Ascendência e descendência são marcadas nas memórias e na prosa de Angela Gutiérrez como letras nas páginas de um livro. É da sua família que vem o amor pela leitura. Mais do que profissão, hobby ou arte, a literatura é "o ar que respira". Em seus passos como professora e gestora, ela abriu portas para que as mulheres pudessem avançar. A escritora é a primeira mulher a assumir a presidência da Academia Cearense de Letras (ACL), da qual ocupa a cadeira 18 há 21 anos, e a receber o título de Professora Emérita da Universidade Federal do Ceará (UFC) no campo da Literatura.
Em entrevista ao O POVO, Angela rememora a trajetória acadêmica e analisa a educação no País. Para a conversa, a professora abriu as portas da casa, recheada de pinturas, esculturas e fotografias que espelham a própria vida. Bisneta de Tomás Pompeu — advogado, professor, político e escritor cearense — Angela é uma guardiã das histórias da família. Das quais algumas foram ficcionalizadas e eternizadas em suas obras como O Mundo de Flora, romance indicado para o vestibular da UFC em 2007. Se a leitura é o próprio ar, a família, marido, filhos, genro, noras e netos "são a casa do meu ser", descreve.
O POVO - A sua relação com a literatura tem origem familiar e você situa o seu pai como um guia no caminho dos livros. Como isso começou a ser incutido em você?
Angela Gutiérrez - Eu acho que foi o fato de eu ter nascido na casa do meu bisavô, Tomás Pompeu, que já tinha falecido há muitos anos, quando minha a mamãe tinha 12 anos. Eu digo brincando que eu nasci em uma biblioteca. Porque a casa inteira, além da biblioteca, que era linda, tinha paredes cheias de livros. Eu nasci mesmo lá porque meu vô, Dr. César Rossas, fazia todos os partos da mamãe. Eu tive contato com livro desde sempre. Não posso me lembrar o dia que eu vi um livro pela primeira vez. E eu me impressionava muito com os livros, eu achava que ali dentro deveria haver muitos segredos. Cedo eu comecei a perguntar a meu pai, Luciano Cavalcante Mota, e mostrar curiosidade sobre livros. Não sei se foi o primeiro, mas o primeiro que eu lembro foi o Inferno, parte da Divina Comédia, de Dante (Alighieri), que era enorme e estava sobre uma mesinha. Deveria ter uns quatro anos quando tentei abrir com as duas mãos e fiquei assustada com as figuras. Meu pai foi me explicando, me incentivando. Por outro lado, eu tinha dentro de casa dois excelentes contadores de histórias: meu avô e minha mãe, Angela Lais Pompeu Rossas Mota. Minha mãe foi uma guardiã da memória da família junto com a irmã, minha tia queridíssima Maria Rossas Freire. Elas contavam muitas histórias riquíssimas e acontecimentos não só da família, também das pessoas que visitavam, conhecidos. Muitas delas, modificando, ficcionalizando, eu aproveitei a ideia para o Mundo de Flora, por exemplo. Apesar de ter saído da casa com cinco anos, é impressionante a memória que ficou gravada de tudo que vi, ouvi, senti. Depois fomos para o sítio, em Mondubim, porque minha avó não estava muito bem de saúde. Era em frente ao sítio de Estrigas (Nilo de Brito Firmeza), que eu chamo de Nilo. É inesquecível para mim, aquele casal. Eram tão carinhosos comigo. Ele fez uma ilustração para o Mundo de Flora porque eu dizia que a menina ficava sob as árvores lendo. Então, a literatura entrou em mim assim como o ar que eu respiro. Acho que posso dizer isso. Meu pai levava todos para o colégio de manhã bem cedo e nos recolhia e nos deixava com meu avô. A escola não me estimulava tanto assim. O que eu queria, minha grande felicidade era chegar em casa e começar a ler. Nas férias, o papai todo dia me entregava um livro. Eu dizia que ele chegava com a Estrela D'alva porque eu ia esperá-lo no portão de casa. Quando eu olhava e cantava, a estrela aparecia. Era um encanto. Quando eu via, o carro dele estava atravessando a entrada. O papai me dava livros conforme a minha idade e conforme ia lendo. Com 13 anos eu já tinha lido (José de) Alencar todo, bastante de Machado (de Assis), muita coisa de (Gustave) Flaubert. Papai gostava muito de literatura francesa e eu também. A primeira vez que eu cheguei em Paris eu já era casada e tinha todos os filhos e meu marido ficou impressionada porque eu sabia delinear mais ou menos a cidade. Nessa época, final dos anos 1980, não tinha a facilidade de acessar tudo. Mas de tanto ler os livros que se passam lá, sabia. Os Mosqueteiros… Eu era D'Artagnan. Todos os heróis de capa e espada. As Meninas Exemplares, da Madame Segur. Só que eu não queria ser as meninas exemplares, não. Nunca desobedecia meus pais, mas sempre me achava no direito de pensar diferente, de ter minhas próprias ideias. Esse foi meu caminho na literatura. Era natural que me dirigisse para Letras. Quando entrei, tudo aquilo foi organizado. Tive excelentes professores. Cito Artur Eduardo Benevides, de Literatura Brasileira; Moreira Campos, de Literatura Portuguesa; e Pedro Paulo Montenegro, que faleceu há pouco tempo e de quem estamos sentindo muita saudade, em Teoria da Literatura. Ele deu princípios de teoria para que viesse a organizar meu pensamento crítico literário.
OP - Você começou a escrever muito nova. Como foi essa experiência de escrever ainda na juventude? Quais eram suas referências?
Angela - Foi um pouco difícil porque eu criei padrões altíssimos. Meu pai só me dava para ler o que havia de melhor. Guimarães Rosa eu li antes de entrar na universidade. O que eu escrevia, eu escondia. Dizia: é muito tolo, que coisa boba. Sempre li muito poetas, Carlos Drummond (de Andrade), (Manuel) Bandeira, Jorge de Lima e muitos outros cearenses e estrangeiros. Poesias, romances, contos, Os Lusíadas, Odisseia… Não adiantava eu escrever mais uma coisinha para publicar. Eu escrevia e guardava. Uma noite eu estava adoentada, com uma síndrome reumática que poderia se transformar em algo mais grave mas poderia retroceder e acabar. E desde criança eu durmo muito mal. Isso até me levou a um certo medo da noite porque ficava acordada ouvindo todos os barulhos da noite. Sabe como é imaginação de quem lê muito. Pensava: se essa doença piorar e eu morrer tão jovem, gosto tanto de literatura e não escrevi nada. Me levantei, sentei no closet desta casa, peguei um caderno e comecei a escrever. É impressionante, já tinha tanta coisa dentro da minha mente. Ele já nasceu assim, fragmentado. São pedaços contados em primeira pessoa outros por outra pessoa. Eu escrevi em um caderno o começo, o meio e até propostas para o fim. Não disse para ninguém. Nem para o meu marido, que confiamos muito um no outro, porque ele ia pedir para ler e eu achava que não estava bom. Eu lembrava de alguma coisa, escrevia um pedaço e jogava na gaveta. Até que um dia um sobrinho meu, Augusto César, entrou e perguntou o que eu estava escrevendo. Pediu para ler. Ficou emocionado e disse que era muito lindo para não ser publicado. Aí resolvi mostrar ao meu marido. Apesar de toda confiança que eu tinha ao meu pai, eu não queria decepcioná—lo. Então, não mostrava a ele. Meu marido gostou. Eu mandei datilografar e criei uma coragem que não sei de onde saiu e entreguei a Moreira Campos, Artur Eduardo Benevides, Sânzio (de Azevedo) e Horário (Dídimo) com o coração tum tum tum tum tum tum. No outro dia, o dr. Artur chegou com ele todo anotado e com uma carta longa de quase 30 páginas. O Moreira Campos dizia: 'minha filha, estou adorando mas eu vou levar mais algumas semanas para ler porque gosto de ler com a Zezé' (Maria José Alcides Campos), sua esposa. O Horácio chegou com um poema para O Mundo de Flora. "A flor menina do casarão nunca termina a sua canção". E o Sânzio, que é o maior especialistas em literatura cearense do mundo, como eu digo, escreveu um artigo muito bonito dizendo que seria uma estreia que iria marcar. Então, tive uma receptividade tão grande que resolvi me candidatar ao Prêmio Estado do Ceará e ganhei com o livro inédito. Depois, foi publicado. Não foi fácil que eu passei à escritora, tive uma certa angústia.
OP - Como apresentou o livro a seu pai?
Angela - Depois que disseram que estava maravilhoso, eu criei coragem. Aquela pessoa que eu queria que realmente gostasse do meu livro era ele. Levei ainda datilografado. Ele leu, me abraçou e disse: 'você é uma escritora'. Respirei. Ele queria até que eu não assumisse nenhum cargo de gestão. Dizia:' você perde muito tempo em que poderia estar escrevendo'. E é verdade. Ao longo da minha vida universitária e, depois, na Academia, aceitei cargos de gestão que são trabalhosos. Fui fundadora do curso de mestrado em Letras, que fez 30 anos.
OP - Como foi conciliar esses dois papéis de escritora e acadêmica?
Angela - Eu acho que durante toda a vida dei mais do meu tempo e esforço para a universidade. Mais do que para a minha escrita. Muitas pessoas conseguem equilibrar. Eu não consegui. Fui muito mais professora do que escritora. Às vezes, eu tinha vontade, estava cheia de ideias para escrever algo. Mas eu tinha que fazer projetos, programas. Embora quisesse muito continuar com mais frequência à escrita, me doei muito. Algo interessante é que no meu discurso de posse (de Professora Emérita da UFC), eu disse que toda a vida eu amei a universidade. E, embora tenha tido momentos de homenagens, a universidade como um todo ainda não tinha se manifestado. A manifestação da universidade foi me dar o título de Professora Emérita, a primeira no campo das Letras. Esse momento foi uma aliança, como se a universidade me dissesse: 'o seu amor é correspondido'.
OP - A que se deve esse seu amor pelo ensino?
Angela - Quando li Grandes Sertão: Veredas, eu grifei "mestre não é quem sempre ensina mas quem, de repente, aprende". Ao longo da minha vida até brinco, peço licença ao Gonzaguinha, que eu sou uma eterna aprendiz. Para mim, o ensino não é dizer isso ou aquilo. É conversar com os alunos, ouvir o que eles têm a dizer, dar a minha experiência, perguntar o que eles refletem. É lembrar que literatura não é apenas um papel, literatura é a vida. O grande mestre Antônio Cândido dizia que a literatura tinha que dar algum resultado para a vida. A literatura sempre foi para mim meio misturada com a vida. Tanto que quando era pequena, antes de dormir, ficava pensando, representando. Eu entrava na literatura. Quando eu era criança, não importava, não me limitava aos papéis tão restritos da mulher. Eu queria ser a heroína, então assumia papéis masculinos também. Isso que na infância e na adolescência era eu querendo entrar na literatura, depois eu queria que a literatura entrasse na minha vida. Acho que nunca passei um dia na minha vida sem ler. Isso aprendi com meu pai. Ele lia diariamente mas, ao mesmo tempo, estava atento à vida. Ele podia estar adorando o livro, se você ia conversar com ele, ele fechava o livro e olhava para quem estava ali e se entregava àquela conversa. Eu acho que aprendi certas coisas de humanidade, de querer o bem-estar social, por causa dele. Ele se preocupava com os índios em uma época em que as pessoas não se preocupavam tanto. Hoje, eles estão correndo muitos riscos. Quando falamos índios, não falamos da forma correta. Porque são diferentes tribos, etnias. Pessoas que eram donas do imenso território do Brasil e que foram sendo empurradas mas precisa que se pare e se deixe que eles tenham direito aos seus territórios.
OP - Suas personagens femininas são muito fortes e muito ligadas a pessoas da sua família. Como era e é essa construção?
Angela - O Mundo de Flora não é um padrão de escritura. Todo escritor, hoje em dia, é profissional, só faz aquilo. Eu nunca fiz isso, infelizmente. Por causa desse meu amor aos alunos, à universidade. Mas agora posso começar a fazer. Mas ele foi escrito todo como esses escritores românticos que tinham a inspiração e começaram a escrever com toda a alma. Claro que no processo de carpintaria, depois de ter todos aqueles fragmentos, entrou a professora, a pessoa que estudou Teoria da Literatura e que leu muito. Mas a personagem, a Flora, realmente é muito inspirada em mim, nas minhas experiências, nas pessoas da minha família. A Branca começou no Mundo de Flora e foi a personagem central de Luzes de Paris e o Fogo de Canudos. A tia Alma faleceu quando eu tinha quatro anos, ela morava no Rio. Embora eu sinta como se tivesse a conhecido. Devo tê-la visto muito pequena. Eu tenho a memória dela pelas coisas que a mamãe dizia, minha avó. Eu tenho uma construção, assim como eu construí dentro de mim as pessoas da minha própria família, o meu bisavô. Eu ficcionalizei-os também. Usei até dados da realidade. Eu tinha um material muito rico para construir meus personagens. Tinha cartas, retratos, livros da minha tia-avó. Ela realmente foi estudar na Inglaterra. Agora, esses amores que eu coloquei, nunca ouvi falar. Ela sempre, desde criança, quis ser freira. E não foi porque o pai era livre pensador, ela não queria deixar os pais. A Morena, que é o contraponto da Branca, é um personagem que não foi inspirado em ninguém da família, foi inspirado em Alencar.
OP - Você foi em muitas escolas para falar sobre O Mundo de Flora, livro indicado para o vestibular da UFC. Como foi essa experiência de falar sobre sua escrita com os alunos? O que você recebia nesses momentos?
Angela - Foi um momento maravilhoso pra mim, encantador. Alguns disseram que era tolice o livro ir para o Vestibular. Para mim foi um sonho. Eu me encontrava, às vezes, duas vezes por semana, em escolas com estudantes que amavam o Mundo de Flora, amavam a Flora. Perguntavam por ela, conversavam comigo. Eu dava voz à eles. Uma pessoa pode ser sido um grande escritor e nunca ter tido essa oportunidade de tantas vezes ver o amor de jovens por um livro seu. Foi um momento de grande alegria. O livro entrou na vida deles. Eles diziam. Interessante que o livro era de 1990 e foi em 2007 para o Vestibular. Era da idade deles. O depoimento do leitor é muito sempre importante para o escritor. Ele não é uma leitura fácil. O tempo vai e volta, são inúmeros narradores. Eu tive medo que fosse difícil de ler. Vocês acreditam que não foi difícil? Eles captaram logo o modo de construção do livro. Tiveram excelentes professores, que se encantaram com o livro e passaram o encantamento para os alunos. Foi algo que me marcou como escritora. O próprio Moreira Campos disse que o início foi 'terremótico', mas depois não podia mais parar porque o livro o encantou. Se você ultrapassar algumas páginas e compreender como ele é construído, você entra na história. Ele era adorável, já nacionalmente conhecido, e eu uma aprendiz. Ele vinha conversar como se os livros dele e os meus fossem da mesma categoria. Ele dizia que eu tinha uma técnica que ele achava difícil de encontrar que era entrar direto na história sem preâmbulos, sem precisar explicar nem descrever personagens. Foi uma bela experiência que me deu forças, eu estava para publicar Luzes de Paris e o Fogo de Canudos. Quando fui escrever, já era pesquisadora de Canudos. É outro traço meu muito forte esse amor por Canudos e a história do Antônio Conselheiro. Canudos queria aparecer. E por coincidência muito grande. A época que a minha tia-avó foi para a Europa coincide com o começo de Belo Monte e eu pude colocar uma irmã de leite que foi para Canudos e outra que foi para a Europa. Quando elas se encontraram, daí que vem o título. Esse segundo romance pode ser lido por ele mesmo mas de certa forma é uma continuação para trás, para o século XIX.
OP - Você considera que sua gestão é o início de um novo ciclo na Academia?
Angela - Seria muita ambição minha dizer isso. Eu considero a academia como uma construção cultural que foi feita em 125 anos. Claro que tem fases. Ao longo do tempo, teve várias fases. Chegou a parar e depois retomou. Depois que chegou no Palácio da Luz, acho que devemos considerar uma nova fase. Porque ela pode ser mais aberta, abrigar outras academias. Ela teve um longo tempo em que foi caminhante, foi para um lugar e para outro. Teve sede em umas salas comerciais. Mas depois, teve sua sede dentro de um dos maiores patrimônios arquitetônicos, históricos e culturais do Ceará é muito importante. Foi cedida para nossa sede em 1989, portanto fazem 30 anos. Acho que isso significa muito. O fato de uma mulher ter sido eleita tem um significado, sim. Porque realmente o número de mulheres que já entraram na Academia relativo ao número de homens é muito pouco. A primeira mulher que entrou na Academia, a Alba Valdez, foi uma mulher forte, de coragem. Uma mulher além do seu tempo. Eu me inspiro muito nela. Tem um quadro do Raimundo Cela imenso que já era do palácio quando fomos para lá e que retrata a abolição da escravatura. Tem uma mulher representando a liberdade em pé em cima de uma jangada. Lendo discursos de posse e falas acadêmicas, vi que o Eduardo Campos, na sua posse, disse que havia uma lenda de que aquela mulher teria sido inspirada em Alba Valdez. Eu acho isso simplesmente lindo, maravilhoso. Aquela mulher simbolizar a liberdade. Uma mulher admirável e que marcou. Eu me sinto herdeira. Eu não tava dando essa importância extraordinária mas vi um número imenso de amigas e mulheres que nem me conhecem baterem no meu ombro e dizerem: você está me representando. Eu vi que é, sim, um momento que quebra um tabu e depois de mim ficam abertas as portas para outras mulheres.
OP - Sua visão é de aproximar cada vez mais a Academia da cidade e da juventude. Isso vem da sua vivência como educadora?
Angela - Eu sempre lidei com jovens e eu acho que é momento de eles sentirem a importância da cultura e da literatura. E do patrimônio como cultura também. Se nós nos aproximamos da Academia, ela deixa de ser aquele local distante com pessoas em torre de marfim. Não é assim. Os acadêmicos não são assim, eles querem essa aproximação. E, também, nós estamos no Centro da cidade. Temos que dialogar com cidade. O fato de um dos meus antecessores, o José Augusto Bezerra, ter trabalhado intensamente, ter se doado para recuperar o prédio da Academia é muito simbólico. A Academia retomou a sua vida. Eu dou continuidade a isso lutando pela infraestrutura. Às vezes, os dirigentes, também de outros locais e cidades, têm dificuldade em trabalhar com infraestrutura. Temos que tornar o ambiente agradável e seguro para as pessoas. Lutarmos para a manutenção, que não é fácil. Herdamos o prédio mas não temos ainda - o que é projeto do governo - como algo fixo a verba para a manutenção. Nós não precisamos fazer todo o tempo ações monumentais. Estamos começando com ações pequenas, rodas de conversa, leituras de poesias toda semana. Os alunos visitam muito a Academia. Estamos acompanhando isso. A nossa diretora cultural, a Lourdinha Leite Barbosa, tem ido. Eu também, além de outros acadêmicos têm ido conversar com esses alunos. Nós queremos intensificar o clube de leitura, rodas de conversa e todas essas que podem parecer pequenas ações, mas não são. Porque aquelas pessoas são multiplicadoras, como dizia Darcy Ribeiro, podem constituir novos clubes de leitura em outro lugar. A Academia apoia há muito tempo a Sociedade Amigos do Livro, a qual eu pertenço também. Ela age sobretudo criando bibliotecas onde elas inexistem. Estamos contribuindo com isso também. A Academia não precisa só fazer grandes solenidades. Não. podemos agir e estamos agindo em diversos segmentos e áreas. Isso é abrir as portas da academia para a sociedade.
OP- A senhora fala que a literatura é o ar que respira. Sua relação com os livros e com a universidade é muito forte. Como você avalia a leitura e a educação no Brasil tendo em vista o contexto atual de desmonte de universidades públicas?
Angela - Preocupadíssima. Muito preocupada com os rumos que estão sendo tomados, as propostas que estão sendo feitas pelo Governo do País com relação à educação e muito especialmente com relação as universidades federais. As nossas universidades foram muito bem aquinhoadas a partir dos anos 2003 e continuaram quase até agora antes do impeachment ou golpe. Depois disso, elas vêm sofrendo, sem lembrarem que as universidades brasileiras são respeitadíssimas. São bem colocadas em todos os rankings internacionais que se possa imaginar. Um país sem pesquisa é um país dependente. Nós temos que ter independência e autonomia para dizer quais são as pesquisas que são importantes fazer. Claro, recebendo sugestões, às sugestões, a universidade sempre esteve aberta. A universidade brasileira sempre se aliou para pesquisas com determinados com grupos privados quando aquilo vinha a favorecer a pesquisa e não interferia na autonomia da universidade. Um país em que você diminui todos esses projetos lindos que estavam e estão ainda em ação mesmo sendo podados... De dar a todos os brasileiros e não somente àqueles que nasceram em famílias que podem pagar faculdades privadas e etc. Essas bolsas que foram dadas a estudantes proporcionaram a possibilidade de estudantes de favelas, de pequenas cidades, pobres, que nunca tiveram acesso chegarem lá e chegarem bem. Na UFC, por exemplo, mais de metade dos alunos que entraram nos últimos anos são de escolas públicas. Isso é importantíssimo. Não se pode acabar com algo tão lindo. Acabar com o Ministério da Cultura causou uma tristeza profunda a todos que amam as artes, a literatura, a cultura. É triste demais. Eu nem vou entrar em outros aspectos econômicos, da dependência de países estrangeiros. O Brasil tinha soberania e o Brasil precisa conservar sua soberania que nos dignifica como nação. Então, os rumos que estão sendo apontados para a universidade vão contra a autonomia da universidade, a soberania do país e do acesso à universidade por parte de todos os brasileiros. É algo que me entristece profundamente. É importante dizer que eu estou falando como Angela Gutiérrez e não como presidente da Academia Cearense de Letras.
OP- Você falou um sobre o papel da mulher e o reconhecimento. Qual a importância dessa luta nos dias atuais?
Angela - Isso é de importância vital para a sociedade, não só para as mulheres. Realmente a mulher durante anos foi relegada a um papel secundário. Não que ser mãe e cuidar da casa seja algo indignificante. Ao contrário, eu adoro cuidar da minha casa também. Mas é um papel do casal, das pessoas que vivem em uma casa. Não só da mulher. Mas voltando à parte da cultura e da educação, a mulher durante muitos anos foi silenciada. Eu acho que o papel da mulher já deveria ter crescido mais. Tem uma expressão que não sei porque não soa bem no meu ouvido mas é muito significativa que é o empoderamento da mulher. Eu não uso muito porque há algo nesse nome que não me atrai. Mas é significativo o fato em si de as mulheres dizerem: eu sou mulher e tenho o direito de atuar na sociedade tal como nossos companheiros, os homens. E as pessoas que tem outras opções sexuais. Eu respeito a todos. Nós temos que lutar pelos direitos da mulher e de outras membros da sociedade que não são respeitados como deveriam ser. As diversas etnias indígenas, os negros, as pessoas de favela. A luta da mulher para ser respeitada tem que continuar. Temos que lutar todas juntas sem soltar as mãos. Não só a mulher, há outros segmentos da sociedade que precisam também de nós. Se nós conseguimos acreditar na nossa força, nem todos ainda conseguiram. Eu acho muito importante hoje em dia a força da escritora negra, por exemplo. Acho uma luta belíssima. Eu ainda me lembro, pequena, de um discurso que escutei em que se elogiava o homem e dizia que atrás dele tinha uma grande mulher. Atrás por quê? A mulher tem que está ao lado, andando junto, caminhando junto. Não atrás. Meu marido é um grande homem, médico, professor de medicina, pertence à Academia de Medicina, estudioso, fez história e faz na medicina, mas nunca quis, nem pediu, nem imaginou que eu fosse ficar atrás dele. Ficamos sempre crescendo juntos. Isso é essencial em um momento em que as mulheres ainda são mortas por serem mulheres, por ousarem não pensar igual ao marido. Isso é triste demais. Em outros lugares, mulheres continuam a não ter direitos, a terem casamentos escolhidos ainda quando criança. Ainda falta muito para a mulher ser totalmente livre. Enquanto todas as mulheres não tiverem o mesmo acesso à cultura, ao trabalho, às artes, à literatura, em tudo no mundo, nós não estaremos totalmente livres. Eu até me emociono ao dizer isso e falar nessa situação que nosso país atravessa com relação à educação e tantos outros setores porque estamos a mais um passo de cairmos em um abismo profundo e difícil de ser escalado para sair. Muitas pessoas não estão percebendo isso. É muito triste que o nosso país tenha se transformado para muitos países em uma piada. Espero que todos percebam, que as atitudes do Governo Federal mudem e que a gente possa viver no nosso país, ter orgulho de nosso país.
Trajetória
Angela é escritora, poeta, ensaísta, pesquisadora e docente aposentada do Departamento de Literatura da UFC. É coordenadora-fundadora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFC. Foi diretora da Casa de José de Alencar e do Instituto de Cultura e Arte da UFC. Recebeu o Troféu Sereia de Ouro, do Grupo Edson Queiroz, em 2016.
Família
A entrevista foi realizada na casa onde Angela mora há mais de 40 anos. A residência foi construída por ela e seu esposo, Oswaldo Gutiérrez, nefrologista e professor da Faculdade de Medicina da UFC. Um dos orgulhos e legados de Angela é ter uma família unida, referindo-se ao marido, aos filhos Oswaldo Filho, Daniel e Angela, ao genro, as noras e aos oito netos. "São a casa do meu ser", descreve.
Obras
Angela já publicou O Mundo de Flora (1990); Vargas Llosa e o Romance Possível da América Latina (1996); Canção da Menina (1997); Avis Rara (2001); Iracema, Lenda do Ceará (2005), com Sânzio de Azevedo, comemorando os 140 anos de publicação do romance de José de Alencar; Luzes de Paris e o Fogo de Canudos (2006); e O Silêncio da Penteadeira (2016).