O que um atleta precisa fazer para entrar na história da de um esporte no Brasil? A resposta é bem complexa, já que depende da modalidade que se fala. No caso da ginástica, em que o País ganhou força nos últimos 15 anos, existem nomes já estão sacramentados na história do País. Daiane dos Santos, Laís Souza, Arthur Zanetti. Tais nomes vem acompanhados de outros dois, tão fortes quanto e com o mesmo sobrenome: Hypólito.
Independentemente do contexto, ao se escutar o segundo nome, surge a referência aos irmãos Daniele e Diego. Eles fizeram parte de uma geração que redesenhou a história do esporte no Brasil, colocando a audiência — e o desempenho — da ginástica em outro patamar.
Hoje, com cinco participações em Olimpíadas, dez medalhas em Jogos Pan-Americanos e uma prata no Mundial da modalidade, a ginasta de 35 anos vive fase transição — de atleta para futura apresentadora esportiva, como ela deseja.
Em novembro, a atleta esteve em Fortaleza para ministrar palestra sobre resultados e desempenho na Universidade Estácio de Sá e recebeu O POVO, em conversa exclusiva.
Na entrevista, Daniele relembrou, com sorriso no rosto, de todas suas etapas e conquistas dentro da Ginástica e, apesar de frisar a falta de investimento no esporte, enxerga os percalços no caminho de carreira como incentivadores para se tornar uma pessoa melhor.
O POVO - Você começou na ginástica com 4 anos. Mas como exatamente você foi parar no Sesi?
Daniele Hypólito - Comecei a brincar de fazer ginástica no quintal da minha casa. Eu comecei a tirar o colchão da cama da minha mãe, levava pro quintal e, por coincidência, um professor do Sesi chamado Reinaldo, que hoje não está mais com a gente, me convidou a fazer um teste na escolinha. Eu aceitei e daí por diante foi o meu início como atleta de ginástica e porque eu via muito alguns takes (vídeos) da Nadia Comneci (ginasta romena), que foi a primeira nota 10 da história da ginástica, e a Luisa Parente, que foi nossa primeira representante brasileira que teve um destaque realmente maior na ginástica. Tiveram outras pessoas antes dela, como Tatiana Figueiredo, mas ela é a que eu me lembro que teve o primeiro destaque, que realmente eu comecei a acompanhar.
OP - E o seu irmão (Diego)? Ele brincava com você, entrou no Sesi junto com você?
Daniele - Não, ele entrou depois. O meu irmão, por incrível que pareça, entrou depois e no início ele entrava, saía. No início ele não era tão fã da ginástica, como ele é hoje, mas a partir do momento que a gente mudou pro Rio (de Janeiro), realmente ele entrou, não saiu mais e deu no que deu. (risos)
OP - Quando você passou a encarar a ginástica como carreira?
Daniele - Eu acho que na verdade nunca coloquei a ginástica como carreira profissional. Como eu sempre fiz aquilo que eu amo, é claro que a partir do momento que você começa a contar sua história, surgir trabalhos, você começa a encarar um pouco o lado profissional. Mas eu acho que o mais importante da ginástica é o amor que eu tenho pela modalidade. Acho que quando você faz uma coisa com amor, você não encara aquilo como profissional. Porque quando você coloca uma coisa como profissional, você vai colocando umas obrigações tão grandes que, no final, mesmo você se esquece de fazer aquilo que é mais importante, que era o treinamento, a dedicação. Agora estou em um momento de transição de carreira, estou me dedicando a ginástica, mas já começando a usar daquilo que eu construí como atleta para levar para outra profissão, então eu acho que isso sim é o lado profissional que eu carrego. A dedicação, o foco que eu tive como atleta que eu vou levar para qualquer outra carreira que eu vá seguir adiante.
OP - Durante o ciclo olímpico para a Olimpíada de Sidney-2000, você sofreu um acidente de ônibus, onde algumas colegas suas chegaram a falecer. Ainda assim, você conseguiu a melhor colocação olímpica brasileira naqueles Jogos. Como você conseguiu se recuperar e conseguir uma boa colocação?
Daniele - Eu acho que deu tempo porque o acidente foi em 97, três anos antes da Olimpíada. É claro que o que fica marcado — meninas que treinavam comigo tiveram suas carreiras interrompidas. Uma delas é a irmã do apresentador esportivo Roger Flores, que é a Úrsula, que era a pessoa com quem eu tinha uma disputa saudável, gostosa e acabou que ela teve um sonho interrompido. Eu treinei ainda muitos anos com a (técnica) Georgette Vidor, mesmo ela estando paraplégica, ela não parou de trabalhar, continuou, se readaptou e continuou dando treino, trabalha até hoje com ginástica, mas acho que ali, a lição que você tira é o cuidado com o ser humano quando você ta dirigindo, ter cuidado no trânsito. Essas coisas eu levei muito forte até hoje.Para mim, e hoje, quando vejo a imagem do acidente, eu acho muito mais assustador do que na época. Acho que na época, como eu era muito nova, eu não tinha a dimensão do que era o acidente, o que era estar ali naquele momento. Então acho que hoje, como motorista, como pessoa, tenho muito mais noção da gravidade que foi o acidente na época do que na época mesmo. Na época eu tinha 13 anos de idade, então eu sabia que era grave, mas não entendia a gravidade certa do acidente.
OP - Dentro da sua carreira, você sempre teve auxílio psicológico?
Daniele - O papel da psicologia do esporte hoje é muito importante também. Tanto quanto a da fisioterapia. Hoje você tem meios de prevenir algumas lesões; fazemos os movimentos de prevenção. Não foi sempre que eu tive psicólogo na minha carreira, mas é importante sim. Dos últimos anos para cá eu tenho, trabalho com psicólogo e é realmente muito importante. Não só para o esporte, mas nessa fase que eu tô vivenciando, que é uma transição de carreira, para entender a importância de se encerrar um ciclo e iniciar outro. A psicologia não é só para tratar a cabeça de quem acha que tá maluco, ela tem um lado de orientação, de concentração, tem um outro lado voltado não só para tratamento. Então, as pessoas têm que entender que a psicologia, é importante para o dia a dia de uma pessoa.
OP - Em 2004, em Atenas, a equipe feminina brasileira se classificou completa pela primeira vez para uma Olimpíada. Como você se sentiu naquele momento, como parte desse grupo?
Daniele - A gente ficou muito feliz porque era a primeira vez que a gente não tava disputando para ir um atleta só ou duas. A gente tava indo para uma disputa que era muito mais legal, porque você tava disputando para estar entre as seis meninas que estariam na Olimpíada. Depois veio Atenas, Pequim, Londres, Rio, mas agora, infelizmente em Tóquio a gente não vai ter a seleção feminina, mas a gente vai ter uma grande representante e agora tem que esperar até as definições deste ano de 2020 porque a gente pode ainda chegar a levar mais duas atletas. Claro que não é fácil, mas pode ser que a gente ainda tenha a esperança de levar mais duas atletas. É esperar as classificações que vem por aparelho, então não vamos ter a equipe, mas se Deus quiser, pelo menos três atletas vamos levar.
OP - Em 2008, vocês tiveram a primeira classificação para uma final olímpica. A cada Olimpíada o grupo foi crescendo e avançando cada vez mais. No caso, em Pequim, como foi o sentimento de chegar a uma final?
Daniele - É outro momento muito feliz, de ver que o trabalho estava ali dando certo e que a gente tava todo mundo por um único objetivo, em prol da equipe estar ali na final. Muitas pessoas, que não fazem essa pesquisa e são mais recentes no quesito de acompanhar ginástica, não sabiam desse resultado, então muita gente achou que a do Rio tinha sido o melhor resultado da história da ginástica. Mas não, Pequim foi o nosso melhor resultado.
OP - No caso da Rio-2016, como foi viver uma Olimpíada em casa, já que tinha acabado de passar uma Copa pelo país e o espírito do país estava muito esportivo?
Daniele - A melhor emoção que eu tive foi realmente estar competindo em casa. Acho que é um sonho duplamente realizado para um atleta: poder representar seu país competindo na sua casa, com a sua torcida toda ali com você.
OP - Lembro que, final da sua última performance na Rio-2016, você pareceu emocionada e pediu que alguns repórteres fossem um pouco delicados nas perguntas, caso contrário você iria chorar. Falava-se à época que você estava em clima de aposentadoria. Era esse o pensamento?
Daniele - Na verdade, naquele momento, nunca havia pensado em me aposentar de imediato. Tanto que falei que seria no final de 2017, mas não adianta. O atleta, quando ele gosta, ele vai indo e quando a gente vê, estava quase terminando o sexto ciclo (olímpico). (risos) Mas a intenção sempre foi essa: finalizar uma coisa e iniciar outra com calma, sem ter aquela coisa de "o que irei fazer agora". Acho que esse sempre foi o objetivo, encerrar a carreira como atleta, mas ter a iniciação em outra carreira de uma forma branda, sem ficar perdida no que eu vou fazer.
OP - Você não conseguiu chegar ao pódio no Rio-2016. Houve frustração?
Daniele - As pessoas têm a mania de achar que o atleta que não ganhou uma medalha olímpica é uma frustração, mas não. O esporte é muito mais do que isso, você ganha muito mais do que uma medalha de ouro, ganha muito mais do que um pódio e são milhares de atletas treinando pro mesmo objetivo. Então, quantos milhares de atletas não chegam à medalha olímpica e treinam para estar na Olimpíada? É você ter a certeza que a sua vitória pessoal, do dia a dia valeu a pena. Tenho muito orgulho da minha carreira, do que me tornei como pessoa através do esporte, de poder hoje estar pendurando a melhor medalha da minha vida. Eu ter, através da minha experiência como atleta, levado esperança para uma criança, mostrando que é possível ela realizar o sonho dela.
OP - Como você se sente por ter conquistado a primeira medalha brasileira da modalidade em um Mundial?
Daniele - Eu me sinto honrada por Deus. Eu acho que tem coisas que são acima da gente e que a gente tem que acreditar, sim, porque eu pelo menos tenho muita fé e acredito que as coisas são possíveis, mas que tem uma pessoa que a gente não vê, não chegou a viver na época de Jesus, mas acho que sim, que nossos sonhos são realizados e temos um propósito. Cada ser humano tem um propósito por estar nesse mundo.
OP - Como você se descreveria como atleta? Você sempre foi muito exigente consigo mesma?
Daniele - Sempre fui muito exigente comigo mesma. Sempre fui a pessoa que mais me cobrei porque eu acho que a maior cobrança tem que ser sempre a sua. Se você não se cobrar e se você não acreditar em você mesmo, você não vai passar essa confiança para as pessoas e nem as pessoas vão acreditar em você. Então, a primeira cobrança tem que partir de si mesma e de você levantar e fazer as coisas, porque você não pode esperar as coisas caírem no seu colo. Você tem que ir atrás daquilo que você quer.
OP - Para uma geração, você é uma grande figura da ginástica olímpica, juntamente com Daiane dos Santos, Laís Souza, até mesmo com seu irmão. Você sente algum peso em relação a isso?
Daniele - Eu não considero peso. É outro mal do ser humano achar que tudo que acontece com ele é um peso. A responsabilidade não é um peso, a responsabilidade é um exemplo, então você tem que ser um exemplo para as pessoas e o exemplo começa a partir da responsabilidade. A gente não pode encarar a responsabilidade como um peso. A gente tem que encarar a responsabilidade como um exemplo para as pessoas porque hoje eu tenho que ter, sim, cuidado com o que eu posto, com o que eu falo, porque aquilo que eu falo e o que eu mostro em rede social é uma responsabilidade. É um exemplo para quem me segue, é um exemplo para as pessoas que gostam do meu trabalho, é um exemplo para as pessoas que gostam da minha pessoa. Então é uma responsabilidade e não um peso. Acho que tratar a responsabilidade como um peso é uma coisa incoerente. Você tem que ter uma responsabilidade consigo mesma no seu dia a dia.
OP - Qual foi o momento mais difícil da sua carreira?
Daniele - Acho que o mais difícil é você lidar com a falta de incentivo que o esporte tem. Cada vez menor e cada vez menos o incentivo é voltado para o esporte, sendo que é um dos pilares importantes da nossa sociedade. O esporte inclui, ele não exclui. Quem exclui é o ser humano e não o esporte. Acho que a gente tem que aprender a não excluir ninguém, incluir as pessoas e eu acho que o esporte ensina isso, juntamente com a educação, a cultura, a saúde. Acho que são quatro pilares super-importantes que a gente tem na sociedade e que a gente tem que aprender a valorizar melhor o trabalho do médico, do professor, do atleta e de quem é voltado com a preocupação da cultura porque, afinal de contas, o nosso país teve início de alguma forma. Isso é a cultura do nosso país e a gente tem que valorizar aquilo que a gente tem em casa. Ter o cuidado realmente com as coisas e entender que esses quatro pilares caminham juntos e não caminham um longe do outro ou um separado do outro. Educação está implantada no esporte, o esporte tá implantado na cultura e a cultura está implantada na saúde de todas as áreas. Hoje você tem a saúde mental, do corpo e a saúde que você tem a paz de espírito, então acho que tudo isso é voltado para a ciência e a ciência nada mais é que uma parte da medicina. Para fazermos nossos exercícios, muitas vezes ele é estudado. O corpo do atleta, ele vem cada vez mais sendo acompanhado pela parte do médico.
OP - Se pudesse mudar alguma coisa na sua carreira, você mudaria algo?
Daniele - O incentivo, sim, mas acho que não mudaria nada, pois o que eu aprendi durante a minha carreira, serviu para me mostrar e para me tornar uma pessoa melhor, então eu não mudaria absolutamente nada na minha carreira. É claro que, com certeza, a parte de apoio para o esporte, para educação, eu lutaria como luto e como continuarei lutando.
OP - Qual foi, no caso, o seu momento mais emocionante?
Daniele - O mais emocionante não tem nem a ver com a minha carreira, mas sim, teve isso do meu irmão ser medalhista olímpico. Querendo ou não, também faz parte da minha carreira, porque eu acompanhei muito de perto o meu irmão, então, ver ele ser coroado com a medalha olímpica foi o momento mais emocionante do esporte para mim.
OP - Como foi essa caminhada no esporte ao lado do seu irmão?
Daniele - Nós somos uma família. Ali é meu irmão, é realmente ter presente minha família o tempo todo comigo. Foi muito importante essa caminhada com ele e ter ele presente na minha carreira e acredito que não só ele, mas a minha família sempre foi muito presente. Minha família sempre me apoiou muito, então acho que é importante, uma das coisas que temos perdido muito. As pessoas se preocupam muito com rede social, mas esquecem de se preocupar com seu irmão que tá sentado do seu lado na mesa ali jantando. Acho que se perdeu muito essa questão do contato do ser humano por conta das redes sociais. As pessoas se preocupam mais com as curtidas que elas têm no dia a dia do que com seu irmão que tá precisando, de repente, de um abraço, um carinho, um aperto de mão ou uma palavra amiga.
OP - Qual conselho você daria para alguém que está iniciando na ginástica ou tem interesse pela modalidade?
Daniele - Acho que o conselho, na verdade, não é conselho. É você acreditar em você e seguir em frente. Pessoas que vão te dizer que você não pode, te colocar para baixo, você vai encontrar 50. Pessoas que te colocam para cima são raras. Mas o mais importante é, se você acredita em você, as pessoas podem falar que você não vai nem se incomodar, porque a gente só se incomoda quando a gente não tem certeza daquilo que a gente quer. Quando a gente tem certeza daquilo que a gente quer, a gente fecha o ouvido, segue em frente, e a pessoa quando você olha está lá atrás, não fez nada, não realizou nada porque ela se preocupou mais com o que você tava fazendo com a sua vida do que com sua própria vida. Mais importante é, acredite em você e siga em frente.
OP - Como você vê essa próxima geração de ginastas?
Daniele - Agora que vou começar a ver melhor com outros olhos porque quando você está em ativa, quando você tá envolvido com o processo, você não consegue ter uma visão diferenciada para você poder opinar. Acho que, a partir de agora, passando a Olimpíada de Tóquio, vou começar a ter uma visão mais do lado de fora, com a experiência que eu tive dentro da ginástica, para poder realmente analisar como está o nosso futuro da ginástica.
OP - Falando em futuro, quais são os seus planos?
Daniele - Estou pensando em ser apresentadora esportiva. É bem diferente de comentarista. Comentarista você fala daquilo que você tem propriedade em falar. Eu quero ser apresentadora esportiva porque eu gosto do esporte, eu acompanho e não é só a ginástica. Eu acompanho o futebol, o basquete, o vôlei, a natação, o tênis, Fórmula 1, Stock Car. Acompanho todos os esportes de maneira geral pois gosto do esporte. Vejo de tudo, acompanho muito programo esportivo para saber como os apresentadores estão lidando com a atualidade dos esportes. Com certeza é do nosso país e temos que entender que para você ser uma apresentadora esportiva você precisa entender 70% do futebol, tem que estar por dentro do que tá acontecendo no futebol. Se você quiser ser um bom apresentador esportivo, é esse o caminho. Acho que, quanto mais apresentadores do esporte olímpico entrarem para serem apresentadores esportivos, é onde a gente vai começar a mudar um pouco essa realidade e conseguir mudar pelo menos para 50% / 50%. 50 de futebol e 50 de outros esportes que são importantes tanto quanto o futebol no nosso país.
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