Professor Ildeu de Castro Moreira é um entusiasta da popularização da ciência. Mas não só porque ele é presidente da SBPC, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a maior entidade de representação da comunidade científica do País. Sobretudo porque ele defende que a divulgação científica é crucial para o desenvolvimento da gente e do País e, por isso, a área precisa de mais investimento.
Nesta entrevista, o físico, professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), critica a fusão do Ministério da Ciência e Tecnologia com o das Comunicações e fala em perdas na área de C&T. Lamenta pelo baixo orçamento para pesquisa, o que, segundo ele, acaba por comprometer bolsas e programas.
Sob sua gestão, a SBPC lançou nota de apoio às “Diretas Já”. Ele esteve em Fortaleza em setembro, quando se reuniu com representantes do Governo do Estado e da Prefeitura de Sobral para discutir os preparativos do centenário da confirmação da Teoria da Relatividade de Einstein, que teve como palco a cidade de Sobral, em maio de 1919. Vários eventos científicos estão sendo planejados com a vinda de renomados cientistas internacionais. Para ele, é necessário resgatar o significado de Sobral para a ciência mundial.
O POVO - Como é essa reunião da qual o senhor veio participar sobre os 100 anos do eclipse, que serão comemorados em 2019?
ILDEU MOREIRA - Particularmente a discussão é com o Governo do Estado e a Prefeitura de Sobral. Vamos analisar e debater para saber como vamos fazer e preparar as comemorações do centenário do eclipse em 2019, que foi um evento extremamente importante para a ciência mundial. Foi o evento que transformou Einstein. De uma figura pouco conhecida, de repente, ele passou a ser o cientista mais conhecido que nós temos, e Sobral contribuiu decisivamente com isso, com as observações do eclipse. É um fato de uma importância muito grande para astronomia, física e ciência de um modo geral, inclusive para a história. O que se passou em Sobral foi decisivo. Estamos discutindo uma série de atividades comemorativas que vamos fazer no ano que vem e daqui pra lá. Criamos uma comissão nacional para ir interagindo com o Governo do Estado para organizar comemorações da qual fazem parte a SBPC, a Academia Brasileira de Ciência, a Sociedade Brasileira de Física, a Sociedade Astronômica Brasileira, uma associação internacional ligada a astronomia e instituições de pesquisa que foram envolvidas diretamente nas observações.
OP – As comemorações devem começar antes de 2019, então?
ILDEU – Sim. Vamos conversar com o Governo do Estado e a Secretaria da Ciência e Tecnologia, mas estamos planejando fazer um lançamento antes. A ideia é fazer congressos científicos, por exemplo. Então, em 2019 a gente faz um congresso de nível internacional, com especialistas do mundo inteiro, que discutam o impacto do eclipse de Sobral, a situação hoje da teoria do Einstein e efeitos importantes que vieram de lá pra cá. Por exemplo, a descoberta das ondas gravitacionais. Um século depois, mais ou menos, houve um evento importante do comportamento da natureza previsto pelo Einstein. Vamos fazer várias atividades. E a ideia é fazer atividades científicas e pra população em geral também. Nós queremos discutir com as escolas, discutir com a população, mostrar o que é isso, estimular o pessoal a olhar pro céu. O Ceará tem um céu fantástico. O Brasil todo tem um céu fantástico.
A ideia é a gente fazer uma mobilização grande no País pra que a gente torne o evento o centenário do eclipse de Sobral como evento central, comemorativo, e fazer muitas atividades de divulgação da ciência com educação científica. Mostrar a importância disso e estimular o jovem, em particular, a olhar para a natureza, que é um imenso laboratório.
OP – Havia todo um contexto histórico importante nessa época. Era fim da Primeira Guerra Mundial...
ILDEU – Sim, e o mundo estava esgotado, a Europa estava esgotada de uma guerra de muitos anos, e aquele evento curiosamente envolvia um cientista alemão, as observações dos ingleses que tinham sido adversários na guerra... Isso deu outra dimensão e a ciência era vista como uma mensagem de paz e de união para o mundo. Não é à toa que Einstein passou a ser visto como um símbolo. E depois ele tornou-se muito ativo politicamente, defendendo a paz mundial. Isso teve um caráter simbólico também, dentro do contexto da história mundial. Portanto, o eclipse de Sobral vem num momento crucial e o resultado dele teve um impacto muito grande pra ciência, mas também teve impacto fora da ciência, nesse sentido de criar um contexto da importância da ciência, que a ciência é uma atividade universal, que a ciência pode ser feita por cientistas de vários países que antes estavam em guerra.
OP – O senhor acha que não se deu o devido valor a Sobral no âmbito internacional? Ou até âmbito local? A impressão que se tem é que nós, brasileiros, não conhecemos muito essa história.
ILDEU – Concordo com você. Esse também é um dos objetivos das comemorações do centenário. Fazer essa divulgação científica. Aquela praça do Museu do Eclipse é bonita. Agora, que se inaugurou o planetário, está muito bonito também. Eu acho que deixou marca. Pode ser que eu esteja enganado. Já fui a Sobral duas vezes e conversei com muita gente de Sobral. Sobral é uma cidade que tem uma marca forte na questão da educação e da ciência. Isso tem raiz. Esse fato foi muito marcante para as pessoas de Sobral. A praça do Eclipse tá lá. Não é à toa que tem esses aparatos agora, Museu do Eclipse, Planetário, tem uma densidade de instituições de ensino. Sobral tem um desempenho significativo das escolas. Os historiadores locais, o pessoal local pode dizer com muito mais segurança do que eu. Mas tenho a impressão que isso deixou rastros fortes. É uma história forte. É claro que isso não tem uma repercussão regional, no próprio Estado do Ceará e no Brasil inteiro, que deveria ter. Não tem. Um dos objetivos dessas nossas comemorações deste ano de 2019 e desses anos anteriores que nós vamos preparar é exatamente resgatar a importância dessas observações e o papel que significou Sobral em termos da ciência mundial. Nossa ideia é fazer publicações, atrair pesquisadores do mundo inteiro e mostrar que muitas dessas análises históricas que têm sido feitas, principalmente em livros de divulgação científica que retratam esse episódio, que é muito importante na história da ciência, e frequentemente dão toda ênfase a (Arthur) Eddington e à Ilha de Príncipe. Frequentemente aparece nos livros “a deflexão da luz foi confirmada por (Arthur) Eddington na expedição à Ilha do Príncipe”. E Sobral some.
É um relato que absolutamente não está de acordo com o que aconteceu e nem com o artigo.
OP – Professor, um dos assuntos mais debatidos na política nacional nos últimos meses tem sido a fusão dos ministérios da Ciência e Tecnologia com o das Comunicações. Essa foi a medida mais drástica, mais trágica do governo Temer, no âmbito da ciência, tecnologia e inovação?
ILDEU – Essa foi uma medida drástica e muito ruim. É difícil dizer qual a mais trágica. Uma que está relacionada com ela é o corte dramático de recursos que está tendo na área. Isso afeta profundamente.
OP – A fusão foi o começo.
ILDEU – Por isso, é difícil avaliar qual foi a mais dramática. A comunidade científica reagiu muito negativamente. Fizemos vários documentos, fizemos petição, dissemos isso publicamente ao ministro (Gilberto) Kassab no primeiro encontro lá em São Paulo com a SBPC. Agora, na reunião anual com a SBPC, reafirmamos a nossa posição, enviamos uma moção ao governo dizendo que essa fusão foi ruim por vários aspectos. Primeiro porque o Ministério da Ciência e Tecnologia tinha sido criado por um movimento da comunidade científica na década de 1980 e foi responsável pela organização do sistema político nacional de ciência e tecnologia. Trouxe coisas importantes, valorizou a área. O fato de ter um ministério significa que o ministro discute com seus colegas no mesmo pé de igualdade, junta todos os institutos de pesquisa federal num ministério que permite que você organize uma política mais organizada. O CNPq, a Finep e outras agências fundamentais passaram a atuar de maneira mais conjunta, gerou a possibilidade de se criar fundos setoriais. A criação do ministério foi uma medida importante. A fusão dele significou a diminuição no papel político importante que a ciência e a tecnologia têm. Apesar de se dizer que comunicação tem a ver com ciência, acho que o que tem a ver com a ciência é o mundo de hoje, minas e energia, educação, meio ambiente etc.
OP – O senhor é otimista quanto à reversão desse quadro? O quadro da crise política, crise econômica e da situação da reversão da fusão dos ministérios...
ILDEU – Eu sou sempre otimista. Os prazos para isso são as circunstâncias políticas que decidem. A gente vem numa longa luta. A SBPC tem 70 anos, a Academia Brasileira de Ciência fez 100. Nós passamos por muitas intempéries. Se a gente vir a história da ciência brasileira, ela é muito complexa e teve muita dificuldade. As nossas universidades foram criadas muito tardiamente. A gente vem de uma história em que a ciência nunca teve um papel de destaque significativo. E a gente passou por muitas intempéries nesses momentos todos. Tivemos a ditadura militar, por exemplo, em que muitos cientistas foram cassados, com perda da liberdade de expressão, medo na época de Getúlio com o Estado Novo, restrição da liberdade, que é fundamental para a ciência. Passamos também por crises econômicas muito sérias, como no fim da década de 1990, com a ciência estava com os recursos muito baixos. Depois deu uma melhoradinha no fim da década de 1990. Depois de 2002 começou a subir significativamente. Subiu até em torno de 2013 e aí começou a cair. A queda tem sido drástica. Para nós, a fusão foi muito ruim. Fomos contra desde o início e continuamos contra. Nossa preocupação imediata agora é a desconstrução desse sistema nacional de ciência e tecnologia com os cortes drásticos que estão acontecendo. Já vinham caindo significativamente, mas neste ano a tesoura pegou muito pesado.
[QUOTE1]OP – O senhor acredita que o problema é falta de dinheiro?
ILDEU – É claro que vivemos uma crise, temos problemas de ordem fiscal. Agora ajustes, demissões e restrições por meio de crise devem ser feitos, mas têm que ser dentro de uma lógica de planejamento, uma estratégia de País. O que está acontecendo é que os recursos em ciência e tecnologia no mundo inteiro estão sendo aumentados em situações de crise, e não tão graves quanto a nossa, como a China, que continua crescendo, mas diminuiu o crescimento. Aumentaram em 26% os recursos para a ciência básica. A Rússia aumentou, a China aumentou, a Alemanha aumentou. E nós cortamos nessa área. É uma política suicida de retrocesso. Numa situação de crise ou recessão econômica você tem fazer apostas diárias e que permitam a reversão. Nós estamos fazendo o contrário. Nós estamos construindo a possibilidade de sair da crise de maneira adequada? Essa é uma crítica fundamental que a gente faz do ponto de vista econômico macro. O recurso que temos nesse momento para a ciência e tecnologia empenhados para resgatar para ter a metade do que tínhamos em 2010, são da ordem de R$ 2 bilhões. A gente viu nos jornais recentemente como Valor Econômico, O Globo, Estadão, alguns deles inclusive com a política próxima à do governo, apontando que recursos na ordem de bilhões foram canalizados para atender demandas políticas parlamentares dentro do Congresso Nacional com outros interesses. Num momento de crise em que o governo brasileiro utiliza recursos de altos montantes para determinadas iniciativas, corta na ciência e tecnologia, a gente queria saber por quê. Nosso ponto de vista é o seguinte. Existem recursos, claro que entendendo que nós estamos em um momento de crise. Se a comunidade científica brasileira e as universidades fossem chamadas para opinar como tornar mais eficientes os recursos públicos, que devemos fazer todo tempo, aliás, pode-se haver restrições aqui, acolá, pode-se diminuir o ritmo, claro. Não aceitamos é um corte maior de orçamento de governo que está vindo na nossa área. É uma área crucial.
[QUOTE2]OP – A SBPC se manifestou em favor das “Diretas já”. O senhor acha que a entidade não tem condição de ter um posicionamento neutro diante da atual conjuntura política do País?
ILDEU – O posicionamento da SBPC foi nessa direção. Isso foi por unanimidade nas assembleias. A assembleia geral da SBPC, que é o um órgão máximo da entidade, se manifestou em defesa das “Diretas já”. Porque nós estamos vivendo um momento muito crítico. O STF autorizou a segunda análise a denúncia contra o presidente Temer por entender que existe razão para isso. Isso vai para a Câmara e o Congresso para decidirem a abertura ou não. Portanto, existe o fato concreto. Existem denúncias graves. Obviamente as pesquisas têm mostrado que a população brasileira está muito insatisfeita. Outra razão que nos motivou é que estão sendo tomadas medidas muito drásticas de alteração da vida política e social do País com várias reformas que estão sendo feitas, inclusive vários cortes drásticos, que, do nosso ponto de vista, não se justificam como um programa de governo. Com o próprio Temer, quando foi eleito como vice-presidente, um dos programas que foi apresentado ao povo brasileiro foi o apoio a ciência e tecnologia.
OP – Com essa situação na ciência e na tecnologia, pode-se falar em fuga de cérebros do Brasil?
ILDEU – Acho que sim. Acho que já está acontecendo. Já existem exemplos individuais. Existe uma insatisfação na comunidade. Conversando com alguns colegas, eles dizem: “agora eu vou passar três, quatro anos em outros países”. Acontece com os mais jovens, mas também com cientistas que já estão inseridos no Brasil, mas que querem passar dois, três anos fora, às vezes no período de atividade intensa deles. Vão estar lá fora e podem até fazer um trabalho significativo, mas fora da contribuição para a ciência brasileira. Eu estava em janeiro numa instituição de pesquisa muito importante da França e um jovem brasileiro de 21 anos terminando seu doutorado, uma pessoa muito qualificada, me procurou e perguntou: “Volto ou não para o Brasil?”. E eu fiquei num dilema danado. “Estou muito bem aqui, tenho emprego, tenho a melhor qualidade do mundo, tenho a interação da Alemanha, mas quero voltar para o Brasil, sou brasileiro”. Tive uma conversa com ele mostrando a importância da decisão dele de voltar para o Brasil, mas mostrando com realismo as expectativas que a gente está tendo aqui. Não sei qual a decisão ele tomou. Estou dando um exemplo de coisas concretas que estão acontecendo. Muitos jovens que foram com o programa Ciência sem Fronteiras, programa que foi mal conduzido, que poderia ter sido com maior eficiência, mas teve uma repercussão com muitos jovens. Fico pensando nesses jovens que tiveram uma experiência no Exterior qualificada, o que eles estão pensando agora sobre o desmonte da ciência brasileira. Essa questão de evasão do cérebro já foi importante no Brasil, em outros momentos mais do que agora, mas já havia sido reduzida, quase minimizada. Claro que é uma ameaça séria. Mas também não é do dia para a noite. Mas na hora em que fecharem os laboratórios, em que não tiver oportunidade de estudo, os jovens, em geral aqueles que têm condição qualificada e se destacam, vão para fora. Hoje você tem uma coisa mais bem globalizada. As universidades e instituições de pesquisa internacionais são muito hábeis. Eles tentam localizar talentos do mundo inteiro para ir para seus países. Se o Brasil não tiver uma política clara de valorização da ciência, elas já perderam.
Perfil
Ildeu de Castro Moreira é físico, professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) desde julho deste ano. Foi secretário nos governos Lula e Dilma. Em 2002, participou da equipe de transição do Governo Federal no setor de Ciência e Tecnologia. Nos governos Lula e Dilma, esteve à frente do Departamento de Popularização e Difusão da C&T do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, entre 2004 e 2013. Em 2013, recebeu o Prêmio José Reis de Divulgação Científica de 2013, o de maior reconhecimento no País na área de C&T.
PERGUNTA DO LEITOR
Marcelo Alcantara, médico pneumologista e intensivista; membro do Conselho de Leitores do O POVO
MARCELO - Parece haver grande distância entre a academia e o setor produtivo. Qual o maior desafio para o Brasil incorporar a ciência e a tecnologia dentro da agenda econômica do País?
Ildeu - Ainda existe um distanciamento muito grande. Acho que há relações históricas e culturais fortes. Primeiro, a ciência no Brasil surgiu muito tardiamente em relação à Europa. Na Europa, surge pari passu com o capitalismo, com o crescimento do comércio; a ciência foi importantíssima para levar para a Europa riqueza e conhecimento. No Brasil as universidades surgem tardiamente. A universidade brasileira teve uma ligação muito menor com instituições de pesquisa. Por sua vez, o setor do empresariado brasileiro tinha uma lógica muito mais exploratória que a de investigação, que é fundamental para a ciência e tecnologia. É tanto que o valor dos recursos que vem da iniciativa privada para a ciência e tecnologia no Brasil é muito baixo. No Brasil hoje está em torno de 1.2% do PIB voltado para a atividade de pesquisa e desenvolvimento. Na Alemanha, está em 2.5% do PIB; nos Estados Unidos, 2.8%; na Coreia, 4.3%.
Daniela Nogueira
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Aurélio Alves
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