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"Sempre desconfiei da popularidade extremada"
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"Sempre desconfiei da popularidade extremada"

Em temporada pelo país com peça sobre a própria mãe, o ator afirma se realizar mais com personagens densos. Em entrevista, Matheus fala ainda sobre sexualidade e alcoolismo
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Atualmente no ar na série Filhos da Pátria e se preparando para compor elenco da versão seriada da produção cearense Cine Holliúdy (que estreia na Globo ano que vem), o ator Matheus Nachtergaele vive bom momento também nos palcos. Ele circula o País com o espetáculo Processo de Conscerto do Desejo, montagem em que encarna a própria mãe (que se suicidou quando ele tinha apenas três meses).

 

Com currículo que inclui personagens emblemáticos com o popular João Grilo, de O Auto da Compadecida, o artista paulistano destaca não ter a fama como meta artística e diz preferir poder escolher os próprios trabalhos. E, apesar de destacar os problemas atuais do País, diz estar conseguindo “viver feliz” no “Brasil do golpe”.

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O POVO - Matheus, sua mãe escrevia poesias e seu pai, que se formou engenheiro, foi também músico. A família te ajudou a se descobrir artista?


MATHEUS NACHTERGAELE -Será que a família determina o talento da gente? Acho que sim. Maria Cecília (mãe dele) era uma artista por vocação desde criança, escrevia muitíssimo bem. Ela conheceu o meu pai na rodas de jazz, ele tocava banjo. Minha mãe gostava muito de cantar e tocar, um gosto muito bonito pela música brasileira, principalmente pelo samba-canção. Não eram pessoas loucas, que tendiam a ter uma vida boêmia de artista. Ao contrário, pessoas de famílias caretas. Maria Cecília era de uma família quatrocentona paulistana, ricos e muito católicos.

 

OP - Por que você quis ser ator?


MATHEUS- Eu entrei para a Faculdade de Artes Plásticas e comecei a ter um contato poderoso com todos os tipos de arte. Lá eu convivia com o pessoal do cinema, artes plásticas, então tinha escultores, desenhistas, fotógrafos, cineastas e performances. Pessoa que, dentro das artes plásticas, já estavam interessadas em performance. Na faculdade de artes plásticas, eu conheci algumas pessoas que iam muito ao teatro, eu comecei a ir ao teatro.

 

OP - Muitos artistas têm o discurso do teatro como salvação. Do que o teatro te salvou?

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MATHEUS- Quando eu recebi os poemas da mamãe, aos 16 anos, e soube do suicídio, eu entrei numa espécie de bolha, uma bolha parecida com autismo. Eu tinha entrado num estado psíquico muito interessante pra formação do artista que eu sou, porque eu passei do final da adolescência até começar a fazer teatro numa solidão muito profunda, em contato com o que tinha acontecido comigo sem que eu soubesse. Acho que isso me dava elementos trágicos, que eu ainda não sabia como incorporar na minha vida cotidiana, e que a partir do encontro com artistas na faculdade eu pude começar a dar vazão. Uma amiga me indicou o Antunes Filho . Ela disse: eu acho que você deveria ser um ator. Não tinha me ocorrido, apesar de eu sempre detestar declamar poemas e cantar canções em público. Eu nunca imaginei que seria possível pra mim. Eu sou um homem pequeno, feio. Não tinha atores na minha família. Mas eu acho que esse período embotado convivendo com essa tragédia, com o que aconteceu, me dava elementos de ator de alguma forma. Uma necessidade grande de expansão também e de grito, de vômito. Aí eu entrei para o Centro de Pesquisa Teatral (CPT), abandonei a faculdade e me envolvi de um jeito violento. Fui formado ali.

 

OP - Você é paulistano, mas tem uma imagem fortemente ligada ao Nordeste. Você sente que tem uma ligação maior da nossa região com as outras?


MATHEUS - Não. Acho que o tipo nordestino, que eu encarnei demais no cinema, principalmente, é símbolo de um tipo de brasilidade. Tem a ver com essa coisa do sertão, da beira do mar, de um certo abandono dos governos, de uma mistura de raça, de uma falsa ignorância, e meu tipo físico se prestou bem pra encarnação desses personagens. Acho que chega ao esplendor com o João Grilo, que é o “amarelinho” arquetípico do Brasil. É o nosso arlequim. Mas isso não faz com que eu seja uma pessoa que conheça mais profundamente a cultura nordestina do que outras. Eu sou um paulistano, mas posso te dizer que estive muito aqui, li autores nordestinos, a maior parte dos filmes que eu fiz tratam do Nordeste. Existe uma imersão grande na cultura nordestina mais tradicional, através dos estudos em Ariano (Suassuna), principalmente, mas também da minha vivência maciça dos cineastas contemporâneos Lirio (Ferreira), Cláudio (Assis), Hilton (Lacerda), Renata Pinheiro, Walter Carvalho, eu convivo muito com essas pessoas, então. Não me sinto mais nordestino do que paulistano, mas tenho um convívio forte, potente com os nordestinos.

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OP - Na TV, você viveu tipos muito marcantes desde o primeiro personagem, o Cintura Fina, de Hilda Furacão (1998), que era um personagem que rompia com esses padrões de gênero. Havia um interesse seu de falar da representatividade LGBT na TV?


MATHEUS - Ele era bem ousado, a composição e o texto da Glória Perez era muito ousado e a direção do Wolf Maia também. Eu tinha total ciência, quando o Wolf me chamou, que eu estava fazendo um trabalho que se envolvia com a questão da aceitação da livre escolha sexual. Rapidamente entendi na minha vida que as escolhas sexuais não eram uma questão, não eram mais uma questão pra mim, não deveriam mais ser um tabu para os outros. Eu tive um entendimento, talvez por gostar tanto de biologia, muito claro que, nós como espécie, estamos liberados da procriação. Portanto, o afeto na nossa série humana é a criatividade, a gente está livre, pode-se dizer por Deus, para amar como a gente quiser. Não existe uma necessidade natural de reprodução na nossa série. Então, o nosso amor é criativo, ele pode ser como for. Eu não avalio alguém a partir da sexualidade. Eu fico muito mais interessado em quão criativo é a escolha de amar de cada um e se eu realmente acho o amor dessa pessoa criativo, interessante, pessoal, cheio de beleza ou se eu acho um amor careta chato. Mas me sinto muito feliz em ter podido ser um dos primeiros a experimentar isso na televisão, o cinema brasileiro chafurda isso faz tempo. Mas, na televisão, acho que eu fui um dos primeiro caras com personagem tão claramente questionador dos direitos da sexualidade. Portanto, acho que eu sou um tipo de bandeira LGBT.

 

OP - Você já teve medo de ficar marcado por um tipo só de personagem?


MATHEUS - Ficar marcado, pra mim, como o Cintura Fina teria sido uma honra. Mas, logo na sequência veio o João Grilo e depois Padre Miguel, quer dizer, personagens de bastante popularidades e de tipagem diferente, arquétipos muito diferentes e três arquétipos fortíssimos, de cara. Foram os três primeiros. O Cintura, que é o arquétipo da travesti, da sexualidade híbrida; o Grilo, que é esse arquétipo que a gente fala do “arlequim brasileiro”. e o Padre Miguel, que é o homem de religião, com o seu dogma colocado a prova, isso está em muitas histórias bonitas, esse homem de fé que tem que remexer na fé, e a partir do contato com os índios brasileiros.

 

OP - Você tem priorizado personagens dramáticos a tipos engraçados?


MATHEUS - Acho que essas coisas se completam dentro do meu desenho, do desenho de ator que eu quero ser. Continuo fazendo comédias na televisão, na verdade. Os últimos trabalhos que eu fiz, foram comédias. Em Saramandaia, eu era o Encolheu, junto com a Vera Holtz que fazia a Redonda, era cômico. Agora tem a série Filhos da Pátria, faço o Pacheco, um corrupto com tons cômicos. Um sem caráter cômico. Então, eu acho que isso na televisão, permanece e vai permanecer. Só Miguézim, do Cordel Encantado, ultimamente foi um trabalho mais longo e com tons mais dramáticos. Mas, eu não sinto que eu me afastei do cômico na televisão. Agora, eu tenho feito cinema mais dramático. Acho que esse encontro potente com Cláudio Assis, a coisa de eu estar fazendo a peça com a mamãe, tem dado esse tom. Mas eu me sinto, nesse momento, muito mais feliz do que eu era anteriormente. Eu estou tão feliz em poder fazer a peça. Então, estranhamente, acho que eu era mais triste como homem enquanto eu era o palhaço, o João Grilo, do que agora, que eu falo os poemas da minha mãe que se matou. Eu me sinto utilizando a pior parte da minha vida da melhor maneira possível. Eu transformei o meu pior no meu melhor e fiz isso com as minhas próprias mãos. Eu estou numa fase que eu estou me sentindo muito luminoso, muito feliz. Que tudo pode mudar a qualquer momento, que a alma de artista é muito tumultuada e o mudo ao nosso redor também. Então, nessa hora, está sendo tudo tão bom...

 

OP - Em entrevista ao jornalista Mauricío Stycer, em abril deste ano, você informou que no auge do seu sucesso nas novelas em meados de 2000 você “perdeu o sentido do ofício” de ator. O que exatamente você perdeu?


MATHEUS - Eu perdi um pouco a noção das coisas quando eu emendei as duas novelas, na Rede Globo (Da Cor do Pecado e América). Mas a mídia foi cruel e colocou como título de matérias uma coisa meio errada, que eu tinha me arrependido do sucesso. Não é isso. Não dá pra se arrepender do sucesso, o sucesso é uma coisa que acontece e que você tem que vivenciar. O negócio é que, fazer duas grandes novelas de tanto sucesso, seguidas, pra um ator como eu, me confundiu, me entristeceu. As pessoas começaram a me olhar como um ídolo popular histérico e eu não sou. Eu não faço isso pra vender Havaianas. Eu não sou ator pra ser capa de revista de fofoca. Eu faço isso porque eu acredito na função social do artistas e acho que é uma vocação, dentro das relações importantes da série humana. De arauto das nossas dores, comédias e tragédias da comédia humana. E, também pra pensar em mim, pra pensar na vida, descobrir quem eu sou. Eu não faço isso pra ser famoso, pra ganhar grana. Então, naquela hora eu me confundi. A histeria das pessoas me deu nojo, me deu raiva. Eu entendi que eu estava sendo julgado pelo meu pior. Não que eu não fizesse bem o Pai Helinho ou o Carreirinha, muito pelo contrario. Eu amava esses personagens. Mas a histeria das ruas me atrapalhou. Então eu optei por uma desaceleração. Você não me viu mais, depois, fazendo tanta novela. Eu freei, fiquei nas séries, voltei pras séries. Pisei no freio, fui pro cinema, dirigi um longa. Eu não peguei essa carona, não peguei essa onda. Eu fui nessa onda, eu surfei bem nela. Sou um vitorioso dessa onda, mas ela me turvou no sentido do meu ofício. Eu tive que parar um pouco e pensar no que estava fazendo. O auge do meu sucesso, também não é a toa, me parece que isso tem a ver com o homem que eu sou, com as minhas fragilidades também.

 

OP - Você teve problema com alcoolismo...


MATHEUS - O auge do meu sucesso é concomitante com o auge do meu alcoolismo também. Ele anda paralelo com o auge do meu instinto autodestruidor. Sempre desconfiei da popularidade extremada. Eu, ao invés de estar feliz e curtindo, eu estava bebendo. Já foi, nem é mais tanto um assunto para mim, mas foi quando eu bebi muito, porque eu trabalhava demais e não conseguia andar na rua, não conseguia falar com as pessoas, porque elas só viam o Pai Helinho na frente delas e eu me senti muito estranho. Isso, de uma certa maneira, continua acontecendo comigo, mas de uma maneira mais branda, porque eu evito fazer tantas novelas, minha exposição é um tanto mais suave.

 

OP - Em 2015, você deu vida ao Zé do Caixão, que é um personagem icônico que traz visão peculiar do terror. Para você, hoje, o que mais te aterroriza?


MATHEUS - Me aterroriza que a gente tenha entrado em perdição cedo demais como País. Acho que aqui é um dos lugares mais bonitos do mundo e não só fisicamente, mas na qualidade humana, na verve filha de uma mistura, bonita, de pessoas misturadas e tropicais. Eu acho que a gente pode ter perdido a hora de se tornar um país bonito. Talvez a gente já tenha enfiado o pé num destino trágico, onde não se governa realmente para as pessoas, onde as riquezas servem para um negócio que não nos diz respeito. Isso me aterroriza muito hoje em dia. Nesse momento, mais do que as doenças, mais até do que minha própria morte, mais do que a ignorância que é um coisa que eu tento tanto combater através do meu trabalho. Eu evito tanto corroborar com tudo que é bestializante e isso tem a ver com meu horror no auge daquele sucesso. Eu sou preocupado com isso. Eu não sou um intelectualoide, sou um boêmio, sou um cara divertido e engraçado, gosto de curtir, mas eu sei que é importante a gente fazer um trabalho com alguma consequência para as pessoas e para a gente.

 

OP - Como artista, como se pode reagir a tudo isso?


MATHEUS - Persistindo, nossos grandes atores, artistas, não largaram o osso de fazer com alma, paixão, seu trabalho. Independente dos governos todos, nós somos sobreviventes desse desgoverno geral no qual o Brasil foi formado desde o início. Eu tenho medo de a gente não conseguir retornar e uma esperança bonita é de que isso tudo nos leve a uma consciência grande e que isso mude muito as coisas. A minha sensação é de que nós estamos condenados a sobreviver num capitalismo que não nos dá tempo de realmente mudar as coisas. Estamos muito envolvidos em sobreviver. Essa armadilha é muito esperta. Estamos muito envolvidos em sobreviver, todos nós. Eu não sei se a gente consegue escapar de ser massa de manobra, mesmo nós artistas.


OP - Apesar de todos esses problemas nas políticas públicas, você consegue circular por todo o País com seu trabalho. Como essas viagens te enriquecem como artista?


MATHEUS - É uma dádiva. Sei que também é uma honra. O teatro comercial está fracassado, acho que essa coisa acabou, o que talvez não seja de todo o mal. O que sobrou pro teatro é pouco, mas é o mais bonito de tudo, que é a cerimônia pagã.. Então parte da minha alegria tem a ver com que eu tenha retornado para os palcos. O teatro permaneceu em mim como um lugar muito especial, onde só se vai quando se quer demais. Tanto você como ator quanto espectador. Só se vai ali quando se deseja muito. Por muitos motivos, nem todos conscientes, eu optei por esse caminho. Acho que o teatro é o lugar mais bonito do encontro dos homens na contemporaneidade. É onde se faz a livre oração, é onde se reza sem a presença de Deus, é onde a gente ora em direção ao pensamento, à crítica, à examinação profunda de quem a gente é em grupo, sem padre dizendo falsas verdades, sem uma galinha sendo assassinada para você achar que morreu alguma coisa em você. Eu estou criticando mesmo as religiões em geral. Acho que o que de mais bonito ficou do sentido religioso do homem está no teatro. O impulso religioso eu acho lindo. O desejo de entender melhor o que é isso tudo. O espanto disso tudo. O instinto religioso eu entendo claramente, mas as religiões estão mortas, o teatro continua vivo.

 

OP - Você está com 49...


MATHEUS - Com corpinho de 30 (risos)

 

OP- Chegando aos 50, você sente que está entrando num processo diferente de vida?


MATHEUS - Não sei analisar. Eu tenho uma sensação bonita de ter acontecido muita coisa nesse tempo. Eu tenho clara a sensação de pensar: “Nossa, que pena que está passando”, o que é muito bom, porque quer dizer que eu estou gostando da vida. Em alguns momentos eu desejei a morte, fiquei cansado de viver, mas eu estou gostando agora de viver mesmo no Brasil do golpe. Estou gostando da vida. Estou num meio de caminho, às vezes me dá pena de estar no meio do caminho. Mas estou fazendo uma peça que eu acho importante, estou começando a envelhecer fisicamente, não estou mais tão gostoso (risos), mas estou mais maduro, meu pau ainda está duro (risos). Tenho bastante força de juventude, muitas raivas, o que é muito bom. Estou mais maduro em algumas coisas, entendendo que algumas coisas eu não saquei, entendendo que muitas coisas com as quais eu me preocupei não eram tão importantes, eu tinha que passar por isso. Está gostoso, mas eu não me sinto mais sábio não, estou ainda inquieto e com muito medo do futuro. Ainda tem muito futuro. Tenho medo do que virá para mim e para nós. Estou cheio de cachorros, sempre quis ter uma matilha grande, eu vivo numa matilha, são 14 e eu sou o décimo quinto (risos).


Perfil

Nascido na capital paulista no dia 3 de janeiro de 1968, Matheus Nachtergaele estudou artes plásticas, mas se encontrou profissionalmente no teatro. Na década de 1990, ganhou notoriedade com a Companhia Teatro da Vertigem, sob a direção de Antonio Araújo. Atuou nos palcos com nomes como Ferrnanda Montenegro e conquistou espaço na televisão e no cinema nos últimos 20 anos, participando de importantes produções como o filme Cidade de Deus (2002) e novelas como Da Cor do Pecado (2004) e América (2005)

 

TIPOS MARCANTES

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Cintura Fina, na minissérie Hilda Furacão (1998)

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João Grilo, no filme O Auto da Compadecida (1999)

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Padre Miguel, na minissérie A Muralha (2000)

 

Veja vídeo da entrevista www.opovo.com.br/videos

 
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