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"Não sei se estamos precisando de consensos"
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"Não sei se estamos precisando de consensos"

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Durval Muniz é professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e atualmente professor visitante da Universidade Estadual da Paraíba (Foto: Reprodução Facebook)
Foto: Reprodução Facebook Durval Muniz é professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e atualmente professor visitante da Universidade Estadual da Paraíba

A análise do historiador Durval Muniz sobre o momento do País é dura e junta a percepção do estudioso à inquietação do militante de esquerda. Sua conversa de cerca de uma hora com O POVO, por telefone, acertada com a perspectiva de pensar um pouco sobre como foi 2019, expõe uma visão fortemente negativa sobre o primeiro ano do governo Bolsonaro, sem surpresas, mas também espalha críticas por vários outros setores, incluindo o ensino de história, que ele considera parte de uma falha geral que leva ao fato de ainda existir gente no Brasil que defende o AI-5 ou a volta da Ditadura Militar. Uma mostra, diz, de que é necessário falar sobre os horrores desse período de uma maneira que indique melhor aos alunos o que representou de grave como retrocesso político.

Professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, hoje professor-visitante da Universidade Estadual da Paraíba, seu estado natal, Muniz avalia que Bolsonaro somente se tornou possível como presidente da República porque é a expressão de uma parte boa da sociedade brasileira, que define como essencialmente conservadora. "Ele não veio do nada", diz, especialmente inconformado com a postura do ministro da Educação, Abraham Weintraub, "um inimigo da universidade pública".

Confira os principais trechos da entrevista com Durval Muniz

O POVO - Qual o momento em que o cenário de hoje começou a se desenhar? O ex-presidente Lula disse, recentemente, que tudo começou com as manifestações de 2013. O senhor concorda?

Durval Muniz - É muito difícil a gente dizer, embora, como marco, a gente possa mesmo apontar as manifestações, que, no entanto, apenas explicitaram uma onda conservadora que já estava presente na sociedade brasileira, na verdade. A sociedade brasileira é conservadora, não adianta as pessoas acharem que o (Jair) Bolsonaro é uma excrescência. Bolsonaro é a expressão de uma parcela significativa da nossa sociedade, notadamente das elites brasileiras, é um rosto da sociedade brasileira, que muitas vezes se esconde atrás de um punho de renda. Um Capitão do Mato, caçador de escravo, explorador do trabalho alheio, preconceituoso, racista, misógino, ou seja, a cara de uma boa parte da sociedade brasileira, machista, autoritária, com pouco apreço à democracia. Bolsonaro não nasceu do nada, ao contrário, é a expressão de uma parte da sociedade que vinha acumulando ressentimento, ódio, por sua ausência do poder, por não se identificar com as pessoas que estavam na presidência da República, o ódio contra Lula tem muito de preconceito, de haver uma parcela desta sociedade que não se via nele, não aceitar que um Da Silva, considerado analfabeto, um nordestino, e, depois, mais difícil ainda, aceitar que uma mulher ocupasse o cargo. Assim é que boa parte da revolta das Forças Armadas com Dilma Rousseff era como resistência à ideia de terem o comando de uma mulher, ainda mais alguém que no passado tinha sido militante da esquerda e lutado contra a Ditadura Militar.

O POVO - De qualquer forma, resultado que seja de tudo isso, o fato é que Bolsonaro chegou à presidência pelo voto popular. Não seria uma certa garantia de que o processo democrático está protegido?

Durval Muniz - A ascensão de Bolsonaro ao poder contou com várias vertentes, vários acontecimentos, alguns previsíveis e outros não, o próprio fato de o ex-presidente Lula ter sido retirado da disputa foi fundamental. A Lava Jato foi preparada para isso, para inabilitá-lo, ela foi toda urdida para tirar o PT da presidência e inabilitar politicamente Lula, é uma coisa que está ficando cada vez mais clara, o processo não nasceu no Brasil, resulta de uma intervenção internacional como vemos agora na Bolívia, como vimos na Venezuela, na Síria, no Iraque...O governo (Donald) Trump capitaneia uma política extremamente agressiva de intervenção na vida política dos países, notadamente na América Latina, onde os Estados Unidos não admitem que se tenha opinião própria. A eleição de Bolsonaro, enfim, tem a ver com várias coisas, com esse ressentimento, com esse ódio, essa repulsa das elites, o desejo de implementar a política econômica que está ai, algo que não tinham conseguido no Brasil exatamente porque o PT derrotou o PSDB em quatro eleições, inviabilizando a implantação de um receituário neoliberal que é sustentado pela grande imprensa, por empresários que não querem pagar imposto, não querem pagar salários, querem ver os direitos trabalhistas desmontados, os direitos sociais, quem quer, de maneira muito clara, reduzir as políticas de apoio às camadas trabalhadoras e os mais pobres. É uma agenda que (Michel) Temer começou a realizar, o golpe foi fundamental, tem ainda alguns acontecimentos pouco explicados, como a facada (contra Bolsonaro), como o fato de a Justiça Eleitoral ter sido completamente conivente com uma situação em que um candidato fez campanha sem fazer campanha, sem se expor, sem apresentar um programa de governo, sem participar de debate...

O POVO - Para além dessas questões externas, há, no âmbito dos erros cometidos pelo próprio PT, uma cobrança para que o partido faça uma autocrítica. Como o senhor vê, tanto a cobrança como a própria necessidade de autocrítica?

Durval Muniz - O PT cometeu vários erros no poder, como todo partido comete. O PT apostou num projeto de inclusão via consumo, apostou justamente em transformar o Brasil num país de capitalismo de verdade, algo que ele nunca foi, com a inclusão das pessoas no mercado, no consumo, a bancarização da população, mas, por outro lado, não investiu na politização das pessoas foi negligente em relação a isso, a cooptação dos movimentos sociais foi uma coisa profundamente negativa, a esquerda se achou no poder, sentou nos louros e deixou que a sociedade brasileira fosse tomada por uma militância de direita, que cresceu e ninguém percebeu, principalmente nas redes sociais, houve o crescimento assustador das igrejas evangélicas , pentecostais e neopentecostais, muito conversadoras do ponto de vista político e dos costumes, houve essa total negligência em relação à democratização dos meios de comunicação, o fato mesmo de ter negligenciado a forma como ocupou as cadeiras do Supremo Tribunal Federal, colocando lá pessoas sem qualquer compromisso com o pensamento de esquerda, quer dizer, o PT cometeu muitos erros. Porém, o PT não foi perseguido e praticamente criminalizado por causa dos seus erros. Ao contrário, tudo isso aconteceu por causa dos seus acertos. O que incomodava era a inclusão social dos pobres, era negros e pobres entrando nas universidades, negros e pobres andando de avião, isso é que incomodava uma elite acostumada a viver sob a lógica do privilégio e da distinção, que não suporta que os lugares sociais sejam minimamente abalados. A ideia de que cada pessoa tem seu lugar e que estes lugares são naturais e não podem ser transformados. Claro que o PT cometeu erros, inclusive quanto à corrupção, fechando os olhos para ela em nome de um pacto do qual participou, isso pelo próprio jogo político que estava montado, os sistemas políticos anteriores, montados pelo próprio PSDB para se manter no poder, e o PT achou que iria herdar os mesmos esquemas e nada iria sofrer, ou seja, erros foram cometidos sim. Agora, é muito interessante essa história de que o PT tem que fazer uma autocrítica, mas, só o PT? Nenhum outro setor, nenhum outro partido precisa fazer autocrítica no Brasil? O PSDB não precisa, mergulhado num mar de corrupção, também? O PP não tem que fazer? O PMDB?

O POVO - O senhor falou da força que as redes sociais ganharam. É, na verdade, um fenômeno com dois lados, aparentemente, um positivo e outro negativo, em termos de política e das influências que pode causar. Para qual deles o senhor entende que a balança tem pendido?

Durval Muniz - O grande problema é que as esquerdas não sabem usar, ou, pelo menos, não souberam usar as redes sociais. As esquerdas ainda acham que se faz política com cartaz, bandeira, faixas e passeata, não perceberam a força política das redes sociais. Isso aconteceu no mundo inteiro, desde a chamada Primavera Árabe, foi ficando clara a potencialidade política das redes sociais, depois vieram as manifestações na Ucrânia, a eleição nos Estados Unidos. Ficou claro que Donald Trump venceu graças às redes sociais, através de fake news e de toda uma campanha difamatória em relação a Hillary Clinton, não há dúvida de que Steve Bannon esteve por trás de toda a estratégia, inclusive no Brasil, e a verdade é que até agora não se apurou profundamente, e seriamente, o processo de uma campanha agressiva, massiva, por centrais que enviavam grande quantidade de mensagens enviadas por robôs, sistema pago por empresários brasileiros... Tudo isso ainda não foi suficientemente investigado, na verdade não tem havido interesse de investigar. As redes sociais, enfim, têm mesmo esse envenenamento da opinião pública, esse ódio, e agora todo mundo pode dizer o que quer através das redes sociais, sem qualquer filtro, grupos de pessoas que se achavam autênticos ETs, que achavam que suas opiniões eram isoladas de repente, descobriram que não. Virou interessante, nesse contexto, alguém vir a público dizer que é racista, se assumir homofóbico, misógino, quer dizer, tudo que as pessoas antes guardavam para si, achavam que seriam repreendidas socialmente, agora descobriram, nas redes sociais, que tem muita gente que pensa exatamente igual, o que fez surgir a figura do homossexual homofóbico, mulher misógina, pobre de direita, esses grupos todos se descobriram nas redes sociais. A sociedade brasileira está cheia, hoje, de organizações, de esquerda e de direita, que surgiram das redes sociais, o que se conecta com movimentos internacionais, não é algo isolado. O mundo está globalizado e a direita, em especial, conecta-se, ou seja, parece hora de a esquerda acordar para a força das redes sociais, a importância delas, mas, também, para o perigo das redes sociais. É preciso, como em determinado momento, lá atrás, a própria Dilma (Rousseff), a Ângela Merkel, defenderam, na ONU, uma regulamentação, a necessidade de colocar limites, criar uma legislação que evite determinadas coisas nas redes sociais, que não podem ser usadas massivamente nas eleições, como são, através de robôs, perfis falsos, envio de mensagens do exterior etc. Do jeito como está hoje elas estão desvirtuando o processo eleitoral, como aconteceu na Inglaterra com o plebiscito em torno do Brexit, no qual em vários lugares as redes sociais foram decisivas no desvirtuamento do debate em torno de determinadas questões.

O POVO - O ambiente no País é de muito ódio e de intolerância que se atribui, em grande parte, à polarização política. Por isso, há quem defenda como melhor alternativa de futuro para o Brasil contornar esta polarização. É a saída?

Durval Muniz - Na verdade, o que nós vivemos é uma profunda crise existencial. A crise do capitalismo que nós estamos vivendo, as mutações que ele está provocando, não diz respeito apenas às mudanças do ponto de vista econômico. O capitalismo não é apenas um modo de produção de mercadorias, é um modo de produção de subjetividade, é um tipo de organização da produção que pende, cada vez mais, à precarização da vida das pessoas. Por isso é que a sensação de insegurança, de instabilidade, é imensa, em todo canto. Você pega uma sociedade como a espanhola, onde não tem nem de longe o mesmo nível de criminalidade e violência que existe na sociedade brasileira, e todo mundo vai dizer que se sente inseguro. Vai a uma sociedade como da Noruega, da Dinamarca, e todo mundo reclama da insegurança, porque não é exatamente como nós a temos aqui, relacionada a um quadro de segurança pública pela criminalidade, é, na verdade, uma sensação resultado de um caminho que tem representado praticamente o fim do estado de bem estar-social, precarizado o trabalho, praticamente destruído a previdência social, quando entrega a gestão de todas as coisas ao setor privado, isso tudo gera uma sensação de insegurança muito grande. Portanto, nessas situações de insegurança as pessoas tendem a se agarrar às forças da ordem, àqueles que prometem deter este processo de insegurança. Aqui, no Brasil, a ascensão do Bolsonaro esteve muito ligada, justamente, à questão da segurança, que entre nós tem o dado da violência, da criminalidade, mas que se junta com essa mesma insegurança existencial. Me diga, qual é a segurança que tem hoje um aluno que vai frequentar a universidade? Ele sai sem a menor segurança de que seu diploma lhe vai conferir um emprego. Nós trabalhamos sem a menor segurança de que teremos uma previdência, de que nos aposentaremos no futuro, quer dizer, é um nível frequente de insegurança, de precariedade existencial, que faz com que as pessoas tentem se agarrar a esse discurso de quem promete a ordem, a quem sugere soluções mágicas para resolver o problema. Coisas até absurdas, como a distribuição de armas, a (excludente de) ilicitude para policial militar qualquer um, essa ideia de que se vai gerar segurança, quando, na verdade não vai, vai é aumentar ainda mais a insegurança. Há um problema nisso que é o fato de as esquerdas não tratarem da temática da segurança pública, o próprio PT passou anos no poder e não teve uma política clara, articulada. Ai, você tem, no rádio, na TV, em programas policiais que são verdadeiras escolas de fascismo, todos os dias na hora do almoço ensinando a linchar as pessoas, ensinando a desrespeitar os direitos humanos, defendendo que direito humano é coisa de bandido, quer dizer, a sociedade vai sendo envenenada. A sociedade brasileira está envenenada por todos esses processos, as pessoas exigindo segurança e, ao mesmo tempo, todos os problemas da área sendo explicados como meramente um caso de segurança pública, quando não é isso.

O POVO - O certo é que nós temos um país tenso, dividido e polarizado. Nesse contexto, e considerando que pela ordem natural ainda temos três anos, pelo menos, de governo Bolsonaro, é possível construir consensos?

Durval Muniz - Sinceramente, não sei se estamos precisando de consensos. A sociedade brasileira, a história do Brasil foi sempre feita de consensos por cima e eles sempre geraram a manutenção dos mesmos e da ordem. Acho que um dos grandes erros do PT foi, exatamente, se articular com forças extremamente heterogêneas, foi construir um grande acordão, que, em grande medida, limitou as ações do governo, do ponto de vista político. Assisti agora ao excelente documentário sobre a vida do Pepe Mujica, o ex-presidente uruguaio, e ele diz lá que não há mudança social, cultural e econômica sem uma mudança de valores, mudança das cabeças, e foi nisso que o PT não investiu. O partido ficou quase 16 anos no poder e foi incapaz de montar uma rede de mídia própria, do ponto de vista da comunicação o PT é quase inexistente. A esquerda no Brasil deixou, por exemplo, que os meios de comunicação fossem todos tomados por setores de direita, as igrejas evangélicas são donas hoje de grande parte das rádios, tevês e jornais do País! Tudo isso aconteceu nos últimos anos, nada foi feito no sentido de democratizar e de fiscalizar que tipo de mensagem, que tipo de forças estavam dominando os meios de comunicação de massa, o grande poder da sociedade. Não sei se essas pessoas estão a fim de consenso, existe um projeto de poder que prevê a manutenção de tudo que está ai. Claro que a figura de Lula, inegavelmente o grande líder do País que temos hoje, pode articular, fazer convergir a maior quantidade de forças na formação de uma frente de esquerda, de centro-esquerda, necessária para enfrentar essa extrema direita. As pessoas ficam falando que o Lula saiu da prisão e está radicalizando, mas, na verdade, em alguns momentos é preciso radicalizar, essa ideia do consenso, da convergência, faz com que todos gatos fiquem pardos, fica parecendo que todo mundo tem a cara de todo mundo. Faz parecer credível aquela imbecilidade dita durante a eleição que Bolsonaro e (Fernando) Haddad eram a mesma coisa, que eram dois radicais absolutamente iguais, tipo de discurso que somente é possível quando você tem duas pessoas com posições absolutamente claras. Pode-se até negociar, a negociação faz parte, mas a partir de uma plataforma muito clara e não dentro dessa confusão que se instalou nos últimos anos, era PMDB misturado com PT, com PP, daqui a pouco a gente não conseguia mais saber quem era quem.

O POVO - Houve esse fenômeno que levou à eleição do Bolsonaro, mas, no mesmo contexto, houve o contra-fenômeno, digamos, no qual ele se viu derrotado nos nove estados do Nordeste. O senhor é um estudioso profundo da região, então, consegue explicar este fato? Ele pode ter, ou já está tendo, consequências políticas?

Durval Muniz - Já estamos pagando um preço, os governadores nordestinos estão, claramente, sendo preteridos, quando não retaliados. Aconteceu tanta coisa, como o caso lá da Bahia, onde o governador (Rui Costa, do PT) foi proibido de baixar de helicóptero para inauguração de um aeroporto construído com dinheiro do governo anterior, retaliação mesmo. Isso vem acontecendo, agora, por outro lado, a gente tem que ter muito cuidado com essa conversa de que o Nordeste votou majoritariamente contra. Vamos ver que não foi apenas assim, Bolsonaro ganhou em cidades nordestinas de porte médio, ganhou em capitais, em cidades onde prevalece a classe média. Em Campina Grande (Paraíba) 70 por cento dos votos foram para Bolsonaro, que esteve na cidade outro dia para inaugurar um conjunto habitacional construído pelo Minha Casa Minha Vida, programa que ele praticamente extinguiu, e as pessoas o aplaudiram efusivamente. Então, não vamos pensar que a região está toda monoliticamente contrária a Bolsonaro, o Nordeste não é homogêneo do ponto de vista político. Claro que é importante a articulação entre os governadores da região, a atuação conjunta deles, a tentativa de implementar programas em conjunto, inclusive compras etc, as posições importantes que eles têm tomado coletivamente, em momentos chaves, em defesa da democracia, da educação, da Constituição, no caso do AI-5, do debate sobre tortura, agora, não podemos cair nessa disputa regionalista de entender o Nordeste como uma homogeneidade política, porque há setores profundamente conservadores que apoiaram Bolsonaro e continuam apoiando-o.

O POVO - O fato é que Bolsonaro teve menos votos do que Haddad, no segundo turno, nos nove estados nordestinos. É o voto popular, no sentido das camadas mais pobres, que explica isso, então?

Durval Muniz - Ah, isso é notório. Um levantamento sobre onde Haddad teve mais votos apontará, sem dúvida, os municípios mais pobres, os grandes bolsões de pobreza, situação claramente motivada pelas políticas sociais dos governos petistas, o Bolsa Família, programa de aquisição de alimentos, programa de cisternas, a política de reajuste do salário mínimo, das aposentadorias. São políticas que levaram uma boa parcela das camadas populares da sociedade a votarem no PT, embora, obviamente, também gente pobre tenha votado no Bolsonaro, notadamente nas capitais. O voto em Bolsonaro, na região, foi extremamente majoritário entre os evangélicos, uma população para quem, especificamente, o disparo criminoso de fake news foi direcionado, porque este disparo não foi feito aleatoriamente, focava determinados públicos. Eu, por exemplo, não recebi praticamente nenhuma fake news porque, evidentemente, meu perfil era conhecido e se sabia que não adiantava nada mandar qualquer coisa para mim. Esses disparos foram feitos direcionados, hoje a gente tem nossa vida toda controlada do ponto de vista ideológico, e assim é que aconteceram os disparos depreciativos contra Haddad, falando de questões morais, questões religiosas etc.

O POVO - O tema do AI-5 acabou voltando ao debate político, expondo um certo desconhecimento geral sobre ele, no sentido de perceber sua gravidade histórica etc. O senhor entende que há aí uma falha também na maneira como a história retratou, e retrata o episódio?

Durval Muniz - Eu tenho feito muitas críticas à forma como nós, historiadores, escrevemos a história e também à forma como levamos às salas de aula. Acho que transformamos determinados acontecimentos em algo muito abstrato e as pessoas não conseguem ter ideia do que é que propriamente representou aquele evento. A gente tem um certo pudor de estar mais próximo desses alunos e fazer com que eles visualizem melhor o que é essa experiência de tortura. A verdade é que a maior parte dos nossos alunos não têm a menor ideia do que é ser torturado e do que é a tortura, quando nós temos documentos, temos depoimentos sonoros, inclusive imagens, que poderiam materializar mais, tornar palpável, o que é uma experiência terrível como essa. A mesma coisa sobre o Golpe de 64 e o que ele significou. É incrível que ainda haja no País a ideia nostálgica de que aquele foi um momento bom, que foi um momento em que houve progresso, em que as coisas eram melhores, uma absoluta falta de narrar como é que efetivamente as coisas se passaram. Por exemplo, há quem defenda a volta da ditadura argumentando que não existia corrupção, quando, ao contrário, a corrupção proliferou durante a Ditadura Militar. Essas empreiteiras pegas agora em grande medida corrompendo o sistema político brasileiro são, todas, filhas da Ditadura Militar, as obras faraônicas realizadas durante o período é que as fizeram crescer, esse conluio entre as empresas e os políticos cresceu e floresceu naquela época. Outra ideia equivocada é que foi um período de tranquilidade no campo da segurança pública, mas o índice de criminalidade já então era alto, e ainda havia a violência institucional do Estado, algo que numa democracia se reduz. O processo de militarização das polícias estaduais foi um produto da ditadura, transformando-as em forças auxiliares das Forças Armadas, com consequências que até hoje enfrentamos, com uma das polícias mais letais etc, enfim é uma série de coisas que mostra que falhamos em levar isso para sala de aula. É preciso levar em consideração que a história nunca foi privilegiada nos currículos.

O POVO - Um dia tudo isso poderá ser contado melhor? Há como, mais adiante, corrigir esse erro que o senhor admite? Dentro de um ambiente mais sereno do que o que temos hoje, claro.

Durval Muniz - Acho que nós, historiadores, precisamos repensar a forma como escrevemos e como nos comunicamos com os alunos na sala de aula. Estamos vivendo um processo de grande perseguição, os professores de história estão sendo muito visados em sala de aula, nossa associação (Brasileira de Historiadores) tem acompanhado pelo País vários casos de professores perseguidos por pais, alunos, direções de colégios. A história do Brasil é violenta, é dramática, é cruel, já começou com o genocídio de índios, prosseguiu com o grande crime da escravidão, então nossa história é extremamente violenta. Não são os historiadores que estão inventando isso.

O POVO - Escravidão, professor, que passou a ser negada publicamente com menos pudor do que antes.

Durval Muniz - Pois é, um fenômeno histórico que durou 400 anos, marcou toda a sociedade brasileira.... Evidentemente que tem um monte de gente que diz essas coisas sabendo que é uma barbaridade, mas, mesmo assim, diz para provocar, chamar atenção, fazer ruído. As redes sociais também permitem isso, porque você pode dizer qualquer coisa porque não precisa provar nada, não precisa apresentar documento, apresentar fato, basta que você ache. Quando Olavo de Carvalho se torna um grande filósofo é porque as pessoas estão dispostas a aceitar qualquer coisa. A gente vive um momento em que o Brasil não se respeita, está virando um pária, o que os jornais internacionais têm dito sobre nós nesse primeiro ano do governo Bolsonaro mostra isso. Uma situação em que os nossos intelectuais mais sérios, gente que levou nossa melhor imagem para o mundo, são desqualificados pelas autoridades que estão com o poder de Estado, autoridades que querem tirar uma comenda dada a um educador da qualidade e da repercussão internacional de um Paulo Freire. Intelectuais que não são necessariamente de esquerda, a direita brasileira não foi sempre essa direita burra e ignorante que temos agora. Como respeitar um País em que a autoridade máxima não se pecha de vir a público contar uma mentira? É todo dia uma mentira. É patológico, temos um ministro da Educação que espalha mentiras sobre as universidades todos os dias, desqualifica instituições que ele deveria valorizar, ele deveria gerir. Um ministro que teve coragem de reafirmar em pleno Congresso Nacional, diante dos deputados, que as universidades têm plantações de maconha, fábricas de anfetaminas, sem apresentar um dado, um documento, uma comprovação, diante de uma situação que, inclusive, caberia a ele coibir se fosse verdade.

Formações

DURVAL MUNIZ, paraibano de Campina Grande, é graduado em História pela Universidade Estadual da Paraíba (1982), tem mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1988) e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1994). Pós-Doutorado são dois: em Educação pela Universidade de Barcelona e em Teoria e Filosofia da História pela Universidade de Coimbra.

Sala de Aula

PROFESSOR titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), atualmente é professor visitante da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), professor permanente dos Programas de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e UFRN. Também é Coordenador do Comitê da Área de História do CNPq

Nordeste

NA PRATELEIRA, são vários livros lançados. O último deles, chamado "A Invenção do Nordeste e outras artes", apresenta a tese de que a região foi "inventada". O tom parece crítico, mas, na verdade, é uma reflexão sobre o que a celebrada identidade nordestina impõe de estereótipo e como é possível, a partir de uma consciência coletiva, refazê-la em outras bases.

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