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"Eu sinto muito orgulho da mulher que eu me tornei"
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"Eu sinto muito orgulho da mulher que eu me tornei"

Bailarina, coreógrafa e diretora da academia de dança que leva seu nome, Vera Passos reflete sobre momentos importantes de sua trajetória e os desafios de se fazer dança no Ceará
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FORTALEZA, CE, BRASIL, 12-03-2020: Bailarina Vera Passos fala sobre os desafios da sua carreira e dos 30 anos de Academia Vera Passos.  (Foto: Thais Mesquita/O POVO) (Foto: Thaís Mesquita)
Foto: Thaís Mesquita FORTALEZA, CE, BRASIL, 12-03-2020: Bailarina Vera Passos fala sobre os desafios da sua carreira e dos 30 anos de Academia Vera Passos. (Foto: Thais Mesquita/O POVO)

Ao longo das mais de cinco décadas dedicadas à dança, Vera Passos, 60, tem sido bailarina, coreógrafa, figurinista, mãe, empresária e todo o resto. Com muitas emoções e desafios vividos fora e dentro dos palcos, Vera revisita uma trajetória pessoal que se inicia ainda na infância, quando as brincadeiras se confundiam com passos de balé clássico. "Eu nasci dentro de uma academia, eu respirava dança", costuma frisar.

Embora sua mãe, a pioneira bailarina Regina Passos, tenha os pés fincados na história das salas de dança clássica em Fortaleza, foi Vera quem, ainda na adolescência, deu o primeiro passo pelo jazz e encontrou nele o seu lugar na dança contemporânea. "Comecei a modalidade e me apaixonei. Foi quando eu disse: 'É isso que eu quero pra minha vida'", lembra. A paixão se transformou em ofício, e a maior realização do seu amor pela dança é a fundação da academia que leva seu nome, a Academia Vera Passos, um dos mais tradicionais espaços destinados à dança em Fortaleza e que acaba de completar 30 anos.

Ao longo da entrevista, "Tia Vera" (como é chamada frequentemente pelos alunos novos e antigos) se emociona com histórias e bastidores dos espetáculos já apresentados, as dificuldades na trajetória e comenta sobre o cenário da dança no Ceará. 

O POVO - Sua mãe, Regina Passos, é pioneira do balé clássico no Ceará. Isso de algum modo fez com que você manifestasse uma inclinação para a dança desde cedo?

Vera Passos - Eu nasci dentro de uma academia, eu respirava dança. A academia da minha mãe funcionava atrás da minha casa, era o "quintal" da casa. Então eu acordava, ia pra escola e logo quando eu voltava tinha aula de dança. Eu realmente fui envolvida desde a infância nesse cenário. Quando criança - com oito, nove, dez anos - não levava ainda muito a sério, tinha preguiça de dançar. Mas teve uma hora que minha mãe me deu um castigo... Eu não dancei no festival de final de ano da academia porque eu estava faltando muitas aulas. Esse castigo me serviu muito, porque fiquei arrasada e achava que até o último momento mamãe ia desistir do castigo. Mas não aconteceu, eu não participei mesmo.

OP - Algumas ex- alunas da Regina inclusive contam que ela era uma professora bastante rígida. Então ela era assim com as filhas também?

Vera - Pior ainda com as filhas. (risos) Depois disso eu vi que dança não era brincadeira, e comecei a levar tudo mais a sério.

OP - E como surgiu a identificação com o Jazz?

Vera - Minha irmã, a Cláudia Borges, é bailarina clássica. Ela resolveu abrir um grupo de jazz dentro da academia da minha mãe. Foi lá que eu comecei a modalidade e me apaixonei. Foi quando eu percebi: "É isso que eu quero". Minha "vibe" não era clássico, é o jazz. E o que ainda fixou mais ainda a minha vontade foi quando o Lennie Dale (coreógrafo americano radicado no Brasil, falecido em 1994), dançarino super famoso, veio pra Fortaleza para dar aulas no lugar da minha irmã, Cláudia, que estava grávida na época. Eu tinha 15 anos e ele já achava que eu tinha muito talento. Ele me olhou e disse: "Menina, você tem que fazer curso no Rio de Janeiro, se aprimorar". E aquilo ficou na minha cabeça. Mas minha mãe disse "Ah, não tenho dinheiro pra te mandar pro Rio agora". Então eu comecei a fazer pinturas em tecidos, roupinhas para bebês… E vendia tudo pra arrecadar dinheiro para conseguir a viagem. Aí eu comecei a ir para o Rio de Janeiro todo ano, durante as férias de dezembro e julho, para aprender sobre as novas tendências do jazz. Assim passei muito tempo da minha vida.

OP - Quando você fundou a escola, já era casada e mãe?

Vera - Já. Eu casei aos 19, tinha um filho e estava pra ter meu segundo. E bem antes disso, quando eu trabalhava com minha irmã, como professora de jazz, eu recebi um convite para dançar no Rio de Janeiro. É o sonho de toda bailarina dançar profissionalmente. Eu tinha me separado nessa época, me separei muito nova, e tinha meu filho pequeno. Fui conversar com minha mãe sobre isso, e ela disse que eu poderia ir, porque ela tomaria conta do meu filho, Paulo Neto. Deixei ele com minha mãe e fui passar essa temporada fora, para conhecer e me aprimorar no jazz. Lá eu vivi mesmo a vida do bailarino, fiz audições para comerciais, audições para shows. Só que a vida do bailarino no Rio… Se a gente acha que aqui é difícil, lá muito pior, é uma rivalidade muito grande, é "cobra engolindo cobra". Mas lá você tem muito mais chances de subir no palco, participar de vários musicais. Fiquei entre agosto e dezembro. Depois dessa temporada, eu disse: não, não é isso que eu quero pra mim, eu tenho uma terra, eu tenho um nome a zelar, eu quero fazer meu nome lá. Nessa época eu tinha o meu grupo de dança, o Pano de Boca, e ele foi o motivo de eu querer abrir a minha própria academia, porque ele começou a tomar maior proporção, a ganhar prêmios em competições, então eu senti necessidade de abrir minha escola, porque eu não queria aquela coisa só de aulas e festivais no fim de ano. Eu queria era botar minha dança no mundo.

OP - Quais foram as dificuldades nesse início da escola?

Vera - Foi tudo muito suado. Comecei do zero, certeza eu só tinha mesmo do apoio dos meus alunos, os que me acompanhavam desde a época do grupo Pano de Boca. Quando eu abri a escola, metade das alunas da academia da minha irmã me acompanharam, mas aquela quantidade não era o suficiente para sustentar uma academia de dança sozinha. O custo de uma empresa é muito alto, passei muitos anos da minha vida com as contas apertadas, fechava o mês com o mínimo de dinheiro que sobrava, e assim foi por muitos anos. Mas nunca tive medo de enfrentar os problemas, nunca sofri por antecedência. Hoje eu olho pra isso aqui, pra essa escola, as salas, e penso... Não sei como consegui. A gente empurra dali, empurra daqui, pede a um e a outro um empréstimo, mas eu nunca recuei. Porque eu acho que na vida não se pode ter medo de arriscar.

OP - E como você se sentiu ao participar do Festival de Dança Joinville pela primeira vez e seu grupo ter destaque na premiação já na primeira vez?

Vera - Foi em 1989. Fomos de ônibus daqui até Campina Grande, depois pegamos um avião para o Rio de Janeiro, e de lá seguimos para Joinville, mais uma vez de ônibus. Eu fui, mas não tinha muita noção de como era esse festival. Não tinha dimensão, queria mesmo era uma oportunidade de dar visibilidade ao grupo. Levei um jazz e um sapateado. A gente se apresentou e no dia seguinte voltamos pra casa. Uma semana depois recebi uma ligação de que tínhamos ganhado o segundo lugar, mas a gente não tinha ficado pra receber o troféu. Depois mandaram pra cá, por correio. Foi uma emoção muito grande, já na nossa primeira ida ao festival, ficar entre os três primeiros lugares.

OP - E depois veio o I Love Dance, nos Estados Unidos...

Vera - Sim, foi em 1995. Depois que a gente chegou de Joinville, uma amiga disse que a gente deveria participar desse festival, que acontecia em Orlando, durante sete dias. E lá foi a gente, numa primeira viagem internacional, com 66 bailarinas cearenses a bordo. Foi uma loucura, nunca tinha viajado com tanta gente pra uma competição de dança. Mas a gente tirou a melhor nota do sapateado juvenil, foi algo único pra gente.

OP - Quando essas premiações começaram a se tornar frequentes, isso lhe deu ânimo para seguir com a academia mesmo diante das dificuldades que se apresentavam?

Vera - Sim, as pessoas começaram a procurar a escola: "Ah, quero estudar na Vera Passos, porque ela viaja, ganha prêmios…". Eu comecei a ver o que eu tava proporcionando pra essas meninas era mais que prêmio, era o conhecimento, o amadurecimento e a oportunidade de vivências novas na dança.

OP - Você comentou que nunca sentiu vontade de recuar diante das dificuldades. Mas quando você decidiu montar a academia, assumiu a responsabilidade de diretora, para além de bailarina. Como você passou a conciliar isso?

Vera - O maior momento de conflito foi quando acabei com o Pano de Boca. Porque eu não estava conseguindo gerenciar o grupo por falta de patrocínio, e patrocínio para arte é muito difícil no Brasil e no Ceará hoje. A gente costuma dizer que artista não pensa no dinheiro mas sim na satisfação pela arte, mas eu tinha três filhos pequenos e uma academia que eu tinha que manter. Essa foi a decisão mais difícil da minha vida, abrir mão de um grupo tão importante pra minha trajetória como bailarina. Quando eu fui construir essa academia passei por muitos perrengues, vendi meu carro, tinha dias que não tinha dinheiro pra nada. Mas nunca desacreditei, nunca recuei.

OP - E como é a sua relação com as bailarinas, as ex-alunas, as professoras da academia??

Vera - Passaram muitas gerações por aqui, né? Muitas. Quase todos os professores que dão aula na Academia Vera Passos começaram aqui ainda crianças, com quatro, cinco anos. São meus filhos. Meus filhos criados aqui na academia. Tem muitas filhas de ex-alunas, as mães que passaram por aqui há anos muitas vezes voltam para dançar junto com as filhas. É muito bacana ver o desenrolar da história de vida delas.

OP - E com a rotina da academia, você ainda encontra fôlego para ministrar aulas?

Vera - Quando eu montei essa academia, percebi que, para ter a qualidade que eu queria para a escola, teria que parar de dar aulas. Foi uma decisão difícil, mas consciente. Mas eu entro aqui na academia cedinho e passo o dia todo acompanhando as aulas, conferindo o rendimento das alunas. Mesmo que eu não dê aula, fico pesquisando coreografias, pensando em apresentações. Pesquiso música, tema, figurino, e assim eu nunca paro meu corpo, nem minha cabeça.

OP - Sente saudades dessa vivência corporal da dança?

Vera - Eu voltei a fazer aula, mas no momento, nessa fase da minha vida, eu não sei se toparia dançar de novo, é uma cobrança muito grande...

OP - Recentemente, a Academia Vera Passos tem apresentado espetáculos com temáticas que dialogam com temas atuais, como é o caso do o espetáculo Manifesto (2018), que abordou a diversidade, e Ella(2018), sobre o empoderamento da mulher. Renovar a abordagem das apresentações tem sido uma preocupação da academia nos últimos anos?

Vera - Sim, gente tem que estar antenado com os temas atuais, o que está acontecendo no mundo. A dança é criatividade, e a criatividade  você aguça vivendo as situações cotidianas, o que você observa na rua, o contexto que a gente tá vivendo de um modo geral. Para montar uma coreografia são muitos dias pesquisando, pensando em cada detalhe. A gente sempre tenta abordar temas atuais, mas com muito cuidado. Às vezes eu penso muito em como o meu público vai lidar com isso, com temas fortes que a gente propõe em algumas apresentações.

OP - E como você se sente quando pensa sobre o que a dança construiu em sua vida, inclusive uma academia e tantos prêmios?

Vera - Quando eu olho pra trás, sinto um orgulho muito grande da mulher que eu me tornei. Eu fui muito corajosa e andei sempre muito positiva. E eu quero continuar trabalhando e fazer meus filhos na dança, meus professores evoluírem, porque quero que a academia, que a dança, seja de todos.

OP - E como você encara esse momento de pandemia do coronavírus? O que você tem feito para enfrentar essa quarentena? A dança tem sido uma aliada? 

Vera - Infelizmente está sendo preciso passar por uma desgraça como essa para as pessoas se humanizarem mais, cuidarem mais dos seus, cuidarem da saúde mental, cuidarem de suas vidas. Está sendo um aprendizado para mim e para todos. Estou tentando manter uma rotina, acordo e vou para a varanda tomar meu banho de sol, que preciso e adoro. Aproveito e faço um alongamento e exercícios de fortalecimento do corpo e da mente. E danço um pouco, é claro, pois a dança é o alimento da alma. Faço almoço com os filhos, troco ideias e informações com eles que são mais jovens e aproveito para criar. Estou elaborando novos projetos, criando novas possibilidades de figurinos... Sobre a academia, estamos nos unindo com os alunos mantendo aulas online, de todos os estilos e para todas as idades. Isso está mantendo um pouco a rotina e ajudando com o ócio das famílias, das crianças.

OP - E que lições você espera colher desse momento de fragilidade?

Vera - Acho que essa temporada vai abrir a cabeça de muita gente, desacelerando as pessoas. E se Deus quiser irá melhorar a vida de todos. Assim espero. 

 

Três décadas

Em 2019, A Academia Vera Passos celebrou 30 anos desde a sua fundação. Como parte das comemorações, o grupo apresentou  espetáculo adulto Fou e o espetáculo infantil Acorda, Alice!, ambos com  direção geral da coreógrafa Vera Passos.

Prêmios

Em sua trajetória, a academia tem mais de 90 prêmios acumulados, sendo 60 deles com colocação em 1° lugar. São reconhecimentos de alguns de importantes festivais de dança, como o Festival de Dança de Joinville (SC) e I Love Dance (EUA).

Espetáculos

Mais de 100 mil pessoas já prestigiaram os espetáculos da Academia em palcos cearenses. Entre os destaques estão Harry Potter(2001), Gatos(2002), Reino (2008) e Matilda (2013).

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