Nascido em Igarapé-Miri, distantes 78 km de Belém do Pará, Aurino Quirino Gonçalves começou a esboçar ainda menino aquele que viria a ser pouco tempo depois: o cantor, compositor e músico Pinduca. Influenciado por um contexto familiar musical ainda na infância, enveredou "automaticamente" pela carreira artística que lhe valeu reconhecimento local, nacional e até mesmo internacional. Considerado o "pai do carimbó moderno", ele gravou músicas famosas como Sinhá Pureza e Carimbó do Macaco, que popularizaram pelo mundo o ritmo originário do Pará que ganha até hoje muitas pistas de dança - quase sempre, como ele conta, frequentadas por jovens. Aos 82 anos, Pinduca traça um olhar para as trajetórias pessoal e artística, divide a vontade de ver a música paraense mais difundida e apoiada e celebra o atual processo de modernização do carimbó em artistas como Gaby Amarantos e Felipe Cordeiro.
O POVO - O senhor vem de uma família de gente que tinha relação musical forte. Quais memórias relacionadas com música o senhor tem ainda da época da infância?
Pinduca - Eu sou filho de um professor de música, meu pai era maestro, já nasci nesse meio, então essa influência vem desde criança, desde o nascimento. Eu já vim envolvido na arte. Eu tenho essa vocação musical mesmo de família, não foi uma opção que eu fiz com o tempo, tipo, primeiro me tornei músico e depois quis ser cantor… Não, foi acontecendo tudo automaticamente comigo. Eu não fiz canto pra ser cantor, foi influência, mesmo. Eu tive quatro irmãs e todas as quatro foram excelentes cantoras, mas sem condições de chegar a um disco. (Tive) dez irmãos e todos (foram) músicos. Agora, quem mais se destacou (na área) fui eu. A maioria dos irmãos teve tendência mesmo pro futebol (risos) e eu, o Pim e o Mário Gonçalves (irmãos de Pinduca que também tiveram carreira musical no carimbó e na lambada na década de 1980) fomos pra música, mas entre nós, eu fui o que mais se destacou. A infância foi musical.
O POVO - E essa parte musical começou a ser tratada de maneira mais a sério, mais profissional, em que período?
Pinduca - Eu já era músico. Era músico e depois comecei a organizar uma banda minha. Primeiro era uma orquestra e depois passou a ser um conjunto, agora que é banda. Eu organizei minha orquestra e passei a ser cantor dela. Até que eu tive a oportunidade de gravar um disco. Eu optei em gravar carimbó porque era uma música que estava lá no esquecimento. Eu não sou o inventor do carimbó, eu diria que eu sou redescobridor do carimbó. Inclusive, foi aqui em Fortaleza que um apresentador falava pra mim que eu era o 'redescobridor'. Então, com a oportunidade de gravar, optei por ser carimbó porque é uma música do Pará que ninguém conhecia, ninguém sabia por onde estava. Foi aí que deu certo. Gravei o primeiro disco em 1973 e hoje já tenho, entre vinis e CDs, 40 discos gravados. Na época da orquestra, quando eu comecei como músico, comecei com 14 anos e daí não parei mais, até hoje. Nunca mais parei de viver na música, com música, pela música.
O POVO - Esse período da orquestra era ali pelos anos 1950, mas o senhor foi gravar o disco já nos anos 1970. Entre uma coisa e outra, o que o senhor ficou fazendo, já tinha agenda de shows? Como era?
Pinduca - Antigamente, principalmente nós lá pro Norte, não fazíamos shows, fazíamos bailes. Músico era pra tocar em baile. Eu comecei com a minha orquestra tocando em baile, começando 22 horas e terminando às 3, 4 da manhã. Eram bailes dançantes, tocava bolero, samba-canção, valsa, frevo, tudo que tinha na época pra tocar, tocava.
O POVO - Antes desse "redescobrimento" do carimbó, ele era algo que você ouvia? Havia alguma relação pessoal?
Pinduca - O carimbó é a música e a dança folclórica do estado do Pará, mas não tinha divulgação, quase ninguém conhecia. Ele era conservado pelo pessoal da roça, pelos caboclos lá do interior, pelos pescadores, então de repente eu, como dono de um conjunto musical na capital, apareci cantando carimbó e levei até vaia. Eu fui vaiado por isso. Era uma baixaria cantar carimbó porque ele era considerado uma coisa muito rasteira. Foi dessa minha insistência de querer cantar e tocar carimbó que aí eu tive a oportunidade de gravar um disco e optei de ser carimbó.
O POVO - Como foi a repercussão de ter trazido o carimbó ao protagonismo com o disco?
Pinduca - Aí foi bonito. Houve uma surpresa, foi bonito. Com o disco de carimbó gravado, veio a curiosidade, o pessoal querendo comprar o disco, muita gente queria ver e ouvir o que é que tava acontecendo, o que eu tinha gravado, como era o carimbó. Foi assim que aconteceu.
O POVO - Sobre começar a deixar o carimbó registrado desde o começo nos discos, o que isso impacta na cultura popular paraense?
Pinduca - O carimbó cresceu. Tive a minha persistência de não querer desistir. Houve elementos que, depois de mim, gravaram, mas aí voltaram atrás, não quiseram mais, desistiram por preconceito. Eu insisti, insisti e foi quando o carimbó começou a andar, sair do estado do Pará, veio para o Maranhão, veio para o Ceará, Pernambuco, foi andando, andando… Foi São Paulo, Rio, e hoje em dia o carimbó é uma música internacionalmente conhecida. Eu já fiz vários shows fora do Brasil, outros cantores também já fazem. O carimbó cresceu muito!
O POVO - Como foi a aceitação da música por outros estados e países?
Pinduca - Eu sou do princípio de saber entrar e saber sair. Nunca tive decepção em lugar nenhum por onde eu cheguei, eu sempre soube entrar e soube sair e por isso nunca tive problema nenhum. Sempre fui bem tratado, as pessoas sempre me trataram bem porque eu sempre respeitei as pessoas e o lugar delas. Nunca tive problema nenhum no meu trabalho de divulgação. Eu não sou um grande cantor, eu canto carimbó com essa minha voz rouca, mesmo, e o pessoal vai gostando, vai aceitando, e assim fomos em frente.
O POVO - Tendo apoio de público há 60 anos, como o senhor avalia a permanência dessa aceitação, da sua carreira?
Pinduca - O carimbó mesmo, original, como tem muito lá no Pará, era, quando eu comecei, pra gente velha. Só pra gente idosa, as senhoras e os senhores. Até os músicos eram gente já mais velha, deixando até de ser músicos, fazendo aquelas rodas de carimbó. Então surgiu o Pinduca com a ideia de querer modernizar. Fui modernizando. O que eu fiz? Comecei a tocar o carimbó com a minha banda - guitarra, teclado, bateria, contrabaixo - e aí começou a modernização. Nesse período eu fui muito criticado, mas eu não desisti com as críticas. Fui criticado, mas não dei confiança, como é até hoje. Quem quiser criticar, pode criticar. Fui modernizando e chegou uma hora que eu chamei uma filha minha - ela tava com 15 anos, era estudante - porque eu queria fazer com que os jovens gostassem do carimbó. Falei pra ela preparar um grupo de dança com quatro ou cinco moças da idade dela para dançarem o carimbó num show. O pessoal ficou admirado quando me viu cantando carimbó e aquelas jovens dançando. Daí pronto, foi uma febre. Era colégio, todo mundo, fazendo grupo de dança de carimbó. Acho que foram perdendo a vergonha, sabe? O que havia era muito preconceito, muito preconceito. Eu trabalhei com essa chamada dos jovens para gostarem do carimbó. "Venham! É bom, é gostoso! Vamos dançar carimbó!". Hoje em dia, eu sou contratado pra fazer shows e quem vai dançar são os jovens.
O POVO - A música paraense é muito conhecida no País. Tem o senhor, tem a Dona Onete (cantora e compositora paraense de 80 que lançou o primeiro disco em 2012 e soma, hoje, três álbuns de inéditas), tem o Manoel Cordeiro (multi-instrumentista e produtor paraense reconhecido pela guitarrada e a lambada)...
Pinduca - A Dona Onete começou um dia desses, né? (risos) Ela começou bem. Ela era compositora. Inclusive, o Pim, meu irmão que morou aqui em Fortaleza, gravava muita música dela. Mas aí surgiu um grupo de rapazes lá em Belém que tinha uma banda que não tinha nome, não tinha um cantor ou cantora. Aí eles tiveram essa ideia de convidar a Dona Onete para cantar com eles já com a oportunidade de gravar. E deu certo! Foi tiro e queda. Eles são jovens e ela é a mamãe de todos lá. Fica bonito! Ela já é uma boa idade e eles todos são jovens, todos cantando o carimbó chamegado dela. Ficou bonito, foi uma sacada de primeira!
O POVO - Como o senhor avalia o alcance que esses nomes têm no Brasil junto ao público, à mídia?
Pinduca - Olha, o alcance da música paraense no Brasil eu ainda acho um pouco fraco. Mas foi assim que o Luiz Gonzaga implantou o nosso baião e o nosso forró… Agora, por exemplo, em Belém, se você for a uma festa junina, você tem a impressão que lá só se conhece o Luiz Gonzaga. É Gonzagão pra todo canto, todo lado! Nós ainda não chegamos aí nesse nível, mas espero um dia chegar. Que o Luiz Gonzaga me abençoe lá de cima!
O POVO - E o que seria isso de "chegar nesse nível"?
Pinduca - É chegar ao conhecimento geral. Onde as prefeituras e as partes culturais reconheçam que isso é uma música folclórica, uma dança folclórica. E é bonito! Carimbó é uma dança muito bonita, por sinal. Nós temos em Belém representações do carimbó original que são muito bonitas, grupos de dança grandes, mas falta mais: a-poi-o (fala marcada e pausadamente). E eu digo mais, tive a sorte e a felicidade de ser inteligente e de, em todos esses anos que venho trabalhando, fazer amizade com a imprensa. Porque uma coisa eu sabia: a imprensa, assim como levanta o camarada, derruba o camarada. Tem cantor aí que chega se fazendo de estrela e de repente cai, se esborracha. Eu sempre mantive meu nível de amizade com todo mundo, sempre agradecendo à imprensa que tá sempre colocando o Pinduca, e aí com isso foi popularizando, e eu queria popularizar o carimbó. E eu consegui, com a ajuda dos outros.
O POVO - Hoje há vários artistas mais jovens do Pará que fazem uma música que mistura a cultura popular com algo eletrônico, diferente. Nacionalmente conhecida tem a Gaby Amarantos (cantora e compositora que mistura carimbó, tecnomelody, brega e pop), mas há também o Jaloo (cantor, compositor e produtor com influências eletrônicas), o Lucas Estrela (guitarrista, produtor e compositor influenciado pela música paraense tradicional), o Felipe Cordeiro (cantor, compositor e guitarrista, filho de Manoel Cordeiro)... O senhor falou que, há muito tempo, fez a "modernização" do carimbó. Como avalia, então, a modernização de hoje, que faz essa mistura eletrônica?
Pinduca - Cada um que vem, cada jovem que vai entrando nessa onda do carimbó, vai colocando uma pitadinha de sal aqui, outro pouquinho ali, e com isso a gente vai enfeitando e arrumando melhor o nosso carimbó, e aí o carimbó vai aceitando, e o público vai gostando, e a juventude vai fazendo e aí vai dando tudo certo! Você falou, né, Felipe Cordeiro, Gaby Amarantos... Tem a Juliana Sinimbú, Lucinha Bastos, tem muitos outros jovens lá que fazem o nosso carimbó porque eles sabem que têm que trazer também o balanço e a pitadinha deles. A Dona Onete colocou o carimbó chamegado dela, por exemplo. Cada um vai fazendo o balanço de um jeito, dando o nome, e a gente, com isso, vai conseguindo pôr o carimbó lá em cima.
O POVO - E em relação à modernização da própria carreira, você procura trazer novos ritmos, novas pessoas e novos sons?
Pinduca - Eu acho isso muito bom. Eu fui o pai, padrinho, enfim, redescobridor dessa modalidade de querer fazer do carimbó uma música jovem, para jovens. Eu lhe falei, antigamente o carimbó era dançado só por gente de idade, senhoras e senhores que levantavam pra dançar carimbó, os músicos eram aqueles antigões... Hoje em dia não, até as crianças gostam, faço show em escola com a criançada vestida com roupinha de carimbó, os meninos dançam, pulam! (risos) O carimbó é muito envolvente, é tipo o samba. Quando toca o nosso samba, o brasileiro não fica parado, ele bate o pé ou a mão. O carimbó é gostoso, então é por isso que acontece tudo isso. O meu CD mais recente (No Embalo do Pinduca Vol.2 - Pinduca Diferente Nº 40) é um disco moderníssimo, muito moderno. Novo, novo, novo! Isso tem a ver não só com pegar a música, colocar sal aqui, pimenta, não. É você ir modernizando. Como? Eu vim de um sistema de gravação antigo, e hoje em dia a gente até não acredita que aqueles foram discos que venderam tantas mil cópias quando vê o tipo de gravação. Não só meus como dos outros também. Nesse disco novo, é modernizar na letra, por exemplo. As letras antigamente eu me baseava no que era o canto de dor do escravo: "Menina, menina, me diga seu nome/ Meu nome é botão da ceroula dos homens/ Aperta o nó do teu vestido/ A barra da saia está muito comprida" (cantando). E acabou a letra, era essa a letra do carimbó antigo. Hoje em dia eu faço o carimbó com letras maiores, porque o certo no carimbó é que a letra tem que contar uma historinha. Hoje em dia a gente faz letras "desse tamanho", diferentes, modernas.
O POVO - O carimbó é muito popular e também tem, em si, muita diversidade de público. Como você pensa os seus shows para esse público?
Pinduca - No meu show, eu não vou dizer que faço uma apresentação que alguém pode assistir e aprender muita coisa sobre o carimbó. Eu sempre divulguei que elas eram pras pessoas dançarem à vontade, como sentissem o gosto de dançar naquele ritmo. Mas o carimbó tem um balanço legal, tem os trejeitos de se dançar, porque é uma música afro-brasileira com influência indígena e portuguesa. Indígena no arrastado do pé, a portuguesa vem com aquelas saias, tem tudo isso. Mas no meu show, não, meu show é popular, pra massa, pro povão dançar à vontade. Não vou dizer que a pessoa vai aprender como que dança e o que é o carimbó. Você vai assistir ao show porque é de um cantor que canta um bocado de música alegre!
Show
A entrevista foi realizada no dia 22 de junho na pousada em que Pinduca estava hospedado. Mais tarde naquele mesmo dia, ele seria a atração principal de uma festa de São João de uma casa noturna na Praia de Iracema
Novo disco
Parte da discografia do paraense está disponível nas plataformas de streaming, mas há muitas canções e álbuns encontrados somente no YouTube. É o caso, inclusive, do mais recente lançamento, No Embalo do Pinduca Vol.2 - Pinduca Diferente Nº 40. Ouça na página do artista: encurtador.com.br/bmPW8
Grammy Latino
Em 2017, o artista foi indicado ao Grammy Latino pelo álbum No Embalo do Pinduca, produzido por Manoel Cordeiro, na categoria Melhor Álbum de Raízes Brasileiras