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Vladimir Safatle, o filósofo para quem não haverá eleição em 2018
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Vladimir Safatle, o filósofo para quem não haverá eleição em 2018

É impossível, para o professor da USP, que a normalidade democrática volte depois de um governo reprovado por 93% da população. Segundo ele, país vive espécie de guerra civil
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Ativista político e livre-docente da Universidade de São Paulo (USP), Vladimir Safatle tem uma tese polêmica sobre o futuro da democracia brasileira: Não haverá eleição presidencial em 2018. Para o filósofo, uma das mais ativas cabeças-pensantes da esquerda brasileira, a não ocorrência de uma eleição livre e justa no próximo ano pode ocorrer de várias formas e é mais que uma possibilidade - é fato consumado. De passagem por Fortaleza no último mês, onde participou do seminário Futura Trends 2017, Safatle interrompeu agenda corrida na Capital por cerca de meia hora e conversou com O POVO sobre o futuro da democracia, dos partidos e da esquerda brasileira. Confira os trechos principais.

O POVO - O senhor tem alertado que o Brasil não terá eleições presidenciais em 2018. Por quê?

SAFATLE - Não haverá 2018. Primeiro porque não há como o país voltar a uma normalidade política depois de ficar dois anos na mão de um presidente que é reprovado por mais de 90% da população, um Congresso Nacional indiciado e profundamente oligárquico e um Judiciário contraditório. A cada dia fica mais claro isso, que o País vive uma espécie de guerra civil entre quem tomou o controle do Estado brasileiro e a população. Essa hipótese hoje tem várias formas de tomar prática. A primeira é uma eleição comprometida, uma eleição “bielorrusa” onde você impede de concorrer todos os candidatos que têm chance de ganhar e que não fazem parte do núcleo hegemônico do poder atual. De outro lado você tem a velha opção do parlamentarismo, que é o sonho de consumo das oligarquias locais, eliminando a eleição presidencial de vez. E é importante que o brasileiro não se confunda, nós não temos o parlamento sueco. O nosso parlamento, pelo contrário, foi sempre caixa de ressonância de oligarquias, com seus interesses próprios. E, por fim, não se dá para descartar hoje uma guinada mais explicitamente autoritária. O que não pode ser descartado em nenhum momento.

OP - O senhor tem associado essa tese à necessidade de negação aos modelos de governabilidade em vigência do País. Por quê e como isso afeta nas urnas?

SAFATLE - Em primeiro lugar, qualquer eleição agora vai ter uma volatilidade muito grande, você vai ter votos voláteis, onde você pode mudar de uma maneira muito forte para um lado ou para o outro. Você tem ainda uma casta política que conseguiu estabelecer um processo de bloqueio da constituição de novos atores políticos. Então você participar de uma eleição aqui no Brasil é algo extremamente complicado, porque os partidos constituem uma “partidocracia” fechada. Você não consegue escapar dessa situação, por exemplo, quando uma candidatura independente fica totalmente de fora do processo. Então você tem um sistema apodrecido, no entanto blindando, e uma população que demonstra muito claramente que não tem nenhuma adesão à classe política que a representou até agora. E uma população que, no entanto, é cada vez mais alijada do processo. Um país governado por alguém que tem 93% de reprovação, isso não existe. Que tipo de democracia é essa? Quem que eles estão representando? Por exemplo, o Congresso Nacional aprovou agora uma reforma trabalhista. Segundo as mais moderadas pesquisas, 73% da população brasileira era contra a reforma. Quem esses congressistas representam então?
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OP - Isso teria relação com a atual “febre” de candidatos gestores, que se declaram outsiders da política? Como no caso mais famoso, do prefeito João Doria?

SAFATLE - Eu acho que isso é um pouco um balão de ensaio insuflado. Não é algo que você possa dizer que é um processo que está naturalmente se consolidando. Acho que tem duas coisas muito interessantes aí. A primeira delas é a percepção de que todos os personagens saem da comunicação de massa. Em um universo de esgotamento da classe política, qual a classe que parece mais afeita a tomar esse espaço? Quando a classe política vai demonstrando a sua falta de legitimidade, a classe que vai ocupando o lugar é a classe ligada à comunicação de massa. Isso aconteceu na Itália com o Berlusconi, e é sempre bom lembrar quem é o Donald Trump. Donald Trump é um apresentador de televisão, era assim que ele era conhecido pela população norte-americana. É o sujeito que apresentava o Aprendiz lá, o “you’re fired”, né, aquele programa em que a pessoa é demitida, que teve até uma versão no Brasil, que era o João Doria que fazia. Doria não era um desconhecido. Ele era o cara que você chegava em casa depois de um dia cansativo de trabalho, ligava a TV e ele tava lá. Então é claro: Nesse tipo de vazio, como as pessoas reagem? Elas pensam “não é possível que esse sujeito seja ruim, eu vejo ele todo dia. Ele tá lá, é simpático, ele fala, e mais, ele venceu, soube se adaptar muito bem, virou uma celebridade”. Então, acho que a tendência nesse momento é que essas pessoas acabem sendo integradas dentro do processo político.

OP - E quais os efeitos?

SAFATLE - É algo de catastrófico para a democracia. Por duas razões: São pessoas que organizam seu modo de existência política a partir daquilo que elas aprenderam no interior do campo da mídia, que quer visibilidade e presença constante. O que não significa nada ligado, de fato, a alguma coisa que você poderia chamar de gestão, ou até mesmo de política. Significa um jogo do espetáculo, uma presença midiática constante e uma mobilização de afetos constante. Independente das consequências reais do que você faz. Quando você fala do Doria, eu estava vendo uma pesquisa que mostra que o Doria é, entre os prefeitos de São Paulo, o que menos apresentou projetos nos primeiros cem dias em trinta e dois anos. Trinta e dois anos... Eu me pergunto que tipo de padrão de gestão é esse, a não ser a gestão da própria imagem. Então você tem essa degradação do campo político de maneira muito evidente. Outro problema é que você tem esse tipo de personalidade que, por não saber como lidar com os conflitos sociais, porque não tem nenhuma ideia do que seria mediar conflito social, o que seria de fato compreender a complexidade de interesses, a tendência é você ter ações extremamente autoritárias. Então, nesse sentido, eu diria que esse é um eixo forte da degradação da democracia. Se nós admitirmos um cenário mundial de democracia liberal degradada, até porque você não tem mais a democracia liberal funcionando como antes, isso acabou, mas também não tem um sistema mais aprofundado, é nesse campo que aparece esse tipo de personagem.

OP - Outra coisa que se comenta é do crescimento da direita nas ruas, que passou a levar milhões a protestos para defender suas pautas, enquanto a esquerda teria perdido a capacidade de agregar as massas...

SAFATLE - Disso eu tenho muitas dúvidas, por três razões. A primeira delas: Mobilizações fortes, como por exemplo contra a reforma trabalhista, ocorreram sim, inclusive como há muito tempo não se via no País. Você teve 35 milhões de pessoas em greve. A última greve-geral tinha ocorrido há 35 anos. Agora, você tem que ver, o quanto disso de fato ressoa? Aí é outra coisa. Quem controla o processo de ressonância dos acontecimentos? Por exemplo, em São Paulo a gente teve uma manifestação completamente espontânea que colocou 100 mil pessoas na Avenida Paulista, e se você procurar um pouco como isso foi tratado no dia seguinte, foi como se fosse nada. Então tem isso, sem contar que boa parte das manifestações conservadoras do Brasil contaram com a ajuda da contabilidade criativa da Polícia Militar, que falava em 500 mil pessoas na Paulista, sendo que até mesmo a Folha de S. Paulo falou que não dava para se colocar 500 mil pessoas ali. Literalmente, se juntar uma a uma não chega a tanto. Ou seja, há de se entender que há um tipo de distorção de opinião pública a se levar em conta. A segunda preocupação é de que não há mais manifestações, entre outras coisas, porque a gente tem um governo que atira em manifestante. Você tem um governo que, dependendo da manifestação em que você tá, você sabe que vai levar bomba de gás lacrimogêneo, você pode levar tiro, como aconteceu em Brasília, e nada vai acontecer. Então isso é outra realidade, não há uma situação neutra em que a gente possa falar “vamos ver quem coloca mais gente na rua”. É uma situação em que você sabe que, se você for para rua em uma manifestação de um lado, você vai tirar selfie com a polícia, o governo vai abrir as catracas do metrô para você, você vai circular sem nenhum problema e vai ter uma belíssima tarde de domingo. Agora, se você for para o outro lado, a situação é exatamente a oposta. Você pode inclusive ser fichado, preso, voltar para casa chorando porque levou bomba de gás. Então, têm esses elementos. E também tem um outro elemento, que aí entraria na esquerda, que é um campo de decomposição. Você já não tem um processo de incorporação, de aglutinação de um corpo político unificado. Você tem muitas manifestações fragmentadas, que não entram em constelação. Não há discurso de campo comum, e isso retira muito da energia, é uma energia muito dispersa.
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OP - O ex-presidente Lula é uma alternativa para isso?

SAFATLE - Eu insistiria que não. Não é alternativa nenhuma por uma razão muito simples, porque ele representou mais uma vez um modelo de conciliação que foi o auge do modelo político da Nova República. Se você pensar bem, o Lula conseguiu transpor para o governo dele todos os conflitos sociais, que se transformaram em posições no governo dele. Por exemplo, o conflito entre economistas neodesenvolvimentistas e ortodoxos virou um conflito entre Banco Central e Ministério do Planejamento. Entre o agronegócio e defensores do Meio Ambiente, virou um conflito entre Ministério da Agricultura e Ministério do Meio Ambiente. Entre defensores dos Direitos Humanos e as Forças Armadas, virou conflito entre Ministério da Defesa e Ministério dos Direitos Humanos. Todos tinham seu espaço no Estado e o Lula fazia o papel de mediador universal. Ele esperava o conflito explodir, via quem ganhava, dava uma compensação simbólica para o derrotado e prometia, para o futuro, que a correlação de forças mudaria e o processo seria desenvolvido de outra forma. É claro que isso produz uma frustração toda, é um processo que não tem como durar muito tempo. E o problema é esse, que o governo dele durou muito tempo. Durou o tempo da expressão da sua própria impotência. Então por que você vai querer isso de novo? Você vai aplicar o mesmo modelo? Mais uma vez? Esses modelos de grande coalizão, que no fundo é o lugar natural da degradação da política brasileira, desde Getúlio Vargas. Getúlio dizia “meu problema não são meus inimigos, são meus aliados”, porque ele já seguia esse modelo. Então é um lugar natural de uma política de impasse, de paralisia, de gestão de inércia. A gente vai precisar de alguém para gerir a inércia mais uma vez?

OP - Essa inércia teve relação com o fim do período de governos petistas no País?

SAFATLE - O País já estava na inércia desde 2012, por isso que em 2013 explodiu e ninguém queria ouvir mais. Se você pegar o número de greves em 2013, você tem um crescimento exponencial. Em 2013 nós tivemos duas mil greves no ano. Ou seja, as pessoas tinham consciência de que tinham entrado em um processo de ascensão social e esse processo tinha travado. Ele não tava mais andando. Se você pegar os empregos que foram produzidos no lulismo e no início do governo Dilma, 93% de todos eles pagavam até um salário mínimo e meio. Ou seja, eram empregos precários. Claro que para quem sai de baixo, ganhar isso é um avanço. Mas quando se avança, você cria novas necessidades também, e se você continuar parado, o grau de frustração vai ser brutal. Se pela primeira vez você entra em ascensão, você começa a projetar um futuro diferente, coisa que você nunca fez. Mas aí em algum momento você percebe que essa projeção não bate com a realidade, porque você não tem mais impulso para ir mais para frente. Então acontece o que nós chamamos na filosofia de frustração relativa. Ou seja, você fica frustrado não em relação ao que você tinha, mas sim com o que você poderia ter tido. É o que aconteceu no Brasil. O modelo que foi implantado tinha vida curta, não podia durar todo esse tempo. Ele precisava de um novo modelo, o que não aconteceu, e hoje você não vê nenhuma declaração do ex-presidente Lula de que ele de fato vai querer aprofundar modelo. Muito pelo contrário. Então me pergunto: O que ele poderia fazer?

OP - Qual então a alternativa concreta que o campo da esquerda pode oferecer ao País?

SAFATLE - Bem, em primeiro lugar 2018 já se perdeu. Se você organiza a política pensando assim, a política se desagrega, se degrada em sofismaria quando ela é fixada no próximo passo. Quando você pensa “qual o próximo passo”, você pode ter certeza que já começou a se desagregar, porque você precisa de um horizonte que te empurre muito mais para frente, e esse horizonte não existe mais. A esquerda brasileira não fornece à população mais uma clareza sobre o que de fato ela quer. O que a gente quer agora? Há algum modelo para oferecer? Ou é mais ou menos esse mesmo? Porque se for para operar nesse, é melhor deixar os operadores de sempre, senão você só vai operar mal. Você cria conflito, cria confusão, não consegue garantir governabilidade, blabla. Vai tentar operar nesse eixo? Foram treze anos de governo, quais foram as mudanças da política brasileira? Agora se fala que precisamos de reforma política. Ora, sabíamos que precisamos de reforma política desde 1988. Você tinha um processo de baixa penetração popular, um congresso que tem capacidade de se fechar quando confrontado, que conserva oligarquias. No Brasil inteiro você vê isso, o que é o tucanato em São Paulo? É uma grande oligarquia, até familiar, você tem Covas I, II, III. Então o que a esquerda tem a oferecer? Uma mudança no sistema eleitoral? Modificar tempo de TV para senador, é isso? Há certos momentos que a imaginação política precisa abrir caminho e, ao abrir caminho, ela produz novos atores. Há muitos atores potenciais que podem ser produzidos, mas para isso é necessário que aqueles que não tem mais o que oferecer saiam. E isso é uma coisa inacreditável no Brasil, é uma coisa que é realmente difícil de entender. Em qualquer democracia liberal do mundo, você vê, por exemplo, o Partido trabalhista britânico, se ele perde uma eleição, ele troca o chefe, o diretor sai e aparece outro. No partido conservador é a mesma coisa: Você perde uma eleição, um comando sai e outro toma o lugar. Isso é impossível acontecer em um partido brasileiro. Você perde, mas continua o mesmo, e aí você tem gente que é presidente do mesmo partido há trinta anos. Roberto Freire comanda o PPS desde que era o PCB, isso não é possível. Que democracia é essa? É um clube fechado. Os partidos brasileiros são um exemplo mundial de degradação política, e isso vale para todos os partidos daqui, todos. A esquerda tem problemas gravíssimos de centralismo, de dirigismo, de hierarquia, de não conseguir criar estruturas realmente horizontais. No mundo todo você tem uma consciência de que esse modelo se esgotou. Mesmo as agremiações que aparecem para disputar elas tendem nem sequer a serem chamadas de partido. É uma mudança meramente de nome, mas você vai criando também modelos de agremiação que vão substituindo os partidos. O Podemos, da Espanha, não é exatamente um partido. Tudo tem que ser decidido em Assembleia aberta, candidatos e programas. Você tem uma reinvenção da estrutura política que está em marcha, onde a forma partido tende a desaparecer. Só que o Brasil tem uma capacidade brutal de funcionar como ostra. O processo tá degradado, você segura. É o modelo CBF: Tá degradado? Segura.

 

PERFIL

Nascido em Santiago do Chile em 1973, Vladimir Safatle migrou para o Brasil com poucos meses de vida. Os pais, ambos integrantes de movimentos socialistas chilenos, deixaram o País com a ascensão da ditadura de Augusto Pinochet. Desde 2003, Safatle é professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, além de professor convidado em outras universidades e instituições estrangeiras. Professor, filósofo e compositor, é também militante político ativo, tendo se filiado em 2013 ao Psol. Desde 2011, ele assumiu coluna semanal do jornal Folha de S. Paulo.


TRAJETÓRIA


FAMÍLIA. AO CHEGAR AO BRASIL, FAMÍLIA DE SAFATLE SE INSTALOU EM BRASÍLIA. ELA MOROU EM GOIÂNIA ANTES DE SE FIXAR EM SÃO PAULO, ONDE VLADIMIR INICIOU OS ESTUDOS

 

ACADEMIA


FUSÃO. EM SUAS OBRAS, SAFATLE PROPÕE UMA RELEITURA DA TRADIÇÃO DIALÉTICA - EM ESPECIAL HEGEL, MARX E ADORNO, POR MEIO DA TEORIA PSICANALÍTICA DE JACQUES LACAN

 

VERSATILIDADE


MÚSICO. VLADIMIR SAFATLE TAMBÉM É COMPOSITOR. EM 2015, ELE RECEBEU O PRÊMIO APLAUSO POR MELHOR TRILHA SONORA ORIGINAL DA PEÇA CAESAR, DE ROBERTO ALVIM.

 

A estante de livros de Vladimir Safatle

 

A esquerda que não teme dizer seu nome

Editora: Três estrelas

Conteúdo: espécie de desafio político à esquerda - reafirmar os princípios que orientam historicamente o pensamento e renová-los.


Fetichismo: colonizar o outro

Editora: Civilização Brasileira

Conteúdo: explora o conceito de fetichismo na filosofia, na antropologia, na psicologia e na literatura psicanalítica posterior às investigações de Freud.


O circuito dos afetos

Editora: Autentica

Conteúdo: Trata-se de uma análise sobre o conceito moderno de indivíduo a partir, sobretudo, de um sistema de afetos.

 

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