A ascensão de políticos conservadores e ligados à direita é um fenômeno internacional. A eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, ou o crescimento de partidos de extrema-direita em países da Europa, como França, Escandinávia e Suíça, são exemplos de um movimento que ocorre de maneira global e que influenciaram, embora com características particulares, as eleições brasileiras de 2018, com o maior número de eleitos ligados a essa ideologia.
A historiadora francesa Maud Chirio, professora da Universidade de Marne-la-Vallée na França, em entrevista ao O POVO, explica a conexão existente entre o crescimento da direita no atual cenário político do Brasil e o processo de redemocratização pelo qual a sociedade brasileira passou após 21 anos de ditadura militar. Segundo Chirio, essa transição não se completou, devido à ausência de construção de um discurso memorial forte.
Doutora em história contemporânea pela Universidade Paris I - Sorbonne, a pesquisadora iniciou as pesquisas no Brasil no início dos anos 2000, quando ainda era estudante de mestrado também na Universidade de Paris. A curiosidade acabou se voltando para o período da ditadura brasileira, período pouco conhecido em seu país de origem, na época. O doutorado acabou voltando-se para a mesma área, quando estudou a pluralidade existente dentro do movimento que estruturou o regime militar brasileiro, caracterizado pela própria pesquisadora como um período ambíguo na história brasileira. Nos últimos 18 anos, as visitas anuais ao Brasil prosseguiram assim como a pesquisa sobre o movimento direitista no país.
O POVO - Como surgiu o interesse da senhora em estudar a direita brasileira? Por que especificamente a ditadura e como a ditadura brasileira se diferencia
de outras?
Maud Chirio - Quando eu cheguei no Brasil, há 18 anos, era uma jovem estudante entrando no mestrado e descobri quase a existência da ditadura brasileira, que é um regime muito pouco conhecido na Europa. As ditaduras de segurança nacional, como são chamadas na Europa, mais famosas são as ditaduras chilena e argentina, mas houve pouca pesquisa e pouca repercussão pública da ditadura brasileira. Isso despertou o meu interesse porque era um assunto novo, totalmente inédito no meu país e também novo no Brasil, porque eram anos 2000 e naquela época não tinha muitas pesquisas sobre a ditadura brasileira. O momento de renascimento de pesquisas sobre ditadura brasileira foi 2004, com os quarenta anos do golpe. O interesse veio por desconhecimento e pelo fato dessa ditadura ter sido um pouco esquecida pela história. A primeira questão para mim foi entender porque tinha sido tão esquecida. Minha primeira entrada no período (foi para) entender o esquecimento. Eu percebi que essa era uma questão crucial para entender não só a ditadura, mas também a transição democrática, a falta de um processo judicial, de justiça tradicional, que aconteceu em todos os outros países, em particular revogando a Lei de Anistia. Todos os outros países revogaram a Lei de Anistia e tentaram implementar processos judiciais. (...) O esquecimento foi uma entrada importante para mim e continua sendo um elemento fundamental para entender o regime e a transição (para a democracia). Sobre o fato de pesquisar a extrema direita, a impressão que eu tinha era que as pesquisas sobre o poder militar pensavam as Forças Armadas, o poder e o Estado como grandes caixas, onde não se entrava. Não havia, na época em particular, a percepção da diversidade interna. Então, eu fiquei curiosa porque, no momento em que a esquerda era pensada em toda a sua diversidade - a esquerda que tinha uma linha pacífica, a esquerda armada, as diversas linhas teóricas da esquerda, os diversos aspectos culturais e políticos -, a direita era muito menos estudada e não era pensada na sua diversidade. Foi a minha primeira entrada neste tema que era também de entender a variedade do poder e das forças conservadoras que implementaram o poder militar.
OP - Esse esquecimento seria então a principal característica do depois da ditadura, do processo de redemocratização?
Maud Chirio - Característica da própria ditadura não é o esquecimento. A ditadura brasileira tem características próprias que são de uma ditadura que cultivou a ambiguidade com o sistema republicano, democrático, mantendo um certo número de instituições, algumas formais outras em funcionamento. Outra característica dessa ditadura foi de ter uma estrutura ideológica muito forte, mais de ter sido criada cedo em comparação com outros regimes de países vizinhos. Por ter sido criado cedo, esse regime antecedeu boa parte dos movimentos de esquerda armada, no contexto da Guerra Fria, e por isso teve pouco inimigo interno a combater (e), por isso, teve uma letalidade menos importante do que, por exemplo, na Argentina e no Chile. Não era uma característica intrínseca dos militares ou da direita brasileira, mas creio que muito mais uma consequência da cronologia e do fato que havia já um estado militar repressor muito forte que conseguiu reprimir muito rapidamente uma oposição que era muito pequena. A ditadura (brasileira) matou menos gente. Torturou muita gente, prendeu muita gente, oprimiu muita gente, censurou muita gente, mas matou menos gente do que, por exemplo, a Argentina. E isso é um elemento que favoreceu um processo de transição incompleto, porque havia poucas famílias ou parentes suscetíveis de se mobilizar para exigir os corpos, exigir um relato sobre os desaparecimentos, exigir reparação. A sociedade no seu conjunto conseguiu mais rapidamente olhar para outros temas, pensando que isso era uma coisa positiva, olhar para o futuro, pensar na Constituição, pensar na reconstrução da nova sociedade. Isso era um sinal de otimismo de um povo e (que acreditava) que olhar para o passado, contar o que tinha acontecido, contar como o Estado brasileiro desviou do estado de direito não era necessário para reconstruir uma sociedade democrática. As características da ditadura não eram de moderação, mas foram de menor letalidade (o que) produziu, em parte, essa transição que foi incompleta. (Há) outros elementos que explicam essa transição incompleta, em particular a capacidade das elites brasileiras de se adaptar e de se reassociar a outros campos, outros partidos. Muitas das elites políticas da ditadura conseguiram conexões com outros partidos e outros poderes durante a República. Isso dificultou ter uma depuração real, um estabelecimento do que tinha acontecido, de quem precisava estar punido, de quem não podia mais exercer poder, tudo isso não aconteceu. Em paralelo com o fato de que houve uma pedagogia pública pequena e tardia. O fato de ter um discurso público sobre a ditadura foi uma coisa do século 21, só aconteceu no âmbito da Comissão de Anistia, com as caravanas da Anistia, e não tocou o público, assim como a Comissão Nacional da Verdade não tocou o público geral, ou seja, houve uma dificuldade, até um momento recente, em afirmar que havia acontecido certos fatos, (fatos esses) que eram condenados e que é legítimo promover (publicizar isso) para o âmbito público. O que a gente tá percebendo hoje, (em) uma grande proporção da população, é uma reabilitação da memória positiva sobre a ditadura (que) é uma consequência direta dessa fraqueza na afirmação de um discurso coletivo sobre o que tinha acontecido, o que é uma coisa impensável na Argentina. A direita, o conservadorismo argentino, pode ser muito radical sobre muitos pontos, mas o fato de considerar que o período da ditadura foi um período positivo, que a tortura, que a exterminação política foram elementos positivos é uma coisa que é totalmente impensável na Argentina, por enquanto.
OP - Como a transição considerada incompleta e a falta desse discurso sobre a ditadura pode ser relacionada com a ascensão de políticos não só identificados com a direita e a extrema-direita, mas que exaltam a ditadura?
Maud Chirio - O fato de não ter tido processo, de não ter tido uma política de estado memorial e judicial forte em relação a esse passado, permitiu que grupos estejam promovendo uma memória positiva (da ditadura). Grupos promovendo memória positiva da ditadura sempre existiram, eles nunca desapareceram. Eles começaram no momento da queda da ditadura, em 1985. (Por exemplo) No momento da volta dos civis ao poder, houve a publicação, talvez a mais importante, de denúncias dos crimes da ditadura que foi a grande pesquisa e reunião de arquivos e o livro "Brasil Nunca Mais". Imediatamente, houve uma resposta de setores ultraconservadores e militares, que foi um livro, de um autor chamado Marco Pollo Giordani, chamado "Brasil Sempre", que era uma resposta direta. Ou seja, a guerra da memória nunca parou. Nos últimos 30 anos, nunca parou e sempre houve grupos, principalmente ancorados nos militares da reserva e no Clube Militar, que é uma associação de lazer e de conversa de militares da reserva, (que) nunca pararam de ter um discurso que equiparava as violências da oposição e do poder, que consideravam que não havia um desequilíbrio, que não havia um estado opressor, mas que havia uma guerra civil e que as violências da esquerda eram tão graves e tão condenáveis quanto a violência do Estado. Um discurso que também existiu nos países vizinhos do Cone Sul, mas neles esse discurso foi combatido com mais força pelas autoridades civis da República. O que não foi verdade no Brasil. O que a gente tá vendo agora é que um discurso que era extremamente reduzido, extremamente situado socialmente cinco, seis anos atrás, virou um discurso comum. Em 2012, houve uma grande mobilização de militares da reserva e da ativa contra a possibilidade evocada por uma secretária de Estado do governo de Dilma Rousseff de revogar a Lei de Anistia. Depois desse discurso houve uma grande mobilização, mas era uma mobilização de algumas centenas de pessoas, que não ecoava muito na sociedade.
OP - O que mudou, desde então?
Maud Chiori - A pergunta é como esse discurso conseguiu contaminar milhões de pessoas, de eleitores, de políticos?Eu creio que esse fenômeno de expansão memorial na população tem duas raízes. A primeira raiz eu já expliquei é um memorial fraco na sociedade porque nunca houve uma operação durável, forte, sistemática de memória e verdade sobre esse momento, apesar da Comissão de Anistia, apesar da Comissão da Verdade, que fizeram muita coisa, mas que não tiveram impacto social grande. O segundo elemento é a capacidade de impacto na psicologia das populações da nova direita americana - que não é só brasileira, que existe também nos Estados Unidos, em parte da Europa e em parte da América Latina -, que tem uma estratégia de conquista das mentes e de inversão dos valores e tem como argumento que o comunismo ainda existe em todos os países, que os direitos humanos são uma categoria negativa. Muitos elementos que são comuns e que combinam com uma memória positiva da ditadura. Ou seja, a memória positiva da ditadura é a versão brasileira de um ultra reacionarismo global, que tem objetivos claros de reduzir os direitos das minorias e reduzir o papel social do Estado. Muitos objetivos que são financiados de uma maneira muito clara por grandes interesses que existem em diversos continentes e tem por objetivo mudar radicalmente a maneira de governar essa sociedade, de mudar a relação com o ultraliberalismo e de mudar a relação com a tolerância a diversidade e pluralidade política, da diversidade étnica, de maneiras de viver.
OP - Então há uma responsabilidade dos governos pós-redemocratização de não terem ido a fundo nessa memória?
Maud Chirio - Sim, eu acho que em parte. Não era uma tarefa fácil, porque havia uma permanência da classe política, dos interesses econômicos, das oligarquias tão fortes no Brasil e das Forças Armadas, que tinha mantido um papel de tutela do poder civil durante muito tempo. Então, havia enormes resistências à possibilidade de um trabalho memorial mais a fundo, mas também existiu a crença de que isso não era totalmente necessário, que uma Comissão da Verdade não era uma necessidade para reconstruir uma democracia, porque não havia centenas de milhares de mortos como na América Central ou dezenas de milhares de mortos como na Argentina. Pelo fato da violência ter sido diferente e menos letal, isso não (iria) permitir a volta ao passado. O que a gente está percebendo e confirmando agora é que a ditadura brasileira foi uma ditadura a partir do momento que um Estado pode considerar que a integridade física de um cidadão não é uma necessidade absoluta, que o exercício da Justiça não é uma necessidade absoluta, já não estamos mais em um regime democrático ou republicano e que a existência de tal parênteses na história de um país exige verdade, exige uma pedagogia pública. Porque senão volta. Muitos (de nós) historiadores estamos falando isso há muito tempo, pensávamos que a Comissão da Verdade seria esse momento de trabalho de memória. Foi em parte, mas aconteceu tarde, aconteceu num momento já de muita polarização e crise e foi muito desgastada pelo contexto em que aconteceu e não teve o impacto e o efeito esperado. Parece agora que estamos em um país que não teve uma Comissão da Verdade, que não teve o trabalho fundamental que uma Comissão da Verdade deve fazer, pode fazer.
OP - A pesquisa de doutorado da senhora é muito focada nas Forças Armadas (no período da ditadura brasileira). Nas eleições de 2018 tivemos uma grande quantidade de militares sendo eleitos para cargos tanto no Executivo como no Legislativo. O que isso diz sobre a força desse segmento dentro da política brasileira?
Maud Chirio - A primeira informação importante, quando se olha a história da República brasileira de 1889 até hoje, é que a presença militar direta e indireta foi constante. A Nova República (período da República brasileira iniciado com a redemocratização em 1988 e que se estende até hoje) foi uma exceção. Foram 30 anos de exceção. O resto do tempo havia ou militares no poder ou militares extremamente associados ao poder ou presidentes eleitos que eram militares. Ou seja, houve pouquíssimos regimes realmente civis antes da Nova República. A volta dos militares à política não é uma aberração na história do Brasil, é a volta à norma. Isso é muito significativo sobre a cultura política brasileira, que mantém uma descrença na política, na prática política, que continua cultivando a ideia de que não é a classe política ou certos políticos que são incompetentes ou corruptos, mas a prática política no contexto democrático que é ruim em si. Isso é um imaginário que atravessa o século XX e o século XXI. Nesse imaginário existe a ideia de que pessoas que estão fora do sistema - em particular militares, mas agora estamos vendo a figura dos juízes, do Judiciário -, que não tem como objetivo ficar atrás de votos para serem eleitos, seriam mais puros, melhores, capazes de promover o bem da nação. E esse é um imaginário que nunca desapareceu da cultura política brasileira, em particular da cultura das burguesias, das elites. É o que está acontecendo agora. Os militares estão voltando à política, não chegando, mas voltando depois de um tempo muito curto de afastamento, porque existe um momento de crise democrática no Brasil.
OP -Por quê?
Maud Chirio - Houve elementos reais e elementos construídos por uma propaganda muito bem articulada de que todo mundo é corrupto e que é necessária a volta dos militares no poder. Apesar do fato desse elemento ser uma constante, temos que a volta (ou) chegada dos militares no poder nunca diminuiu os níveis de corrupção nem melhorou a eficácia de governos. Eles geralmente governam de uma maneira muito mais conservadora, muito mais reacionária, mas os níveis de corrupção durante a ditadura, agora sabemos de maneira muito clara com a abertura de arquivos, foram muito altos, porque não havia imprensa livre e não havia uma justiça suscetível de denunciar qualquer roubo, qualquer desvio de dinheiro. A volta de militares para a política é uma consequência da crise democrática e de uma cultura que guardou uma descrença na política civil e isso é uma coisa que fragiliza muito a democracia no Brasil. Por fim, existe um crescimento muito forte da extrema direita no Brasil e os militares são uma instituição mais conservadora do que outras instituições e havia um pessoal disponível para ocupar parte do espaço político com um discurso muito direitista. Os eleitores manifestaram o desejo de votar a favor de militares e de pessoas que defendiam ideias de extrema direita e esses dois fenômenos favoreceram a entrada de militares na política.
OP - Em comentários recentes, a senhora afirmou que a Nova República brasileira acabou com a eleição de Jair Bolsonaro. Isso estaria relacionado à crise democrática? De fato se encerrou esse período de Nova República?
Maud Chirio - Não sabemos o que de fato vai estar implementado. A posse não aconteceu ainda e vamos ver o que vai acontecer. Mas creio que a Nova República se baseia não só numa Constituição, mas em valores coletivos, que foram valores discutidos coletivamente no período de preparação da Constituição, que são valores de respeito à diversidade, de respeito a uma nação multicultural, de uma nação multiétnica, da construção de um estado social, de um Estado que promove a conquista de direitos para todos os cidadãos. Pensando nesses valores que foram debatidos e foram resultado de uma longa construção social, que não foi resultado só da transição democrática, mas de décadas de luta do movimento negro, do movimento feminista, de luta dos trabalhadores para seus direitos sociais e a Nova República foi pensada como consequência e consagração dessas lutas. Pensando a Nova República dessa maneira, o fato de uma equipe política, que é o caso do presidente eleito, contradizer quase todos os pontos desses valores fundadores da República, a coloca em risco mortal. A oposição de valores é absoluta, não existe quase nenhum valor básico da Constituição que seja considerado valor básico pelo novo poder que chegou. Não por acaso é saudoso da ditadura. Uma pergunta que os leitores podem ter é como um governo saudoso de um regime ditatorial pode respeitar uma República que foi fundada justamente contra esse regime ditatorial. Isso é uma contradição nos termos. Corresponde a visões do mundo, da sociedade, da política diferentes. Se a República vai sobreviver ao mandato que começa em 2019 vai depender do poder para implementar a sua política. Se o presidente eleito conseguir implementar a sua política, acredito sim que a Nova República vai parar. Podemos querer ou esperar que essa interrupção seja temporária, que seja um parênteses e que a República esteja reconstruída depois. Mas não será mais uma República que respeita os valores da Constituição.
OP - A possibilidade de Jair Bolsonaro ser eleito sempre foi considerada, por alguns segmentos, como algo distante, um fenômeno muito parecido com a eleição de Donald Trump (nos Estados Unidos). Foi uma leitura errônea ou existe algo que justifique essas figuras, que nem sempre eram levadas a sério, terem conseguido se eleger a presidência de seus respectivos países?
Maud Chirio - Eu acho que é um pouco das duas coisas. Existe uma desconexão de certas parcelas da sociedade que fazem com que muitos cidadãos não (se) comuniquem uns com os outros. As redes sociais aumentaram isso, o efeito bolha, o efeito de estar no mundo social e conversar com pessoas que concordam com a gente e perceber menos que existe um outro mundo social. É uma coisa que não é só brasileira, é mundial ou, pelo menos, ocidental. E isso tem como consequência a dificuldade de pensar que outras pessoas estão pensando de maneira radicalmente diferente de nós. Isso vale das duas maneiras: as pessoas que votaram em Bolsonaro, em maioria, não entendem a reação de quem não votou a favor do Bolsonaro. Não é que só rejeita, não entende, porque as pessoas não (se) comunicam. Eu acho que é uma coisa que leva a pensar sobre a fragilização do espaço público e da opinião pública em um mundo estruturado pelas redes sociais. Antigamente, quando a fonte única de informação era um jornal, era público, todo mundo podia ler, parte não comprava, mas tinha uma visibilidade pública. Agora, grande parte da opinião pública está se construindo de maneira semi-privada, pelo Whatsapp, pelo Facebook, e isso divide a sociedade, polariza a sociedade. Isso explica porque muita gente não imaginava que seria possível o Trump ou o Bolsonaro estar eleito, enquanto os outros pensavam que a vitória era certa. (Por exemplo) Muitos aliados do Bolsonaro falavam que ele ganharia no primeiro turno, meses antes da eleição. Isso é o primeiro elemento. O segundo elemento é o fato (que) essa divisão e essa estrutura semi-privada da construção da opinião pública foi utilizada de maneira muito esperta por pessoas que tinham a estratégia de levar essas pessoas da extrema direita para o poder. Isso é uma coisa muito bem estabelecida nos Estados Unidos, houve muitas investigações da imprensa e trabalhos científicos sobre isso. Houve interesses financeiros muito poderosos que tiveram uma estratégia de coleta de dados de dezenas de milhões de cidadãos para alvejar pessoas e convencer cada uma delas a partir de redes sociais, para que essa pessoa acredite, segundo o perfil dela, (que é) um elemento que ligaria ela a determinado candidato. Isso foi uma operação muito bem orquestrada, muito bem articulada nos Estados Unidos, permitiu que três estados que sempre votaram pelos democratas votassem a favor do Trump. Isso foi uma operação conhecida (...) e que tocou 87 milhões de americanos. E aconteceu a mesma coisa no Brasil. Coletaram dados pessoais e enviaram, não pelo Facebook, mas pelo Whatsapp, propaganda especificamente definida para convencer cada uma dessas pessoas. Isso teve um efeito de lavagem cerebral rápido e escondido do resto da opinião pública, porque não tínhamos acesso a essa circulação de notícias ou de falsas notícias. Isso explica porque foi tão imprevisível e tão difícil de entender, porque era uma conspiração. A gente pode utilizar certas palavras fortes que correspondem a uma operação de propaganda clandestina, isso foi a apropriação de propaganda clandestina, em parte ilegal. Se você não recebeu nenhuma dessas mensagens, é porque você não foi considerado passível de convencer, por isso você não foi tocado por essa propaganda. Quem não tava na bolha, não tinha acesso a esse tipo de discurso. Isso criou não só a chegada ao poder de uma pessoa radicalmente diferente de um consenso moral de cinco ou quatro anos atrás e também uma polarização dramática da sociedade. Por exemplo, eu acredito que quando a gente tiver dados sobre como foi organizada a campanha pelo Whatsapp, a gente vai descobrir que o Nordeste não foi considerado um alvo possível, que o Nordeste tinha uma ligação muito forte com o PT e que não era possível converter o Nordeste e que daria muito trabalho. Então, essas mensagens nem chegaram ao Nordeste. Isso explica uma coisa tão inacreditável quando se olha o mapa do Brasil que é a diferença política do voto do Nordeste e do resto do país. Eu não acredito que seja só cultura regional, eu acho que é resultado de uma estratégia de manipulação das massas, que foi muito bem sucedida e que fabricou essa eleição.
História
MAUD CHIRIO é formada em história pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne, e em sociologia pela Universidade Paris 5 René Descartes. Mestrado e doutorado realizados na Universidade Paris I - Sorbonne. A pesquisadora também é diplomada pela Ecole Normale Supérieure de Paris.
Em livro
O LIVRO "A política nos quartéis: Revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira", lançado em 2012, é resultado das pesquisas de doutorado de Maud Chirio sobre os conflitos político-ideológicos que se davam, durante o período ditatorial brasileiro, no interior das Forças Armadas.