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| MÚSICA | Pingo de Fortaleza, fundador do Maracatu Solar, defende manutenção da essência africana do ritmo, mas constrói novos maracatus na inventividade artística
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Pingo de Fortaleza realiza 100ª live nesta quinta-feira, 02 (Foto: Thais Mesquita/O POVO) (Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita Pingo de Fortaleza realiza 100ª live nesta quinta-feira, 02 (Foto: Thais Mesquita/O POVO)

"O ritmo é produção do seu corpo, da sua mente, é você naquele momento. O ritmo é estar presente". No bater dos tantãs, João Wanderley Roberto Militão nasceu com o destino bordado nas loas de Oxalá. Rebentou ao mundo na Santa Casa da Misericórdia de Fortaleza ao 8 de fevereiro de 1963. Na terra, tudo era Carnaval. O pingo de gente chegou ao mundo feito, a música grafada nas linhas do seu axé. Autodidata, Pingo — que ganhou o "de Fortaleza" nos idos de 1980 — se afeiçoou ao violão por curiosidade, teimosia de menino buliçoso. O instrumento, entretanto, deu forma ao corpo franzino. Os dedos cresceram entre cordas, o todo em cada parte. Cantor, compositor, poeta, pesquisador, escritor e músico, Pingo de Fortaleza é fundador do renomado Maracatu Solar.

Tambor no peito em brasa, Pingo de Fortaleza é feito prata 950: é maracatu, é armorial, é instrumental, é pop; é daqui, é do oco do mundo. Pés descalços, sorriso róseo das tardes, Pingo reconstrói a música na força de inventividade. Orunmilá logo confidenciou: Pingo é plural, Pingo alumia a Cidade.

O POVO: Como nasceu o seu interesse pela música? Foi ainda durante a infância?

Pingo de Fortaleza - Quando eu era pequeno, meu pai não tinha radiola ou som ambiente. A minha infância não foi muito musical, mas tem um feito bastante interessante: em frente à minha casa no bairro José Walter, tinha uma família em que todos tocavam violão e cantavam, eles tinham os discos do ano como Caetano e Chico; era a família do músico Dedé Nunes. Eu saía de casa para jogar bola e tomar banho de lagoa e via aquele movimento... Minha irmã comprou um violão para ela aprender com os meninos da frente, mas de alguma forma ela não se interessou e o violão ficou lá em casa. Eu peguei o violão, mas fui autodidata mesmo porque até hoje a minha sistemática é muito particular. Eu tenho muita dificuldade para ouvir a música e assimilar, para "pegar", como a gente chama. Eu não tinha muita paciência. Eu peguei esse violão, então, e disse "rapaz, eu vou fazer uma música que é mais fácil". Eu tinha 10, 11 anos quando comecei logo a compor. Uma das primeiras, com dois acordes, era avisando pra minha mãe que eu ia embora de casa. "Maria, arruma a minha velha mala…" (risos). Comecei a compor ali no bairro mesmo.

OP: Você formou ou ingressou em grupos musicais já na adolescência?

Pingo - Na adolescência, nessa coisa de fazer as próprias músicas, organizei um grupo chamado Pop Som na escola — era primeiro grau e eu e mais três amigos ensaiávamos em uma bateria improvisada. Fizemos um show na escola em cima das cadeiras... Terminei o Polivalente fazendo música na escola, mas aconteceu uma mudança significativa na minha vida e passei para Edificações na Escola Técnica (atual Instituto Federal do Ceará, IFCE). Quando eu chego lá em 1979, a Escola Técnica tem um conjunto musical, umas recreações, e vejo tocando o Pitombeira, o Maestro Poty. Eles eram o conjunto titular. Aí pensei: "rapaz, eu vou fazer o conjunto reserva!". Era reserva mesmo, para fazer outra coisa, tocar as minhas músicas. Eles terminavam e a gente pegava os instrumentos, começava a tocar as outras coisas na recreação. Formou-se, então, um grupo de teatro na Escola Técnica e me chamaram para fazer as músicas das peças do Grupo Mandacaru. Paralelo a isso, eu fui convidado para tocar em alguns shows coletivos do CSU (Centro Social Urbano) no José Walter em 1980, 1981. Nesse conjunto de coisas, eu começo a tocar no movimento estudantil e a dialogar com os movimentos universitários; nas greves, a gente já tocava algumas músicas enquanto secundaristas. Quando terminei a Escola Técnica, fiz vestibular para Música. Na época, eu vendia artesanato, vendia chinelo de couro na Beira-Mar, fazia música e teatro de bonecos no Grupo Curumim. Então teve outra mudança e eu fui pai. As coisas ficaram mais difíceis, fui ensinar educação artística nos colégios de Fortaleza. Fui professor de educação artística por cinco anos.

OP: Você foi professor em dezenas de escolas na Capital. Como essa experiência enquanto educador ainda reverbera no seu trabalho?

Pingo - Foi um processo de crescimento horizontal, um processo de muita aprendizagem. Eu chegava numa escola e saía correndo para dar aula em outra. Eram turmas com 40 alunos. Aos 20 anos, eu já colocava pensamentos políticos em relação à obra de Paulo Freire e chegava crítico: era diferente a minha aula, eu não fazia chamada, os alunos se davam a própria nota, eu fazia performance teatral, teatro de bonecos... Aprendi muito porque a sala de aula é uma espécie de espetáculo, ela molda a sua capacidade de comunicação. Aprendi, na sala de aula, essa dinâmica de palco, esse manter a comunicação ativa permanente. A coisa do educador é estar aberto, ouvir o outro, tentar entender o outro, compreender as diferenças, os ritmos de aprendizagem. Isso é muito importante e eu acho que comecei a viver isso lá. Hoje eu tento botar isso na coordenação dos projetos da Solar, que é exatamente essa compreensão do tempo. Uns chegam e não sabem que instrumentos vão tocar, pega um, pega outro. O outro chega e já quer aquilo. É compreender que, além do fazer no Maracatu Solar, todos têm um contexto em casa. Às vezes, as pessoas chegam aqui em busca de acolhimento. Essa liberdade caracteriza a Solar. Então é isso, eu trabalhei nas escolas, juntei dinheiro, fiz meu primeiro disco e virei músico profissional.

OP: Centauros e Canudos (1986), seu primeiro álbum, é inspirado na história do povoado de Canudos. Como se deu a construção desta obra?

Pingo - Eu comecei a participar de alguns movimentos próximos à universidade, entre eles o Nação Cariri — sempre digo que isso foi muito importante na minha formação porque reunia pensadores como Rosemberg Cariry, Oswald Barroso, Guaracy Rodrigues e muitos outros. Eu fazia parte desse movimento e descobri, no Nação Cariri, os temas relacionados à cultura e às lutas populares. Todos os jornais do Nação Cariri tinham histórias de Canudos, Caldeirão, cangaço... Canudos me impactou. Como as coisas na minha vida vão acontecendo e nada é muito determinado, um amigo me deu uma música chamada Centauros e Canudos (Pingo de Fortaleza/Augusto Moita) e outro me deu uma música chamada Centauro Guerreiro (Pingo de Fortaleza/Eurico Bivar). Eles não tinham se comunicado, mas usavam Canudos como mesmo elemento simbólico e pensei "eu vou por aqui". Resolvi fazer um disco sobre Canudos, eu gostava dessa coisa de discos temáticos. Hoje tenho consciência que ele é armorial, porque é todo acústico. Eu fazia questão que fosse, eu era radical na época, "não posso usar eletrônico". Eu vinha de uma escola de radicalidade política, a gente ainda estava saindo da ditadura e havia um rock muito bacana que hoje eu curto muito, mas que era vinculado à indústria cultural e eu achava que o que prestava era a música alternativa, essa música fora da linguagem que o mercado estava se apropriando naquele momento. É um disco muito crítico às gravadoras, um disco muito acústico, e por isso mesmo algumas pessoas consideram o meu melhor álbum. Os armoriais são muitos clássicos, então eu fui gravar no Rio de Janeiro porque não tinha estúdio aqui. Os arranjos (de Tarcísio José de Lima e Jaques Morelenbaum) são primorosos, as músicas nem tanto, mas o cantor é muito ruim! (risos). Esse disco abriu tudo, como a minha ida para Bahia com uma peça com o José Dumont (o cearense realizou a direção musical e trilha sonora da peça O Conselheiro e Canudos, dirigida por B. de Paiva). Esse disco é tão emblemático e importante que eu o refiz. Peguei os arranjos, 30 anos depois, e decidi cantar esse negócio mais ou menos. Virou Centauros e Canudos Redivivo. Botei os CDs e LPs debaixo do braço, viajei de novo para Canudos e agora esse trabalho está se tornando um documentário musical.

OP: A sua discografia é extensa e cada álbum é diverso do anterior…

Pingo - Cada álbum foi um período. Eu sou muito agitado com as coisas... Um dia desses, eu estava fazendo uma retrospectiva com o Rosemberg sobre o fazer cultural contínuo, o que é essa ansiedade de produzir, produzir, produzir. A gente tem muita dificuldade na difusão. Você faz um disco e requer difusão, que não acontece, então quer fazer outro e não aproveita a difusão, não amadurece a obra. Eu vou fazendo. Por exemplo, depois de Centauros e Canudos (1986), Lendas e Contendas (1988) e Maculelê (1991), eu senti que nenhum álbum de estúdio me representava no palco e tive a ideia de fazer um disco ao vivo. Foi o primeiro disco gravado integralmente ao vivo no Ceará, era 1993 e gravei no Theatro José de Alencar antigo. Nesse disco (Pingo de Fortaleza ao vivo), eu já dei a energia que eu queria. Eu fui fazendo vários discos e cada um tem um sotaque. Às vezes, até as música são iguais, mas o arranjo é diferente e representa o momento que eu estava vivendo. O Cantares (1996) eu fui para a Europa, voltei, fiz algo mais clássico; já o Lógica (1999) eu estava querendo fazer algo mais pop com o Manassés. Até o Prata 950 (2009), que rompe tudo. Eu ficava muito chateado porque as pessoas me chamavam de regional — até hoje eu fico. Eu brigava e ia embora, "eu sou universal, o que é regional é universal, essa dicotomia não existe, isso foi usado de uma forma preconceituosa pelo mercado". Comecei a fazer umas músicas diferentes para mostrar que eu não sou só maracatu, eu não sou só Canudos, eu não sou só instrumental clássico, eu sou agora pop (risos). Na letra de Prata 950, digo que ninguém é uma coisa só. A prata 950 é uma mistura, porque a prata não tem liga e tem que ser misturada — ela é 950 prata e o restante é outra coisa. Nós somos prata 950, nós somos essa mistura. Fiz um disco todo elétrico com o Mimi Rocha.

OP: A riqueza de ritmos é característica da sua obra, mas o nome Pingo de Fortaleza é logo associado ao maracatu. O que inicia essa trajetória?

Pingo - Eu me orgulho muito dessa associação ao maracatu. Embora meu trabalho tenha muito instrumental, o peso que o Maracatu Solar tem em Fortaleza é grande. Essa história começou assim: o Guaracy Rodrigues, que é meu parceiro, me deu uma letra chamada Maculelê. Era toda em iorubá, não entendi quase nada, mas levei para o meu apartamento e, quando eu estava sentado no chão olhando, não pensei "vou fazer o maracatu dessa letra", não pensei em nada. Saiu apenas uma canção no ritmo de maracatu, que era o maracatu que eu conhecia, o maracatu que o Ednardo ajudou a consolidar da década de 1970 com Terral. Eu já tinha escutado essas canções nesse ritmo que a gente chama de solene ou coroação — o maracatu é representação simbólica de um cortejo festivo de coroação negra. O Maculelê saiu nesse ritmo e até hoje essa música é forte. Resolvi fazer um disco sobre maracatu, isso era 1990, e pensei que o Descartes Gadelha (pintor, desenhista, escultor e músico) poderia me ajudar. O Descartes me apresentou grupos de maracatu, a gente tem muita afinidade e amizade. Na época, eu dizia que o disco era uma projeção estética, hoje eu acho que é uma grande projeção estética mesmo porque eu acabei fazendo uma música para cada ala.

OP: Você é também é pesquisador musical e escreveu livros sobre a historiografia do maracatu. Como o ritmo se desenvolveu no Ceará?

Pingo - O maracatu tem matriz africana. A música que persistiu e resistiu é a música vinculada aos cultos de matriz africana, então dessa música é que nós temos hoje o samba, o maracatu, o afoxé. Existe uma corrente muito sólida que diz que o maracatu vem da coroação dos reis de Congo da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. É uma irmandade de escravizados que se aglomeravam em volta das igrejas e faziam um coroação de reis negros, uma vez no ano, e também um cortejo. Realmente, pode ser que o maracatu tenha passado por lá, mas ele não tem a sua essência na Irmandade: ele tem a sua essência no terreiro. Nos meus livros mais recentes, resgato os primeiros maracatus aqui no final do século XIX, que passavam ali no Centro, Gustavo Barroso, João Nogueira... A gente percebe que eles vinham de algumas periferias, como Cosme e Damião e Oiteiro. Ao mesmo tempo, vamos ter os congos também nesse período, mas você não consegue, em nível de registro, encontrar um diálogo desses grupos. É algo que a gente precisa refletir, esses nossos maracatus antigos ou pré-maracatus desaparecem no século XX e é criado o Az de Ouro na década de 1930. O Az de Ouro já foi criado para o Carnaval, com uma concepção de Carnaval, por um cidadão chamado Raimundo Alves Feitosa, um fortalezense que morou três anos em Recife, de 1930 a 1933. Ele voltou e criou o Az de Ouro em 1936. Nasce daí uma confusão de que o maracatu daqui veio de Recife, mas é um equívoco — não veio de lá. O fundador esteve lá e viu o maracatu lá, mas ele também era dos congos daqui, era brincante de congo e marujada. Ele criou uma síntese do que viu em Recife e do que viveu aqui. O Az de Ouro é um embrião para todos os outros.

OP: O Az de Ouro também é fundamental em sua trajetória. Quais as influências do criador do grupo, Raimundo Alves Feitosa, na concepção do Maracatu Solar?

Pingo - Em 1999, o pessoal do Az de Ouro chegou pra mim e disse: "Rapaz, quero que você faça uma música para o Az de Ouro para a avenida". Aceitei o convite, fiz uma música chamada Outros 500, em que fazia um questionamento da história do descobrimento. O Az de Ouro foi meu lugar de aprendizado no maracatu, ao lado de mestre Juca, ouvindo aqueles instrumentos, acompanhando e produzindo os espetáculos. Eu fiquei seis anos integrando o Az de Ouro. As pessoas chegavam com vontade de saber a história do grupo, então eu fiz um livro sobre a história do Az de Ouro chamado Maracatu Az de Ouro, 70 Anos de Memórias, Loas e Batuques (2007); foi meu primeiro livro. Nessa pesquisa, eu descobri uma musicalidade muito importante para a formação do Maracatu Solar. Na década de 1940, passou aqui um musicólogo mineiro chamado Correia de Azevedo e gravou um disco com músicas de congo, coco e maracatu do Ceará. Na época da Segunda Guerra, os Estados Unidos estavam financiados vários artistas e pesquisadores no mundo todo para consolidar as alianças, então esse cara veio, gravou e foi embora. Esse material ficou na biblioteca de Washington muitos anos e, no final da década de 1990, eles lançaram um disco da música de Minas e do Ceará. Alguém lá do Estados Unidos pegou esse disco e mandou para o Rosemberg Cariry, que disse "Pingo, vem aqui!". Quando eu cheguei lá, tinha o Raimundo Alves Feitosa — criador do Az de Ouro — cantando várias músicas de maracatu e nenhuma no ritmo solene que eu tinha aprendido de maracatu no Ceará. Aquilo ali entortou meu juízo! Nesse disco, o fundador do maracatu cantava "Boneca preta do maracatu/ Boneca preta do maracatu/ Maracatu ê, maracatu ê/ É o Az de Ouro..." (bate as palmas das mãos compassadamente nas pernas). Isso aqui muda muito, isso aqui muda tudo! "Como é que pode, citando Az de Ouro em 1940? Pronto, agora eu vou nessa linha aqui", pensei. Fiquei empolgado, eu fiz uma música já nessa onda do maracatu cearense da década de 1940, antes dessa mudança rítmica que porquê e nem como aconteceu. A história tem muitas nuances, nunca é linear. O fato é que esse ritmo se consolidou na década de 1960, o Ednardo ajudou com sua magnífica obra a consolidá-lo na década de 1970, mas algo anterior existia já na década de 1940 e 1950 que é o que o Feitosa revela. Existem várias teses e, quando o maracatu migra para a competição carnavalesca, ele de alguma forma vai se adaptando. É um tema, é uma música, é a fantasia. Talvez esse ritmo tenha se preconizado a partir do Rei de Paus, que foi o grande campeão na década de 1960. E o ritmo passou a ser padronizado até 1990, depois é que o Descartes no Nação Baobá já começa a inventar coisa. Mas o Az de Ouro não era o espaço para experimentação, ele se consolidou como um grupo relacionado a um ritmo de construção coletiva, histórica.

OP: O Maracatu Solar nasceu dentro da Solar, ONG que desenvolve programas e projetos na área da cultura. Como esse movimento se efetivou? Quais as diferenças do Maracatu Solar em relação aos demais grupos na Capital?

Pingo - As coisas sempre são fruto de uma conjunção de fatores. Nós criamos a Solar - Associação Cultural Solidariedade e Arte em 2005. Eu, Jorge Ramos da Costa, Tieta Pontes, Alan Mendonça, Mileide Flores, Erivaldo Casimiro, Wiltom Matos… A Solar tinha esse espaço e a gente queria sair, queria respirar, queria mostrar o que a gente estava fazendo. Depois de escrever um livro sobre o maracatu e ouvir o Feitosa, minhas inquietações piraram. Um dia, nessa cozinha aqui da Solar, eu disse "nós vamos fazer um maracatu aqui. Vai ser o Maracatu Solar". Era setembro de 2006, o pessoal disse: "e dá tempo de fazer para sair ir no em 2007?". "Dá tempo sim! E vamos fazer uma música baseada no Raimundo Alves Feitosa da década de 1940". Em 2007 eu canto no Az de Ouro e no Solar, fizemos o Maracatu Solar, eu vim me apresentar, ô Xango, Xangô. É muito emblemática nossa primeira música porque ela traz essa nossa vontade de fazer algo diferente, ela remete ao Feitosa, é uma música coletiva. Quando a gente mudou, percebemos que tínhamos que mudar o figurino — tirar o peso, tirar as cangalhas. O Solar toca o maracatu solene, porque é uma referência, mas nós buscamos a diversidade que o Raimundo Alves revelou. É baião de maracatu, samba de maracatu... Nós tocamos um coco de maracatu. A cultura mesmo não é estática. Eu acho que é isso que tem que ser reconhecido por todos nós que fazemos cultura: não se faz algo hoje como se fazia há 100 anos. As pessoas mudam. A inventividade humana é inerente à arte. Você não pode ficar tentando impor regras na arte e nem no processo criativo. Eu respeito aqueles que querem manter um ritmo, mas o Solar toca o solene e também criou ritmos. Eu digo que toco até o Maracatu do Mississippi, que é um soul. Quando a gente tirou a pintura obrigatória e a não competição, isso não foi bem aceito pelos outros grupos. Muitos consideram que o maracatu cearense deve ser fantasiado de negro. Eu respeito profundamente como elemento estético, mas não consideramos isso uma afirmação étnica. Não dá mais para pensar isso como manifestação étnica ou reforço de uma manifestação de matriz africana. Nós abolimos a obrigatoriedade — compreendemos que os os outros grupos mantém isso como elemento de tradição deles, mas nós tiramos. O mais importante é a essência da manifestação e a essência se revela na matriz africana. A gente continua se revelando nela, reverenciamos os elementos da ancestralidade, da religiosidade africana, mas artisticamente nós podemos recriar sempre.

OP: O Maracatu Solar se tornou um programa de formação cultural continuada. Quais os projetos em curso?

Pingo - Já saíram dois programas do Maracatu Solar, que é a Orquestra Solar de Tambores e a Companhia Solar de Dança; projetos contínuos, abertos e livres. A característica do Solar é a diversidade rítmica. Como determinam os editais, nós montamos um espetáculo novo, criamos um tema. Nós temos ensaios semanais de orquestra e dança ao longo do ano inteiro. A Orquestra Solar de Tambores, criada há três anos, tem um repertório diferente do Maracatu, já que ela toca também instrumentos de sopros, tem batuque e cantores. Quando a Orquestra está dentro do maracatu, ela é o batuque do Maracatu Solar. A Companhia de Dança é a mesma coisa. A gente tem muita dificuldade na área da dança aqui porque muitos que chegam para dançar acabam migrando para o batuque (risos), então a gente está sempre reconstruindo a Companhia. A ideia é que a dança tenha também um espetáculo próprio, como a Orquestra. Quando é o Maracatu que se apresenta, todos são brincantes. Agora, a Orquestra começa a montar Maracatuzinho, um espetáculo infantil. Atualmente, nós temos entre 250 a 300 brincantes e o Maracatu Solar cresce muito, gera muitos outros grupos. A gente estimula isso, o Maracatu Solar é uma incubadora de grupos e artistas.

OP: Neste 2020, a loa do Maracatu Solar é Obaluaê - Nossos Medos Viemos Cantar. O que se desdobra do tema, do Solar aos parceiros?

Pingo - O Maracatu Solar se diferencia por criar não só um tema, mas trabalhar transversalmente esse tema. Eu acho que a gente não pode se resumir apenas a fazer uma festa no palco, numa praça. A festa é importante, mas o processo é muito mais importante. O processo das pessoas, do diálogo, da aprendizagem, o processo diverso das linguagens e conteúdos. De três anos para cá, nós temos aprofundado mais a diversidade. No ano passado, nós trabalhamos Iemanjá com as pessoas em situação de rua e abordamos questões ambientais. Neste ano, nossa loa é Obaluaê e trata da cura das doenças — principalmente de doenças como a depressão. Estamos fazendo mesas redondas sobre depressão, sobre os processos artísticos contra depressão, sobre os movimentos sociais contra a depressão; estamos visitando projetos sociais de saúde mental como o do Bom Jardim. Eu acho que isso é o diferencial: nós vamos cantar Obaluaê, mas estamos discutindo o que cantar Obaluaê representa. Infelizmente, as doenças da alma, do corpo e da solidão estão muito presentes, nós vivemos em um mundo em que cada vez mais pessoas se sentem sozinhas. Nossa música diz "Ser Obaluaê/ Se a solidão nos ferir/ Sorrir, agir e caminhar/ Quando o corpo cansado/ E a mente vaga não quiser mais crer/ Ser Obaluaê/ No opanijé dançar/ Saltar feito pipoca/ No calor que aflora/ A qualquer hora da evolução/ Na alegria de ver/ Aumentar o grão/ Saudável crescer/ Ser Obaluaê/ Filho da dor/ Senhor da terra/ Que o amor encerra/ Toda transformação/ O sol ainda vai brilhar/ Entre as palhas/ Que cobrem nossas feridas/ Armadilhas antigas/ Guardadas em segredo/ São, enfim, nossos medos/ Que agora viemos cantar/ Ser Obaluaê, atotô/ Meu tambor ainda toca/ Dentro e em qualquer lugar/ Para seguir e caminhar/ Viver e se curar/ Ser Solar, ser Solar". É no ritmo de congo mineiro… O Maracatu Solar é um espaço de cura.

 

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