Vencedor do Oscar de 2014 na categoria Melhor filme estrangeiro, o italiano A Grande Beleza retrata a vida do escritor Jep Gambardella, interpretado por Toni Servillo. O protagonista do longa de Paolo Sorrentino, aos 65 anos, só publicou um romance ainda durante a juventude. Questionado por uma leitora sobre o motivo de não escrever um segundo livro, após a aclamação do primeiro título, o artista responde que estava em busca da grande beleza. "Sobre Lutas e Lágrimas não nasce de uma grande beleza: nasce de uma noite de infâmia, a noite do 14 de março de 2018, com o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. O Gambardella busca a grande beleza, mas meu livro nasce do horror", partilha o jornalista e escritor carioca Mário Magalhães.
Autor da obra Sobre Lutas e Lágrimas: uma biografia de 2018, publicada pela editora Record no último mês de junho, Mário Magalhães é cartógrafo de um tempo. Nascido no Rio de Janeiro em abril de 1964, o repórter por ofício — e vício — recebeu cerca de vinte prêmios e menções honrosas no Brasil e no exterior, como Every Human Has Rights Media Awards, Prêmio Vladimir Herzog, Prêmio Dom Hélder Câmara e Prêmio Esso de Jornalismo. Em sua obra mais recente, biografa o ano de 2018 que, para ele, ainda não acabou.
Ouvinte atento e pesquisador aguerrido, Mário Magalhães é autor também da biografia Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo (2012) e prepara uma biografia de Carlos Lacerda. O jornalista escreve por acreditar que "é um direito democrático dos povos conhecer a sua história".
O POVO - Como sua trajetória no jornalismo se iniciou?
Mário Magalhães - Eu não tenho aquelas histórias de vocação precoce para contar. Eu sou carioca, mas dos nove aos 19 anos eu morei em Pelotas (RS) e meu Ensino Médio foi feito na Escola Técnica Federal, eu sou técnico em edificações. Também fiz um semestre de Pedagogia na Universidade Federal de Pelotas, mas a ficha caiu que eu não tinha nem talento e nem vocação para o magistério, então resolvi voltar para o Rio e fazer vestibular para Jornalismo. Desde a infância eu era um leitor contumaz não somente de literatura, mas também de jornais impressos diários. Aprendi com meu pai a ler e por isso eu fui para faculdade de Jornalismo, estudei na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Quando eu ainda estava na faculdade, em 1986, comecei a trabalhar no caderno de cultura da Tribuna da Imprensa, o Tribuna Bis. Em 1987, me transferi para o Segundo Caderno do O Globo e, antes de o ano acabar, deixei O Globo para ser responsável pelas entrevistas e pesquisas documentais do que mais tarde viria a se chamar Chatô, o Rei do Brasil. Ou seja, a minha principal ocupação no jornalismo entre 1988 e 1989 foi fazer pesquisa para o Fernando Morais, foi a primeira vez que eu trabalhei sistematicamente com documentação histórica.
OP - O senhor ocupou o cargo de ombudsman da Folha de São Paulo entre 2007 e 2008. Como foi seu ingresso no jornal?
Mário - Em 1990, eu fui para Portugal e passei o ano editando publicações institucionais numa agência de publicidade. Voltei para o Brasil na virada de 1990 para 1991 e acabei ficando em São Paulo, então fui trabalhar no Estado de São Paulo — primeiro na editoria de Cidade e, depois, no caderno destinado a adolescentes. Em setembro de 1991, entrei na Folha de São Paulo para ser editor assistente de um suplemento também focado em adolescentes, a Folhateen. Já em 1992, me transferi para a editoria de esportes, a editoria em que sempre tive mais prazer em trabalhar. A partir de 1993, eu me tornei o setorista da Folha na cobertura da Seleção Brasileira. Com saudade da minha filha mais velha, eu voltei para o Rio e continuei a trabalhar na sucursal da Folha. Até 1998, eu fui repórter de esportes e depois me tornei repórter especial da Folha. Eu acabei cobrindo pela Folha a Copa de 1994 nos Estados Unidos; a Copa de 1998 na França e a Copa de 2002 na Coreia do Sul e no Japão. Em 2002, todos os dias eu contava histórias do cotidiano local da Coreia e do Japão numa série chamada Turista ocidental; eu ia para o supermercado onde vendiam cachorros para comer, eu ia para as manifestações semanais das sul-coreanas que tinham sido escravizadas sexualmente pelos japoneses na Segunda Guerra. Fiquei como repórter especial até 2003, então pedi as contas para me dedicar a um projeto de livro e, semanas depois, escolhi biografar o Marighella. Voltei para Folha em 2006, quando meu pé de meia acabou, e em abril de 2007 eu fui convidado para ser ombudsman, função que exerci até abril de 2008. Eu me tornei o primeiro ombudsman para qual a Folha de São Paulo impôs uma condição para fazer a proposta de renovação de mandato (segundo a coluna de Mário Magalhães publicada em 6 de abril de 2008, o jornal condicionou a permanência ao fim da circulação na internet das críticas diárias do ombudsman). Como à época eu considerei que a mudança implicaria a redução da transparência, eu não aceitei. Continuei na Folha como repórter especial e, em 2008, escrevi o que consta ser até hoje a mais premiada reportagem da Folha, que eu assino com o repórter fotográfico Joel Silva. A gente investigou a vida dos cortadores de cana no interior de São Paulo; chama-se Os anti-heróis - o submundo da cana.
OP - Sobre Lutas e Lágrimas é um livro "escrito a quente", "no olho do torvelinho". Como foi o processo de apuração?
Mário - Eu conto o que eu testemunhei, o que eu vi, o que eu pensei e o que eu senti. O verbo sentir marca uma diferença na maneira que este livro foi escrito para boa parte do que escrevi na minha vida de jornalista, em 33 anos de jornalismo profissional. Por que o sentir? Porque esse livro é escrito muito com o coração. Isso não significa, penso eu, que eu tenha produzido uma prosa melada, adjetiva, até porque a minha narrativa é um pouco seca. Eu adoraria que ela fosse seca como a do Graciliano Ramos, que era um escritor cujo corpo retratava a própria prosa — prosa magra como o corpo dele —, mas não é um relato adocicado. Tem coração não por mim, mas pelo ano. Eu sustento que é um ano que vai influenciar o Brasil por muito tempo, é um ano em que o Brasil flertou com o apocalipse. Ao meu juízo, Sobre Lutas e Lágrimas é sobretudo uma obra de repórter. Eu mais conto do que opino, então os melhores momentos do livro, pra mim, são momentos de repórter.
OP - Quais os maiores desafios dessa escrita?
Mário - Eu tinha vários desafios. Por exemplo, desafios narrativos. A biografia do Marighella é dividida em três partes. A última, que trata do período da luta armada, o protagonista é morto; os amigos e companheiros dele são presos, torturados, assassinados, expulsos do País, perseguidos. Desde o início, no Marighella, eu buscava alguma história que tivesse alguma delicadeza e um tanto de lirismo para concluir o livro. A terceira parte do Marighella é sangrenta e eu consegui. Isso exige apuração, porque eu sou um autor de não-ficção. A criatividade e a arte estão na narrativa, na maneira de contar, não nos fatos narrados. Sobre Lutas e Lágrimas é tão barra pesada, o ano de 2018 foi tão duro, que eu queria abrir com uma história que não tivesse o clima do ano. Eu me lembrei que Zuenir Ventura, no clássico 1968: o Ano Que não Terminou, começava o livro com a festa de Réveillon na casa da professora Heloísa Buarque de Holanda e do seu então marido. Eu tive a ideia de saber como havia sido o Réveillon da Marielle Franco, foi quando eu falei com a Mônica Benício pela primeira vez. Liguei para ela, perguntei se ela poderia dizer onde, com quem e em qual circunstância a Marielle passou o Réveillon e ela disse: "Comigo". Nós marcamos a entrevista da Mônica. Isso era um desafio narrativo que eu tinha, eu não queria começar o ano com as dores todas dele, embora contar uma história de sonhos e esperanças na virada do ano seja ainda mais dilacerante. Elas estavam planejando o casamento, elas teriam um filho juntas. É uma virada de ano de sonhos e esperanças frustrados pela infâmia. Outro desafio narrativo era o seguinte: o capítulo do segundo turno é muito latente. Todo mundo sabe que, na contagem de votos válidos no dia 28 de outubro de 2018, Jair Bolsonaro obteve 55% e Fernando Haddad 45%. Como contar a história daqueles dias? Eu tive a ideia com a ilusão do vira-voto. Abro com o último comício com a presença de Haddad no Rio, dezenas de milhares de pessoas no Arco da Lapa, chegou a notícia de que a distância entre ele e o Bolsonaro havia diminuído de acordo com o Ibope e a massa grita "vai virar, vai virar". Uma jovem, com então 17 anos, chamada Ana, diz uma frase que sintetiza todo o tensionamento entre cabeça e coração no ano de 2018: "Tô com esperança e isso é um perigo". O desafio que eu tinha era como contar de uma maneira mais interessante e amarrada literariamente um capítulo cujo resultado todo mundo sabe.
OP - O senhor estava apurando na rua, então?
Mário - Sim, eu estava na rua. O capítulo sobre as mortes da Marielle e do Anderson se concentra na passeata do dia seguinte no Centro do Rio, é um dos capítulos mais comoventes do livro por causa do horror da véspera. A minha intenção foi contar para os leitores como eu sentia, era todo mundo muito próximo, não tinha sobrenome. Era uma combinação de desespero, de desabafo, de angústia, de dor e também, paradoxalmente, de esperança. Duas ou três semanas antes do assassinato da Marielle, eu tinha escrito uma coluna para o The Intercept Brasil, estava começando março... Naquele mês, eu lembrava o assassinato do estudante Edson Luís de Lima Souto por um policial militar durante a ditadura, que no dia 28 completava 50 anos. Eu termino o artigo dizendo que o Brasil hoje vive uma mortandade de jovens muito maior que no passado. Com a letargia de hoje, o que aconteceria se ocorresse um crime semelhante ao do Edson Luís? Evidente que eu não imaginava o que poderia acontecer, mas a resposta houve. Quando matam a Marielle e o Anderson na noite 14 de março, no País inteiro gente que se sentia letárgica se viu obrigada a sair de casa e ir pra rua no dia seguinte. Nas manifestações do #EleNão eu também estava na rua. Agora é o seguinte: eu estava sempre na rua com um caderninho e uma caneta, eu estava sempre na rua apurando como repórter. Eu não estava como manifestante. É uma balela dizer que existe gente filha de chocadeira, que não tem opinião e nem coração. Não, meu coração estava com aquelas manifestações, mas eu estava lá para contar história. Vários capítulos do livro são de apuração na rua. O ano de 2018 foi um ano muito de rua, pro bem e pro mal. Por que o livro se concentra no Rio de Janeiro? Porque a Marielle Franco é do Rio, porque o Jair Bolsonaro fez a carreira política e morava no Rio e a maior manifestação em defesa à libertação do Lula foi na Lapa, no Festival Lula Livre (28 de julho de 2018).
OP - Zuenir Ventura biografou o ano de 1968, mas a obra foi publicada apenas em 1988, 20 anos depois. Como biografar um ano que, em sua leitura, ainda não acabou? Qual é a importância dessa análise tão urgente?
Mário - É a hora de contar o que foi 2018 e continua sendo, recusando a versão, a leitura e a interpretação dos partidários do obscurantismo que foram vitoriosos no ano passado. Um livro, sendo escrito a quente, no calor dos acontecimentos, não é necessariamente melhor e nem pior que um livro escrito 50 anos depois. Ele é diferente. Daqui a 20 anos, se eu viesse a escrever um livro sobre 2018, seria um livro diferente porque eu já saberia que certos acontecimentos que me impressionaram demais não tiveram, do ponto de vista histórico, toda essa importância e certamente eu também descobria que eventos para os quais não dei muita bola influenciaram o Brasil de uma maneira decisiva. Hoje se fala muito em resistência às trevas e contar também é resistir. É uma coisa que eu precisava: contar. Daqui a um século, quem quiser saber como e quem resistiu ao que eu considero um surto de barbárie no Brasil de 2018 vai ter uma fonte. Sobretudo, o livro fala com o presente porque todas essas questões de 2019 já estavam anunciadas em 2018. Estou trabalhando desde 2015 na biografia de Carlos Lacerda e desacelerei o projeto para contar 2018 porque era uma coisa urgente — não por um capricho meu, mas porque eu acho que o Brasil hoje está repleto de urgências. Eu não sou um militante político, eu sou um contador de histórias. O que eu podia fazer era contar essa história do modo como eu vivi.
OP - Como Bolsonaro, Marielle e Lula se entrelaçam para tecer este que o senhor considera "o ano em que o Brasil flertou com o apocalipse"?
Mário - As datas marcantes do ano são 14 de março, assassinato da Marielle; 7 de março, prisão do Lula; 6 de setembro, a facada no Bolsonaro e 28 de outubro, a eleição do Bolsonaro. Essas datas decidem o ano de 2018. Eles são três protagonistas porque 2018, como 1968, é um ano de tensionamento, de conflagração. É impossível definir um protagonista único. Uma coisa é o País do Bolsonaro; outra coisa é o País do Lula; e outra coisa eram os sonhos de uma jovem de 38 anos chamada Marielle Franco. A prisão do Lula e a condenação dele, em segunda instância, vão atravessar o ano e definir o resultado eleitoral. Como mostrou o Datafolha no fim de agosto, o Lula teria uma vitória confortável na eleição. O Bolsonaro dispensa explicação da relevância dele, embora eu tenha feito uma coisa no prólogo que eu nunca tinha feito: fiz um mergulho para escrever um inventário da mentira que mais influenciou uma eleição na história do Brasil, a do kit gay. Começou em 2010, eu recapitulei várias mentiras que influenciaram os brasileiros desde a década de 1920 e uma pesquisa de opinião mostra que 85% dos eleitores do Bolsonaro acreditaram no Kit Gay.
OP - Nunca antes as chamadas fake news foram tão fortes e disseminadas. O senhor acredita que a desinformação alterou as urnas?
Mário - Quando o Bolsonaro lança a cascata do Kit Gay em 2010, o alvo dele era o então Ministro da Educação: Fernando Haddad. É impressionante isso, a mentira do Kit Gay tem um resultado ampliado devido ao antagonista do Bolsonaro. Uma coisa seria dizer que o Lula, que foi presidente, iria distribuir nas creches mamadeiras com o bico em formato de pênis. Ninguém ia acreditar. Outra coisa era o Haddad. O impedimento da participação do Lula na eleição influencia a eleição de modo decisivo. A Marielle é protagonista do ano não apenas devido a covardia da qual ela foi vítima, mas porque os temas que ela abordava na militância e na vida são temas que vão marcar 2018 do início ao fim, desde o combate às milícias, passando pelas críticas ao Supremo Tribunal Federal e até o combate dela aos preconceitos de gênero. É incrível como a vida da Marielle fala ao Brasil, o quanto ela tem a dizer. Não é à toa que, mesmo que ela tenha sido assassinada da forma que foi, ela teve a memória atacada e vilipendiada o tempo inteiro. Quando as pessoas falam "Marielle vive" não é apenas simbólico — a Marielle vive porque as lutas e as causas pelas quais ela combateu continuam motivando muitos e sendo rejeitadas por outros.
OP - Qual é o papel da imprensa na construção do cenário político de 2018?
Mário - A despeito do trabalho dos repórteres e das circunstâncias difíceis dentro e fora das redações, eu sustento que a reportagem mais importante do ano é a da jornalista Patrícia Campos Mello na Folha de São Paulo mostrando como foi ilegalmente montado um esquema no WhatsApp para favorecer o candidato vitorioso em outubro. Apesar disso, sou muito crítico em relação ao jornalismo porque o jornalismo brasileiro, por omissão ou por ação, acabou influenciando, sim, o resultado eleitoral. O exemplo nítido é a maneira acrítica como o jornalismo cobriu a Operação Lava Jato. Em vez de exercer o papel de fiscal do poder — inclusive da polícia, do Ministério Público e do Judiciário —, o jornalismo se comportou como um mero divulgador da pregação e das ações da Operação Lava Jato. Uma declaração da ex-chefe d comunicação/assessoria de imprensa da Operação Lava Jato diz que era muito fácil vender as informações, não no sentido econômico e financeiro, mas passar informações que seriam retransmitidas por jornalistas sem nenhum esforço de apuração autônomo. Ou seja, o jornalismo simplesmente se contentou em reproduzir as versões da Operação Lava Jato e em 2018 isso já estava claro. Como eu costumo dizer, quem quis ver, viu. No fim de janeiro, um dos três desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que condenou o Lula no processo do triplex e aumentou a pena, disse algo mais ou menos assim: "Se responde a processo, é porque alguma coisa aprontou". Ora, a Constituição garante presunção de inocência. Aplicado o pensamento desse magistrado, em nenhum lugar do planeta e nem em qualquer época haveria um só réu inocente. É por isso que eu digo: cada um pode achar o que quiser do ex-presidente Lula. Quem quiser achar que é ladrão, que ache; quem não quiser achar que o Lula é ladrão, que não ache. As pessoas podem simpatizar ou não com o Lula, mas há um aspecto que é inegável — ele não foi submetido a um julgamento justo. Ninguém precisa gostar do Lula para reconhecer que as idiossincrasias, os métodos da Operação Lava Jato não ofereceram a ele, Lula, um processo justo.
OP - Diversos jornalistas, inclusive o senhor, são continuamente acusados de uma afinidade com a esquerda. Como o senhor observa o movimento de descredibilização da imprensa a partir de um julgamento político-partidário?
Mário - As pessoas perguntam se o livro que eu escrevi é partidário. A resposta é positiva: ele é partidário da civilização contra a barbárie, é disso que se trata hoje. Nunca houve um candidato na história do Brasil que fustigasse tanto o jornalismo quanto Jair Bolsonaro. O papel social da imprensa, essencialmente, é informar. Eu discordo de quem supõe que cabe ao jornalismo mudar o mundo. Mudar o mundo ou manter o mundo como ele é, isso é prerrogativa de cidadãs e cidadãos. O problema é que, quando a imprensa informa, ela incomoda o poder — em qualquer regime do planeta, em qualquer época, da direita à esquerda e passando pelo centro. O poder não gosta do jornalismo. O Bolsonaro deixou isso claro. O jornalismo brasileiro vai ter que escolher entre se submeter ao poder sobre o Bolsonaro ou exercer plenamente as suas atribuições de fiscal do poder. Já estava claro que o Bolsonaro ia tentar destruir o jornalismo independente no Brasil. Como presidente, ele confirma as declarações enquanto candidato. Em muitas décadas, o jornalismo brasileiro nunca foi tão imprescindível quanto hoje. Agora, quando eu falo jornalismo, eu falo de jornalismo com espírito crítico — isso significa observar que existe uma espécie de dupla personalidade em boa parte do jornalismo mainstreaming hoje no Brasil. Na cobertura política, o jornalismo informa escrupulosamente os abusos e as ameaças do presidente da República, mas as editorias de economia funcionam como alto falantes propagandístico da política conduzida pelo ministro Paulo Guedes. Mesmo durante o governo do ditador cearense Marechal Castelo Branco, quando o ministro do planejamento era o ultraliberal Roberto Campos, havia mais criticismo na imprensa brasileira do que hoje, em que a política do Paulo Guedes é aplaudida e incentivada. O espírito crítico diante do poder, na minha opinião, tem que ser exercido tanto nas páginas de política, quanto nas de economia e também nas de cultura. A gente vê o fenômeno do recrudescimento da censura se expandido agora com o aparato do Estado nas mãos de viúvas da ditadura e de adeptos do liberticídio cultural. É inaceitável que um governo defina financiamento de projetos culturais de acordo com critérios políticos ideológicos.
OP - Vivemos tempos de severo esquecimento e negação das barbáries cometidas durante o regime militar no Brasil. A que o senhor atribui esse fenômeno?
Mário - Isso tem muito a ver com impunidade dos agentes de Estado que mataram, torturaram e desapareceram com corpos de oposicionistas, ao contrário do que ocorreu com criminosos de guerra na Alemanha, que até hoje julga, e ao contrário do que aconteceu também na Argentina. O Coronel Brilhante Ustra nunca foi punido, nunca foi condenado. O que a justiça fez foi declará-lo torturador. Enquanto o Brasil não fizer um ajuste de contas com os agentes de Estado matadores e torturadores, as coisas vão continuar assim. Tão grave quanto pessoas irem às ruas e o presidente da República defender a memória do chefe do maior campo de concentração urbana da história da ditadura é a manutenção da tortura em larga escala nas delegacias brasileiras. O extermínio de jovens negros que se amplia e aumenta em estados hoje como o Rio de Janeiro. Esse saudosismo da ditadura é alimentado pela impunidade. Se um candidato à presidência da República na Argentina fizesse um elogio da truculência e da barbárie como Bolsonaro fez, ele seria impedido de concorrer. Se o presidente argentino dissesse as coisas que o Bolsonaro diz, ele seria derrubado — e não seria derrubado somente pela esquerda, isso é muito mais amplo, isso é uma questão de civilização. É óbvio que a defesa da civilização não é restrita a determinados segmentos políticos. Os liberais são de direita, mas um liberal da gema não aceita ditadura, não aceita violação dos direitos humanos. Pra mim, um dos problemas mais graves na cobertura do jornalismo na eleição foi igualar como extremistas contendores que não eram iguais. O Bolsonaro, de fato, é um extremista — gente que diz que feminicídio é mimimi é extremista —, e o Fernando Haddad não tem nada de extremista, considerado sob os olhos de qualquer cientista político.
OP - A partir dessa escuta de especialistas e demais fontes, como o senhor desenha uma arena pública de debate hoje?
Mário - Um dos maiores desafios da cidadania no Brasil hoje é manter e ampliar os espaços de debate público que são atacados por inimigos da democracia. Autoritários, partidários de ditaduras, tentam impedir a livre manifestação de ideias e o livre debate. Toda a truculência tenta impedir a manifestação do pensamento divergente, é um enorme desafio manter os canais e as possibilidades de se discutir o Brasil. O presidente da República já disse várias vezes que gostaria que o Brasil tivesse um regime instaurado nos moldes daquele de 1964. A gente sabe o que aconteceu com quem divergia do Brasil naquela época.
Lançamento
Mário Magalhães lançou Sobre Lutas e Lágrimas - Uma biografia de 2018 (Record) em Fortaleza no último dia 17 de agosto. O evento foi uma ação do Porto Iracema das Artes e do Instituto Dragão do Mar na XIII Bienal Internacional do Livro
do Ceará
Debate
O lançamento contou com um debate entre Mário Magalhães e o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ). Com o tema "O mar da História é agitado", a mesa foi mediada diretora do Porto Iracema das Artes,
Bete Jaguaribe.
Títulos
Além de Sobre Lutas
e Lágrimas - Uma biografia de 2018 e Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo, Mário Magalhães também é autor da obra O Narcotráfico. (2000)