidades de ter um desfecho, a partir de 2018, que aponte para aceleração de mudanças, pra saltos.

OP - Esse sistema político entrou em colapso, mas continua tentando impedir o avanço das investigações. É possível estancar a Operação Lava Jato?

Abranches – Olha, esse sistema vive uma crise de legitimidade que é terminal. Não acredito que qualquer um desses partidos consiga recuperar a sua reputação junto à população e portanto recuperar legitimidade política e social. Mas, nesse período de transição, as instituições decadentes, as instituições que estão apodrecendo ainda retêm uma força desproporcional porque o novo ainda não surgiu. Na política isso é ainda mais dramático. Porque o novo ainda não surgiu e há muitas barreiras para o surgimento do novo. Eles ainda têm força política suficiente pra fazer muito estrago. Mas isso também depende daqueles que ainda estão dispostos a se acumpliciar com esse sistema partidário corrupto em nome de uma falsa noção de estabilidade e de continuidade ou em nome de reformas genéricas ou mesmo essas reformas que estão propostas. Principalmente no Judiciário. Há alguns ministros no Judiciário que já estão acumpliciados com esse sistema, com esse processo de combate à Lava Jato.

OP – O senhor fala do ministro Gilmar Mendes?

Abranches – Não vou personalizar, mas há uma minoria de ministros que se acumpliciou a essa tentativa de domesticar a Lava Jato, de colocar a operação num trilho que interesse a eles. Isso é pior ainda porque agudiza o conflito. Nós estamos falando da reação de parte de uma das oligarquias, ou seja, que deixa de lado a outra parte, o que só contribuiria pra mais instabilidade e mais polarização do sistema. O processo de punição tem que ser pra todos. Ninguém é forte demais, popular demais ou importante demais pra não ser punido se cometeu crime. Ou é isso ou livra a cara de todo mundo. Faz como na Itália, derruba o sistema. Eu, particularmente, acho que nós estamos caminhando para outro lado, que é o de um conflito mais intenso no Judiciário, com resistência de uma parte dos ministros, e entre o Judiciário e o Executivo. Num curto prazo, acho que não temos perspectiva de não haver um agravamento dessa crise.

OP – A gente viu um reflexo dessa crise na decisão que absolveu a chapa Dilma/Temer no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Como o senhor avalia aquele julgamento?

Abranches – Esse julgamento desacreditou a Justiça Eleitoral. Mostrou que, se a gente quiser fazer uma democracia mais robusta e representativa, nós vamos ter que pensar seriamente em reformar a Justiça Eleitoral e até nos indagar se é realmente necessário ter Justiça Eleitoral no País. Foi uma decisão muito política, com pouca base jurídica e que violentou todos os princípios de igualdade e representação no processo. No fundo, as duas chapas que foram para o segundo turno de 2014 estavam financiadas com dinheiro ilegal, com propina. E isso é eleição para presidente da República num regime que é presidencialista. Então, é grave demais para o tribunal tomar uma decisão tão irresponsável. Isso obviamente agravou a crise e tirou a credibilidade da Justiça Eleitoral. Ela já era morosa, já era leniente e complacente, e agora ficou claro que ela também está a serviço das oligarquias partidárias. Eu diria que foi uma decisão paradigmática, porque demonstra que essa Justiça que nós temos não tem servido pra muita coisa.

OP – O senhor fala sobre a dificuldade de construir maiorias no parlamento. Como ficará a capacidade de governar a partir de agora, com mensalão e Lava Jato? Como é possível construir maiorias, como o próximo presidente vai se relacionar com o Congresso?

Abranches – A gente tem que começar a pensar é em que condições nós vamos ter eleições em 2018. Nós temos hoje um presidente sem legitimidade e sem capacidade de articular boas decisões no Congresso. Na verdade, ele se tornou refém da sua coalização e passa boa parte do tempo fazendo concessões apenas pra se preservar no cargo, mantendo o foro privilegiado. Nós estamos exatamente onde nós estávamos meses antes do impeachment da Dilma, com um presidente sitiado no Palácio articulando exclusivamente a sua preservação. E, no meio disso, nós precisamos aprovar regras até setembro que deixem claro como serão as eleições em 2018. Como será o financiamento? Não vai ter financiamento de empresa. Tudo bem, e o financiamento individual? E o fundo partidário?

OP – Como o senhor acha que é o modelo ideal?

Abranches – Eu acho que a gente devia ter financiamento de empresa, mas com teto. A gente vem discutindo a reforma política de uma maneira completamente descolada da realidade. Porque, na verdade, não é um problema de quem paga a campanha, mas de quanto custa a campanha. Então, pra olhar a questão do financiamento de forma mais clara, a gente precisa olhar o formato da campanha. Esse horário de televisão enorme, gratuito, que requer produções caríssimas, com produtoras e marqueteiros se transformando em canais de corrupção. Pra pagar a produção, o candidato recorre a dinheiro ilegal. Evidentemente, há uma relação de causa e efeito entre o tipo de campanha que a gente tem e o tipo de financiamento. Mais do que isso: essa acaba sendo uma campanha mentirosa por definição, é uma campanha baseada exclusivamente nos artifícios da publicidade, da propaganda política. O candidato se expõe pouquíssimo ao eleitor, não vai mais pra rua, é o tempo todo dentro de um estúdio declamando coisas que os marqueteiros prescrevem e aparecendo pouco mesmo na televisão, com boa parte do tempo sendo ocupada por artistas profissionais, por gente que sabe fazer esse tipo de coisa, que é basicamente enganar a população. Eu acho que a gente precisa mudar radicalmente o tipo de campanha, fazer uma campanha mais europeia, na qual o candidato vai pra rua, vai conversar com o povo, vai se aproximar de novo da realidade e não ficar fazendo comício apenas em palcos estruturados pra câmera captar e levar pra televisão. Eu reduziria drasticamente o tempo de televisão e proibiria esses artifícios na propaganda. Com isso, a gente poderia ter um financiamento muito menor, com tetos de gastos muito claros e um sistema de contabilidade e auditoria em tempo real.

OP – Que outro ponto acha que precisa de revisão na reforma política?

Abranches – Outro aspecto que está me preocupando muito e que tem a ver com uma coisa que todos nós, e aí eu me incluo, caímos, que é essa visão unilateral do mundo. Foi o seguinte: como o Collor se elegeu num partido pequeno, era um cara desconhecido e acabou virando presidente – um péssimo presidente –, foi afastado, não conseguiu fazer coalizão etc., o que nós fizemos? Nós passamos a considerar que qualquer novo na política, qualquer cara que venha se apresentar sem nunca ter feito política antes – o que não era verdade em relação ao Collor, porque ele era filho e neto de políticos profissionais –, é chamado de aventureiro. E aí nós começamos a criar regras de distribuição de tempo de televisão, de distribuição do fundo partidário para bloquear esse chamado aventureiro. Ou seja, nós usamos o Collor como álibi para que as oligarquias criassem barreiras na entrada impedindo a renovação política brasileira, sobretudo na disputa pela presidência da República. Hoje, você não consegue que um Macron, por exemplo, se torne presidente da República no Brasil.

OP – O senhor fala de modelo, agenda, mas não se trata apenas disso. O Brasil tem de lidar com algo que é constitutivo do sistema, que é a corrupção. Como isso impede mudanças no País?

Abranches – É um problema de modelo e um problema de cultura, que é muito mais difícil de mudar. Mudar comportamentos é um processo longo. Mas o passo mais importante é eliminar os incentivos para a corrupção. Quais são esses incentivos? A leniência, a complacência, a ausência de mecanismos autônomos e independentes de investigação, controle e punição. Esse arsenal cria um sistema que desencoraja e até atemoriza, o que reduz a corrupção. Corrupção não acaba em lugar nenhum. Os Estados Unidos têm uma revista que trata apenas de corrupção política, e são muitos casos, sempre. Mas, quando a gente olha, percebe que são casos isolados, não é sistêmico como aqui. Então, quando a gente fala de compromisso com uma agenda de qualidade, o primeiro ponto tem que ser não atrapalhar essas instituições, não querer domesticá-las e colocá-las a serviço do Executivo e do Legislativo porque, na hora em que elas caem, esse processo de combate à corrupção desmorona. Além disso, precisaríamos rever os tribunais de contas para que eles fiquem ainda mais profissionalizados, com mais técnicos e mais independente. Mais transparente, mais aberto, mais digital, mais equipado, de tal forma que acompanhe as demandas em tempo real da sociedade. Esse sistema de desincentivos pelas instituições de controle é absolutamente fundamental. E ele deveria ser intocável, não no sentido de que ele possa fazer arbitrariedades, que o Ministério Público possa fazer qualquer coisa, ou os ministros do Judiciário possam qualquer coisa, ou a Polícia Federal. Não. Tudo dentro da lei. Agora, o devido processo legal no Brasil tem sido usado como arma de impunidade, quando ele é, na verdade, uma defesa das pessoas, uma proteção da sociedade. Portanto, ele tem que servir à sociedade e não ao criminoso. Então, o que nós precisamos combater não é a corrupção em si, que é quase invisível, impalpável, mas a impunidade.

OP – O senhor disse que o sistema cria dificuldades para o novo, mas, por razões especiais, as eleições do ano que vem devem abrir oportunidade pra isso. Os dois maiores partidos do País vão chegar igualmente desgastados. Dentro disso, o senhor não acha que 2018 será uma chance talvez única pra que alguns nomes se apresentem como novidade?

Abranches – Olha, que eles vão se apresentar como novidade, sem dúvida alguma. Mas que sejam novidade de fato, eu tenho sérias dúvidas. Os que estão se colocando hoje como novidade são de uma velhice a toda prova. Bolsonaro é a coisa mais velha que o Brasil tem. O Doria não tem nada de novo. Mas ambos terão tempo de televisão, e o problema é exatamente esse. As novas lideranças que poderiam promover um realinhamento partidário e apresentar novos caminhos para o Brasil não vão ter espaço na campanha, tampouco vão se tornar conhecidas, a não ser que haja uma tempestade perfeita a favor. Que é assim: surge uma liderança nova, de qualidade, que olha pra frente, pensando no futuro do Brasil, essa pessoa usa as redes porque vai ter barreira na entrada dos canais convencionais da política, viraliza e ganha. Isso pode acontecer. Porque o único canal de entrada do novo na política brasileira hoje é o digital. É o cara – ou “a cara” – que explode na rede social e pode prescindir do programa gratuito de televisão. E aí fazer uma campanha digital. Mas, mesmo nesse caso, tem obstáculos importantes. A Justiça Eleitoral pode funcionar a favor das oligarquias. Houve um deputado que quis financiar toda a campanha dele por crowdfunding. E aí, quando ele começou a coletar, o Tribunal Superior Eleitoral proibiu. Ou seja, há dificuldade pra que um candidato ou candidata seja realmente inovador ou inovadora, pra que leve mudanças efetivas ao País e realinhe o sistema como o Macron fez na França... E nem estou dizendo que Macron será revolucionário, pra mim ele está sendo até conservador. Mas, ele já fez o que tinha que fazer, que foi derrotar as grandes oligarquias partidárias que dominaram toda a V República francesa. No mínimo, ele está obrigando a uma reorganização geral do sistema partidário francês. Daí pra frente, nem é mais o papel dele. Essa é a diferença entre o revolucionador e o revolucionário, que é baseada numa análise do historiador e filósofo da ciência Thomas Kuhn. Ele fala que a revolução do Copérnico, por exemplo, não foi derivada do que ele falou ou do que ele fez, mas o que ele falou e o que ele descobriu produziram os revolucionários mais à frente. Ele rompeu o dique de paradigmas conservadores da ciência, que, a partir dele, pode evoluir e abrigar novas ideias. Acho que Macron foi exatamente isso na França. Foi um revolucionador, ele abriu um caminho. Dá pra fazer. Então pode surgir uma nova esquerda, uma nova direita.

OP – O senhor acha que há espaço pro imprevisto nas eleições?

Abranches – Acho que há espaço para o imprevisto, para um revolucionador ou revolucionadora, que fique viral na rede e faça campanha assim.

OP – Desde 2013 houve uma explosão de demandas nas ruas e também alguma dificuldade de surgimento de lideranças que canalizem essas mudanças. Falta alguém que possa ajudar o País a dar esse salto?

Abranches – Há muito tempo nós não discutimos, nas eleições, projetos alternativos para o Brasil porque as campanhas não têm nenhuma qualidade substantiva. Sobre as demandas nas ruas, há duas dimensões diferentes. Uma dimensão tem a ver com uma coisa sobre a qual estou escrevendo agora, em um novo livro, que é a seguinte: há uma irritação, uma indignação e um descontentamento generalizado com a qualidade das coisas no Brasil. A qualidade da nossa escola, da nossa saúde pública, a qualidade das ruas, a qualidade das cidades. Quer dizer, o Brasil é um país que vem se desenvolvendo com baixa qualidade. Nós nos tornamos uma sociedade que tolera níveis cada vez mais baixos de qualidade, que vive adaptando a má qualidade das coisas. E todo o sistema é assim. Então, a maior parte das demandas das ruas é por mais qualidade. Eu quero ônibus melhor com tarifa mais baixa, posto de saúde funcionando, metrô melhor com tarifa mais baixa, e cada pessoa pede mais qualidade pra aquilo que está precisando na hora.

OP – É a escola “padrão Fifa”, um dos bordões de 2013.

Abranches – É, exatamente. Foi isso mesmo. E é uma demanda antiga. Na campanha do Collor, uma das coisas que ele falou e que foi bolada pelo marketing dele, dizia assim: vamos tirar as carroças da rua e colocar carros de verdade. Isso era a cara da classe média na época. Era uma demanda com qualidade também. Vem de longe essa complacência brasileira com a baixa qualidade das coisas. O sucesso monumental do plano Real é que, pela primeira vez, nós tivemos um processo de estabilização com boa qualidade. O sucesso do Bolsa Família é porque era uma coisa que visava a qualidade, obrigava as crianças a estarem na escola, ainda que a escola fosse ruim. Há muito tempo que nós procuramos essa ideia de qualidade, esse padrão Fifa das coisas. Depois foi que se descobriu que o padrão Fifa não é tão Fifa assim (risos)... Essa é uma dimensão, que é a da qualidade. A outra dimensão é a dimensão de horizonte, de perspectiva. Aí é olhar pra frente. É quando um casal de classe média ou baixa renda olha hoje e pensa: que país o meu filho vai ter? Que oportunidades ele vai ter daqui a dez, 15 ou 20 anos? Como vai ser o futuro dele? Esse alongar do olhar é fundamental. E quem alonga esse olhar? Os intelectuais, os políticos, as lideranças e os empresários. E o que a gente faz hoje no Brasil? Todos só olhamos para a conjuntura. Os analistas só analisam a conjuntura, os economistas só pensam no crescimento do trimestre, o mercado financeiro só enxerga a rentabilidade do dia, os políticos só pensam neles. Ninguém pensa com horizontes mais amplos, ninguém pensa num Brasil onde muitos de nós não estará mais, mas é assim que a gente faz, a gente joga pra frente. Os únicos livros que li recentemente que têm essa ideia de projetar uma utopia, um projeto, falar das várias potencialidades do Brasil, mostrar o que temos de bom pra aproveitar pra gente construir uma sociedade melhor são o Trópicos utópicos, do Eduardo Giannetti, e História do futuro, da Míriam Leitão. São os dois únicos livros que tentam pensar pra frente, pensar pro futuro, e mostrar que o Brasil não é uma tragédia, tem futuro e pode ser um grande país. No meu livro, eu mostro que o tipo de transição do Brasil permite que a gente se torne uma potência no futuro, mas nossa elite intelectual é atrasada e não consegue o liderar o País nessa direção. E temos algumas coisas que nos prendem ao passado, que é a baixa educação, a falta de mecanismos adequados, públicos e privados, de desenvolvimento de pesquisa. Por outro lado, temos também vantagens estruturais que nos permitiriam ser um dos grandes vitoriosos dessa corrida de transição no século XXI. Nós poderíamos atravessar essa ponte e chegar ao outro lado dando exemplo de como é que se constrói uma boa sociedade. Eu me lembro de ter feito um projeto a pedido do PMDB, antes da Constituinte, pra mudanças preparatórias pra Constituinte, por iniciativa do Miguel Arraes. Ou seja, houve um momento em que a política brasileira pensava em projetos de longo prazo para o Brasil. Isso morreu. E morreu em grande medida por causa do tipo de campanha que nós temos. Porque você só faz isso quando pode discutir com o eleitorado. Se for pra vender candidato como quem vende refrigerante, não precisa discutir conteúdo.

OP – Como o senhor interpreta o vazio das ruas hoje, sobretudo diante dessa escalada de denúncias envolvendo políticos e mesmo o presidente?

Abranches – Houve dois momentos nessas manifestações mais recentes. Um era protesto mesmo, coisa espontânea de quem ia pra rua. Isso aconteceu em vários países, com os indignados na Espanha, na praça Tahrir, no Egito. Em 2013 foi isso, com protestos articulados via redes sociais. As pessoas foram sem muita organização. Depois vieram as claques partidárias que polarizaram o País. E aí as manifestações deixaram de ser manifestações do povo, da classe média, e passaram a ser manifestações aparelhadas, com objetivos políticos específicos, todos de preservação de suas respectivas oligarquias. Essa manifestação aparelhada e agressiva expulsa o cidadão da rua.

OP – O “Fora, Dilma” foi isso?

Abranches – O “Fora, Dilma” foi o início desse aparelhamento pela direita e o movimento de defesa da Dilma foi o aparelhamento pela esquerda.

OP – Por que não há um “Fora, Temer” hoje?

Abranches – Porque o “Fora, Temer” desorganiza essa polarização. Quem queria tirar a Dilma também queria tirar o Temer. E quem queria manter a Dilma, hoje é contra o Temer. Ou seja, continuam ressentidos e polarizados, ainda que com uma agenda comum, não podem se juntar para ir juntos protestar contra o Temer. Na verdade, hoje o núcleo mais radical do petismo e o núcleo mais radical da direita são igualmente fascistas. São todos autoritários, intransigentes, intolerantes, e isso esvazia as ruas.

OP – O senhor vislumbra um desfecho a curto prazo pra essa crise?

Abranches – Essa crise é complexa. Ela tem dois momentos, dois estágios críticos: primeiro, o que a gente faz com o Temer? Um presidente isolado, sem legitimidade, que usa todas as armas que a Presidência lhe dá para se defender e com isso paralisa o País. O desfecho ideal seria o mais rápido possível: renúncia, impeachment ou autorização para processar no Supremo e uma condenação tão rápida para ele sair do jogo e a gente poder ter um governo que faça uma boa transição.

OP – Alguma dessas vias vai se efetivar?

Abranches – É difícil de prever. Nós temos um problema grave no Brasil que é essa coisa do impeachment. O que torna o impeachment complicado é o fato de que presidente da Câmara dos Deputados pode sentar em cima dele. E se ele pode sentar em cima, ele se torna uma arma de chantagem, como a Dilma diz que aconteceu com o Eduardo Cunha. Não parece ser o caso agora, até porque o Rodrigo Maia é uma linha auxiliar do Temer. Então, é um quadro com poucas variáveis positivas. Eu acho que um processo de impeachment hoje ainda seria difícil de passar na Câmara, mas daqui a duas semanas talvez passe. A autorização para investigar do mesmo jeito. Hoje a Câmara não autoriza, mas talvez daqui a duas semanas autorize. Tudo vai depender da maneira pela qual o Supremo vai reagir à denúncia do procurador-geral à corrupção do Temer. Mas o ideal seria que alguma dessas soluções acontecesse com rapidez. A renúncia é uma decisão de foro íntimo, mas ninguém é totalmente imune à pressão. Se houvesse uma pressão das lideranças políticas mais influentes para o Temer sair e deixar o país desembaraçado, não teria muita escapatória senão sair. Agora, nós temos a crise política em si que realmente passa por 2018. Como nós vamos fazer com que as eleições criem alguma alternativa de renovação política no País que permita que a gente tenha um governo que possa encaminhar reformas pra valer, não apenas pra atender o mercado financeiro, mas pra atender a necessidade de melhorar a qualidade das coisas no Brasil. Não é fazer corte, austeridade, mas mudar totalmente a estrutura orçamentária. O País vai ter que fazer uma avaliação se não é o caso de fazer uma nova Constituinte para que o Brasil vive mais governável, para que o presidente possa governar com uma coalização de 51% e não de 70% pra aprovar reformas. Isso é que vejo com mais dificuldade. Sou pessimista no curto prazo. Sou otimista com relação aos potenciais, mas as oligarquias ainda têm muita força ainda. E não vejo, entre os candidatos que não fazem parte dessa tríade PT-PSDB-PMDB, algum com visão realmente inovadora. Por outro lado, quem tinha ideias mais novas, que poderia mudar alguma coisa, que era a Marina Silva (Rede), ficou muito fora do debate, fora do jogo. E o Ciro Gomes (PDT), que poderia representar essa novidade, também está olhando muito pro retrovisor, não está apontando caminhos pro futuro nem pra possibilidades de renovação efetiva.

OP – Mas, feita essa ressalva, o senhor vê o Ciro com potencial?

Abranches – Acho que as eleições de 2018 vão ser muito mais abertas que as anteriores. Nomes como Ciro, Marina, Doria, Bolsonaro, e outros que possam entrar, são candidatos competitivos. Acho que vão para o segundo turno candidatos com votação muito baixa. Vão ser uma eleição parecida com as eleições do Collor do que com as do FHC, Lula e Dilma, que foram para o segundo turno com mais de 30% dos votos. Vai ser mais pulverizado. E o segundo turno se torna de fato uma nova eleição, em que pode dar qualquer coisa. Ciro e Marina têm chances de chegar a disputar um segundo, mas o problema é o seguinte: vão disputar com que ideias? O Bolsonaro a gente já sabe, é voltar pro Brasil de 1964 ou o 1969 pós AI-5. Com o Ciro, pelo que ele tem declarado, é quase mais ou mesmo, só que com uma linguagem mais agressiva. E a Marina tem as ideias, mas ela não consegue ter o ímpeto pra levar a eleição até o final. Fica muito fragilizada com os ataques. E campanha é isso mesmo, é agressivo, não tem outro jeito. A gente tem poucas possibilidades de ter um desfecho, a partir de 2018, que aponte para aceleração de mudanças, pra saltos.

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