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"O mais importante é transformar realidades"
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"O mais importante é transformar realidades"

Em 2020, a Casa de Vovó Dedé completa 27 anos. Diretor executivo da instituição, Wagner Barbosa relembra histórias e avalia os desafios enfrentados na Barra do Ceará
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Sophia Paiva, 8, estuda violão, flauta e violão
 (Foto: ALEX GOMES/Especial para O POVO)
Foto: ALEX GOMES/Especial para O POVO Sophia Paiva, 8, estuda violão, flauta e violão

Situada na rua Jerônimo Albuquerque, na Barra do Ceará, a Casa de Vovó Dedé completa, em 2020, 27 anos de existência. Nessas quase três décadas, a instituição já foi escola convencional, escola de música e, há sete anos, oferece, além das artes, cursos profissionalizantes. O engenheiro Wagner Barbosa é o atual diretor executivo da Casa, que tem com a casa uma relação desde a concepção da mesma.

Mais velho dos quatro filhos de Mansueto e Regina Barbosa, ele herdou dos pais a atenção com o próximo. Em entrevista ao O POVO, Wagner conta a história da Casa, que acolhe dentro e fora de suas paredes. Ele enfatiza a importância das transformações pela cultura e pela educação desenvolvidas em organizações não governamentais. O diretor avalia ainda os desafios enfrentados e expressa os desejos para o ano que se aproxima.

O POVO - A Casa de Vovó Dedé foi fundada por seus pais, Mansueto e Regina, há quase 27 anos. Desde antes da criação da Casa, seu pai desenvolvia trabalhos comunitários. O que significa para o senhor ter crescido nessa dinâmica?

Wagner Barbosa - Eles, tanto meu pai quanto minha mãe, começaram debaixo e ganharam a vida. Ela dando aula de piano e acordeão e ele sempre trabalhando muito. Naquela época, só via o papai nos fins de semana, exatamente no tempo que ele tinha livre e que ele levava a gente para fazer ações comunitárias. Lembro que, dos meus dez anos em diante, passei a participar mais ativamente da vida em família e o que mais me vem à memória é um trabalho que ele fazia no Eusébio, em uma comunidade chamada Tamatanduba. Lá tinha muitas famílias carentes e, sem escola pública na época, uma senhorinha dava aula na casa dela, debaixo dos cajueiros. Então a gente ia no final de semana para ajudar. Levava alimentos, material escolar e fazia um momento festivo. A gente levava refrigerante e as crianças saiam assoprando o copo pensando que era café. Para você ver, não conheciam refrigerante tamanha era dificuldade em que viviam. Conviver com aquelas crianças foi muito marcante para a gente e, ao mesmo tempo, meu pai nos ensinou a justiça, a igualdade e a caridade genuína.

OP - Assumir a direção da Casa foi algo natural para o senhor?

Wagner - Bem, estou envolvido com a instituição desde o início. Papai tinha um terreno na Barra do Ceará onde pretendia construir algumas casas para alugar e reverter em renda, mas ficou muito tempo parado esperando conseguir comprar o terreno ao lado. Enquanto isso, eu me formei em engenharia civil e eu pedi o terreno emprestado para fazer um pequeno escritório e um depósito de materiais de construção. No dia a dia, chegando cedo e saindo tarde, percebi que o bairro tinha apenas uma escola pública e as mães sempre estavam na fila para tentar matricular seus filhos. Com uma alta demanda frente à oferta, muitas crianças eram alfabetizadas em casa pelos pais. Aquilo me dava um aperto grande no peito.
Nessa mesma época, minha irmã estava se formando em pedagogia e ela aceitou a ideia de abrir um reforço intensivo. O objetivo era nivelar essas crianças que não estavam na escola para quando elas conseguissem entrar na turma correspondente à idade. Foi assim que fiz o projeto de engenharia do que hoje é a Casa de Vovó Dedé.

OP - E como a ideia foi recebida pela família?

Wagner - Coincidência ou não, e eu não acredito em coincidências ou acaso, eu apresentei a ideia para meu pai no dia em que ele me chamou para avisar que tinha decidido vender o terreno e eu precisaria tirar meu escritório de lá. Eu disse: "Papai, faça isso não, quero construir uma escola aqui". Ao que ele respondeu:"Que escola, menino? Me conte essa história direito. Vá lá em casa hoje a noite". Naquela noite, estávamos eu, ele e minha mãe. Expliquei a ideia de abrir uma escola de tempo integral e, para isso, construir um refeitório, banheiros e uma sala por vez. Cada sala que construísse seria uma turma aberta. Nisso, ele largou a mão na mesa e disse: "Começa amanhã a obra! As matrículas precisam abrir em janeiro e as aulas começam em fevereiro. Vou bancar esse projeto todinho aqui". Isso era agosto de 1992 e, em 31 de dezembro, inauguramos a escola. E a mamãe, desde o primeiro momento, foi para dentro da Casa fazer a gestão; é até hoje uma "gerentona". Ela está de olho desde o sabonete que está no banheiro até a torneira que está pingando e o gás de cozinha que tem que dar para a alimentação de todos.

OP - A instituição tem a história de ser uma escola formal por quase uma década antes de se tornar este local que hoje abriga um leque de oficinas e cursos nas mais diversas áreas. De que forma vieram essas transformações?

Wagner - Brinco que a Casa passa por grandes viradas a cada década mais ou menos. De 1993 a 2002, meu pai bancou tudo, desde material de ensino e professores até alimentação e assistência médica. Quando ele morreu em 2002, a casa tinha 400 alunos em tempo integral, matriculados no ensino fundamental e básico, com aulas regulares dadas pelos mesmos professores de escolas particulares e laboratório de informática. Como a gente não esperava pela morte dele, nem pelos quatro meses que ele passou na UTI, foi um período que nos desestabilizou.

A gente não tinha condições de manter a Casa e ela não era conhecida porque papai não queria que fosse. Ele seguia aquela filosofia de que o que a mão direita faz, a esquerda não precisa saber; e sempre dizia que tudo que se fizer pelo outro deve ser muito bem feito. Então fechamos a escola e todas as crianças e jovens receberam sua documentação e transferência para escolas públicas. Algum tempo depois, por iniciativa da mamãe, reabrimos como uma escola de música e artes. Isso foi interessante porque já não havia déficit de escolas públicas, não tinha o porquê de a gente ser concorrência com aquilo que é mesmo obrigação do Estado oferecer, e o que ela começou a promover foi um complemento no contraturno extremamente transformador com a música.

OP - E o segundo ponto de virada...

Wagner - Em 2012, fui assistir a um recital da Casa, promovido pela mamãe. Como eu não estava presente no dia a dia, fiquei maravilhado, tanto com o trabalho que ela conseguiu realizar pelos recursos e vontade dela, quanto pelo talento apresentado. Um nível altíssimo, todos tocando de forma extraordinária, um grande salto. Mas, ao mesmo tempo, percebi que muitas das crianças que entraram dez anos antes já estavam na idade de precisar se preocupar com o mercado de trabalho. Para além dos talentos na música, tinha aqueles que precisavam de uma preparação para o vestibular e de um ensino técnico. Foi assim que começamos as oficinas profissionalizantes, sempre mantendo o propósito de acolher, encantar e ensinar.

OP - Manter uma instituição pela qual já passaram 30 mil crianças e jovens e que tem atualmente 1.400 matriculados em suas atividades é também ser parte de muitas histórias de vida. Quais histórias a Casa pode contar?

Wagner - Temos duas histórias que conto porque elas foram os exemplos para todos os casos que aconteceram dali em diante e que também foram um ensinamento para nós: a da Karina Toledo e a da Michelle Lucena. Essas duas meninas entraram na Casa com cinco e sete anos como as duas primeiras alunas de piano, depois tiveram a preparação para entrar na faculdade e, recentemente, foram estudar no Conservatório de Paris. Há quatro anos, quando elas estavam prestes a se formar na universidade aqui, pediram apoio para ir em um festival internacional que aconteceu na Universidade de Brasília. Lá estava o Pascal Gallet, grande pianista e professor no Conservatório, que abriu as portas para elas entrarem. Hoje, elas são premiadas internacionalmente.

Ainda na música, nosso projeto Revelarte faz parte da história de dois grandes músicos, Vitória Andrade e Bruno Esteves, que agora se preparam para gravar seus singles. Outro caso muito feliz é de um rapaz que é professor na Casa, o Caio. Ainda bem menino, ele vinha até o projeto pedir que a gente abrisse uma turma de bateria. Depois da insistência dele, conseguimos uma parceria com um professor que o ensinou e hoje o Caio está na universidade e ensina aqui na Casa.

OP - Além desses talentos musicais revelados, como o senhor percebe que a instituição muda realidades?

Wagner - Aí temos grandes histórias inspiradoras e que nos mostram que estamos no bom caminho. Algumas crianças que entraram lá no início, na escola fundamental, e que hoje já são pais e mães vêm nos visitar com seus filhos e é gratificante ver que conseguiram erguer famílias e dar boas condições para as suas crianças. Os homens na maioria das vezes agradecem porque, diferente de amigos e colegas, sobreviveram à violência que vitima tantos garotos. As estatísticas mostram, né. A gente está vivendo um extermínio dos jovens das periferias e se você consegue salvar um garoto já é uma vitória grande. As moças agradecem por não terem sido mães na adolescência. É bom saber que construímos juntos bases melhores.

Com os cursos profissionalizantes, a gente também conseguiu muita coisa. Só neste ano de 2019 conseguimos, por exemplo, o primeiro emprego para 14 jovens na área de programação de computadores. É um número bem expressivo diante do atual cenário de recessão e desemprego. Outros que passaram pelas oficinas se tornaram empreendedores e têm seus próprios negócios.

OP - Para além da ideia de retirar pessoas de situações vulneráveis que frequentemente envolve o imaginário do senso comum sobre projetos sociais nas periferias, o que senhor enxerga como potência nesse trabalho junto à comunidade?

Wagner - Uma das coisas das quais a gente mais foge é do assistencialismo. Eu penso que o assistencialismo é necessário em casos urgentes, mas o mais importante é ajudar a transformar realidades. Aqui a gente procura mostrar que existe um outro mundo e que eles têm direito a ele, eles têm direito a sonhar. Eles têm que estar criando e buscando realizar os sonhos e nosso papel é apoiar, jamais tolher.

Nesse sentido, a gente sempre incentiva a entrada no ensino superior porque abre a mente, conhece novas pessoas e sai dos muros. Para muitos, a Marinha [Escola de Aprendizes-Marinheiros do Ceará] é a barreira, dali para a frente não sabem o que é. Ultrapassar esses muros e conhecer a Cidade, o País e mesmo o mundo é importante e a gente destaca que seja pela educação e pela cultura.

Para além disso, existem todos os aspectos da valorização daquilo que são capazes, uma melhora da autoestima. Tanto garotos entram aqui cabisbaixos, sempre olhando para o chão e, com o tempo, a gente percebe a transformação. Hoje eles não têm medo de se apresentar, olhar olho no olho e conversar de igual para igual.

OP - Quem são os jovens que compõem a Casa de Vovó Dedé?

Wagner - A grande maioria vem de uma situação de vulnerabilidade muito grande. Nós temos dois perfis principais de jovens aqui: aqueles que vêm em busca de atividades no contraturno ou de um apoio para a profissionalização e têm uma boa estrutura familiar; e aqueles que vêm com esses objetivos, mas vivem com a mãe e irmãos ou em alguma outra estrutura sem tanto apoio. E um ponto disso, que uma pesquisa que fizemos nos nossos cadastros mostra, é que essas famílias são matriarcais: a avó que porventura recebe uma pensão, a mãe que não tem qualificação e faz faxina longe de casa, netos adolescentes e, às vezes, até um bisneto. Ali elas se equacionam, é sim uma família pelos laços, mas falta muita coisa para esse jovem. Os primeiros passam pela Casa e seguem o rumo porque têm base, mas a outra parte realmente tem a Casa como referência. Referência de lar, de família, de amizade. Nossa responsabilidade com esses jovens é ainda maior. Tanto pela questão emocional, quanto porque existe a necessidade, imposta pela família ou pelos jovens mesmo, de ganhar dinheiro.

OP - A Casa também acolhe idosos, certo? Explica um pouco desses outros trabalhos que são desenvolvidos aqui.

Wagner - Ainda quando o terreno da Casa abrigava o depósito de construção, em um sábado que eu estava trabalhando lá sozinho, uma senhora idosa bateu no portão pedindo ajuda para comprar remédios. Naquele dia, peguei a receita, comprei os remédios, fiz uma compra em um mercadinho ali perto e disse que ela poderia voltar no próximo fim de semana. No sábado seguinte, ela veio e trouxe uma amiga. No outro, já vieram com mais outra. Rapidamente já eram cinco que dividiam algumas cestinhas. Esse trabalho que começou um ano antes da escola, hoje atende 70 idosas que recebem uma cesta básica por mês. Agora estamos pensando também em algumas ações e cursos voltados para as mães dos jovens que atendemos

OP - Todo esse trabalho com certeza envolve muitos desafios inerentes à realidade das organizações da sociedade civil envolvidas com a transformação das realidades nas periferias. Quais são as principais dificuldades enfrentadas?

Wagner - Essa Casa é como um organismo vivo. A gente está ali como um orientador, mas ela se reinventa e se transforma, com todos os pontos positivos e todos os problemas naturais de lidar com seres humanos. São muitas energias e a gente está sempre canalizando para o bem. Por trás de todos os bons resultados, existe muito drama que precisa ser resolvido para darmos condição para que as crianças possam sentar, estudar e se desenvolver. Isso envolve atendimento psicológico, atenção social para toda a família, alimentação etc. Nessa equipe de retaguarda está grande parte do nosso trabalho e não existe uma metodologia para ser empregada de forma generalizada, cada caso é um caso. São dificuldades singulares que a gente procura atender da melhor forma, mas também existem desafios de um prazo maior.

OP - E quais são esses desafios?

Wagner - O nosso principal desafio, que na verdade é um objetivo que estamos obstinados a conseguir, é que a Casa se torne autossuficiente, capaz de adquirir os recursos necessários para o custeio do dia a dia e para investimentos. Desde que começamos os cursos técnicos, conseguimos estruturar três setores que têm potencial de gerar receita tanto para remunerar os jovens quanto para custear a Casa de alguma forma. O primeiro é a produtora audiovisual, que já é contratada para fazer vídeos institucionais e também conta com produção própria veiculada no canal no Youtube e em canais de televisão parceiros. Depois temos a produtora de animação, a Casa Animada, com conteúdos também já veiculados em canais nacionais, e a Fábrica de Softwares, que é uma vertente do curso de programação e está prestes a lançar o primeiro game totalmente produzido dentro da Casa. Esse modelo permite que toda uma cadeia produtiva - envolvendo, de alguma forma, todas as turmas - gere oportunidades de trabalho e renda. São formas para que a instituição sobreviva com seus próprios recursos e é também um compromisso que temos com os jovens de mostrar que todo o aprendizado não é em vão, que eles vão conseguir ganhar a vida de forma decente.

OP - Em quase três décadas, o que motiva a continuar o trabalho da Casa?

Wagner - O que move a gente é uma vontade muito grande de melhorar e ver um mundo melhor. Isso eu aprendi assim desde novo e toda a minha família foi criada assim. É extremamente gratificante acompanhar o crescimento e as mudanças que acontecem em todos os aspectos das vidas desses jovens.

OP - Estamos entrando em uma nova década, 2020 chega em alguns dias. O que o senhor e a Casa de Vovó Dedé desejam para o futuro?

Wagner - As pessoas poderiam se desprender mais das questões materiais e pensar em usar aquilo que sobra, de tempo e de dinheiro, para fazer algo capaz de transformar o mundo.Eu acredito que se todas as pessoas tivessem a garantia de ter durante toda a sua vida o necessário para viver bem, não ia haver tanta desigualdade. E a desigualdade não é algo que o governo vai conseguir resolver sozinho, porque esse não é um problema de governo, é um problema da sociedade. Se todo mundo fizesse um pouquinho, pode ter certeza que o mundo seria completamente diferente. Eu creio que um dia isso vai acontecer. Vejo muita gente comprometida e formando projetos bacanas aqui na Cidade.

E nisso tem uma questão: existe hoje uma tendência a difamar a palavra ONG, né? Quando se fala em ONG as pessoas logo pensam em coisa enrolada, em coisa mal-feita. Na verdade é uma entidade do terceiro setor que, se tiver um apoio maior do governo, pode fazer muito em benefício da população. Nós do terceiro setor somos aqueles que estão lá no front da guerra, dando a cara a tapa, recebendo as demandas. Então quero deixar como uma mensagem que os governantes, as empresas e cada um de nós pensem o terceiro setor como um instrumento bacana em políticas públicas para as crianças, os idosos, os mais pobres e fomentem as ONGs.

Vovó Dedé

De portas abertas desde 31 de dezembro de 1992, a Casa de Vovó Dedé leva em seu nome a homenagem a uma "mãe de coração" de Regina Barbosa, sua fundadora. A mineira "vovó" Maria José também exercia trabalhos sociais e marcou a história dos Barbosas e de tantos jovens da Barra do Ceará. Pela casa já passaram 30 mil crianças e jovens e, hoje, 1.400 estão matriculados em suas atividades.

Um amplo leque de formações

A instituição tem a música como pilar e oferta 16 cursos nesse âmbito, como o de violino, viola, cavaquinho, flauta, trombone, acordeão, piano, bateria, canto coral e musicalização. Concursos de talentos, clube literário e recitais também integram a promoção de arte e cultura, mas não para por aí. A Casa também oferece uma média de 15 capacitações anuais por meio de oficinas e cursos profissionalizantes em áreas como animação, programação de computadores, design gráfico e fotografia. As atividades são inteiramente gratuitas e atendem crianças e jovens entre seis e 29 anos.

Produções da Casa

A Casa de Vovó Dedé se mantém com fundos captados por meio do edital Mecenas do Ceará, com o apoio da Enel, além do auxílio da Lei Rouanet, da parceria com a Fundação Beto Studart e de doações, que podem ser feitas pelo site cvdd.com.br. Entretanto, o objetivo é, segundo Wagner, se tornar autossustentável. Para isso, tem produções audiovisuais e tecnológicas - parte delas, voltada para a cobertura das atividades musicais da Casa e de eventos culturais, disponível no canal do Youtube TVDD.

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