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Maria Vieira: a mulher no comando do futebol do Atlético Cearense
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Maria Vieira: a mulher no comando do futebol do Atlético Cearense

Há dois anos como presidente do antigo Uniclinic, Maria é a única mulher mandatária de um clube cearense atualmente. Em entrevista exclusiva, ela fala sobre os desafios do posto que atingiu e do machismo que domina o esporte
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FORTALEZA, CE, BRASIL, 10-03-2020: Maria Vieira, Presidente do Atletico Cearense Clube de Futebol. Fala sobre o protagonismo feminino no futebil e como ser presidente dentro do futebol machista. (Foto: Aurelio Alves/O POVO).. (Foto: AURELIO ALVES)
Foto: AURELIO ALVES FORTALEZA, CE, BRASIL, 10-03-2020: Maria Vieira, Presidente do Atletico Cearense Clube de Futebol. Fala sobre o protagonismo feminino no futebil e como ser presidente dentro do futebol machista. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)..

Maria fala e não restam dúvidas: ela não é mulher de meias palavras e nem de poucas. Aos 44 anos, Maria José Vieira é presidente do Futebol Clube Atlético Cearense, e a única mulher a dirigir um clube de futebol no Estado. Em pouco mais de dois anos, mudou nome, escudo, vibração e desempenho da agremiação. Trouxe para dentro do esporte uma vida inteira de pioneirismo, em que foi muitas Marias: na educação, na saúde, na luta pela água do Sertão, na inovação da energia. Maria que é mãe e vive jornada dupla tão igual a de tantas outras Marias Brasil adentro. Maria que rejeita o título de guerreira, porque não tem vergonha de, em meio a própria fortaleza, se assumir também fraca, e é exatamente aí em que reside sua potência. Nas próximas linhas, Maria fala dos desafios que enfrenta todos os dias sendo mulher e vivendo de futebol.

O POVO - Como o Atlético-CE recebeu a informação sobre a pandemia (de coronavírus), como vocês têm se preparado para esse período de paralisação e como você acha que isso pode impactar o clube mais para frente?

Maria - No primeiro momento, todos os presidentes fomos chamados para participar de uma reunião de emergência na Federação (Cearense de Futebol - FCF) para saber como íamos conduzir o final do campeonato. A princípio, não tínhamos casos no Ceará. Então, eu fui uma das pessoas que acreditou que poderíamos concluir as duas rodadas que antecediam a semifinal. Saímos determinados a fazer isso, só que, antes de chegarmos às sedes dos clubes, o quadro mudou. Assim como havíamos dito na Federação que, em caso de casos confirmados, tomaríamos uma segunda decisão, que era paralisar o campeonato e assim ficou combinado. No outro dia, tínhamos a notícia de três casos, evoluíram para nove e, por fim, o governador (Camilo Santana) decretou estado de emergência. Achamos por bem parar o campeonato, independentemente de qualquer situação relativa ao certame, mas pensando mesmo na saúde pública.

O Atlético, frente a isso, resolveu liberar todos os seus atletas, checou todo mundo, deu a opção de estarem no clube, por ser um lugar seguro, sendo alimentados, cuidados e deu a opção de irem para casa e a maioria optou por isso.

Isso impactará começando pelos treinamentos. Voltaremos numa situação de recomeço, mas prefiro pensar que estamos fazendo isso em detrimento de um bem maior. As competições, não sei como ficarão calendários, como se portará essa epidemia, que tratamos assim porque não temos ciência de quantos casos existem, porque existem as sub-notificações. Nos falta agora até mesmo a coragem de planejamento, pois vamos planejar para quando e como?

Não sabemos que o que virá. O que foi por bem ser feito, fizemos. Não vamos pensar nesse momento que teremos, por conta dessa paralisação, o Atlético prejudicado, eu acho que temos que pensar no bem comum e, quando pudermos, retomarmos o trabalho e que espero que sejam dadas as chances de recomeçarmos em pé de igualdade, nos dando tempo para nos prepararmos para voltar.

O POVO - Sua carreira no futebol não é longa. Ela começou em 2017. Quem era a Maria antes disso, qual sua formação e o que aspirava?

Maria Vieira - Fui muitas Marias. Sou formada em pedagogia, especialista em saúde comunitária. Quando vim ao futebol, tava concluindo meu projeto de MBA em Gestão Ambiental. Estava trabalhando com energia solar. Inclusive, contribuindo com a formação de energia solar aqui no Estado, uns projetos bem bacanas. Aí, teve um tempo que cansei de tudo, queria um ano sabático. Só que tive o convite para escrever a história do Ari (jogador cearense Krasnodar, da Rússia, e arrendatário do Atlético-CE) e, mesmo assim, fiquei um pouco resistente. Como gosto muito de futebol, é um pouco irresistível um convite desses. Estar nesse âmbito e tal. Só que não era nada que eu imaginava.

Geralmente você vai pro estádio ver os resultados. Não tinha a mínima noção do que era gerir um clube. Foi uma reviravolta. Antes, minha leitura era técnica, lidava com projetos sociais do Governo Federal. Minha vida era uma coisa totalmente diferente do mundo do esporte. Compreendia o esporte, mas aquela coisa "esporte pela vida, pelo desenvolvimento". Então, o (Acisne Melo) Victor, diretor de futebol daqui e representante do Ari no Brasil, me convidou para vir. Disse que eu não queria, pois eu não estava mais afim mesmo, de jeito nenhum. Ele me colocou na linha com o Ari e com o Ari a gente não consegue dizer não para ele. Quando ele chegou em Fortaleza, nós já iniciamos esse vínculo e aí tudo aconteceu muito naturalmente.

Não tinha a menor pretensão de ser gestora, mas você vai se envolvendo com o trabalho e vai vendo a necessidade de mostrar algo em que você acredita. Como eu já venho da formação humana, eu acredito que no futebol os meninos tenham que ter uma outra perspectiva de vida dentro. Pois depois, quando acaba, e aí, vamos fazer o quê? O que nós ambicionávamos no início do projeto, e ambicionamos até hoje, é dar uma profissão pros meninos, que eles vejam o futebol como uma profissão, um lugar onde eles vão ganhar o dinheiro deles e que eles possam gerenciar isso na pós-carreira.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 10-03-2020: Maria Vieira, Presidente do Atletico Cearense Clube de Futebol. Fala sobre o protagonismo feminino no futebil e como ser presidente dentro do futebol machista. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)..
FORTALEZA, CE, BRASIL, 10-03-2020: Maria Vieira, Presidente do Atletico Cearense Clube de Futebol. Fala sobre o protagonismo feminino no futebil e como ser presidente dentro do futebol machista. (Foto: Aurelio Alves/O POVO).. (Foto: AURELIO ALVES)

OP - Como era a Maria torcedora? Como foram seus passos para conhecer o futebol?

Maria - Eu sempre fui muito fã do meu irmão (José Vieira). As pessoas acham até que eu sou irmã do Ari, olha! Meu irmão tem doutorado em Agronomia, não tem nada a ver com o futebol, mas, quando a gente era pequeno, sempre tive uma grande proximidade com ele. Lá onde a gente morava, não tinha escola ao nível que nossos pais queriam, então, bem pequenininhos, já íamos nos separando para morar em escolas internas e para ir morar na casa de tia. Sou de Pedra Branca (no Sertão Central), do distrito de Santa Cruz. Aprendi a gostar de futebol, primeiramente, com ele. Fazíamos aqueles álbuns de figurinha da Copa, passei muitos anos apaixonada pela seleção de (19)82. Acho que é o ícone máximo para mim de futebol. Queria muito ter me aproximado dessa história um pouco mais, mas lá não tinha transmissão de TV de Fortaleza para o Interior. Tudo que pegávamos era do Sul, Sudeste. Ainda tem muitos lugares que não conhecem a realidade de Fortaleza em relação ao futebol. Eu gostava muito de ver o Corinthians jogar, aquela energia toda, dos times do Rio, do Fluminense. Também me apaixonei pelo Grêmio. O que eu tinha de referência de futebol era aquilo ali e a seleção brasileira. Era o que conseguia chegar.

Não escondo minha paixão por futebol de jeito nenhum e nem os times de que gosto. Quando vim para Fortaleza, acho que era bem o início da adolescência, a primeira coisa que vi que mais me chamou atenção foi uma grande bandeira do Fortaleza. Fiquei encantada com aquelas cores. Aí, o Fortaleza foi o primeiro time que eu realmente comecei a acompanhar, entender mais de futebol, de ouvir do rádio, de ler as crônicas. Sou apaixonada por ler crônicas esportivas, o zelo com o qual se escrevia.

Nunca quis jogar futebol, pois não sei. Ficava me perguntando por que as meninas não podiam jogar futebol. Eu jogava na rua, muito pequena e naquelas disputas que se alguém tomasse a bola de mim, eu a pegava e ia embora. Era a dona da bola. Toda vida, fui crescendo vendo o futebol na vida das pessoas. Por exemplo, nós temos 184 municípios (no Ceará). Em qualquer um desses que você chegar, vai ter um campinho de futebol improvisado. Acho que isso me encantou muito, quando o Ari me chamou e comecei a ouvir a história dele para escrever. Lembrava de todas as coisas que eu fazia sem nem imaginar que um dia me aproximaria tanto do futebol. E eu era torcedora ferrenha, brigona em rede social e eu não queria que isso morresse em mim.

Quando comecei como gestora, a primeira coisa que quebrou foi a questão da torcida. Agora, preparo garotos para jogar em qualquer time. Por isso, gosto sempre de falar: torço mais pelo futebol do que pelos escudos. Escudo a gente muda. Eu acabei de mudar esse daqui (do Atlético), acabamos de mudar a história de um clube. Mudei o nome (era Uniclinic), mudei a cor (era azul, branco e amarelo), mudei o escudo e o futebol é o que importa, o que fica. Comecei a ver que devíamos lutar mais pelo futebol e acho muito errado como algumas pessoas pensam ainda na individualidade da disputa. A disputa fica pro certame, mas acho que temos que perpetuar isso: a vontade de promover os meninos, a vontade deles de jogar e de fluírem através de um esporte tão encantador.

OP - Em algum momento você projetou estar onde você está hoje?

Maria - Não. Eu acho que nem descobri qual minha vocação ainda. Sempre fiz coisas bem difíceis, sempre quis ser pioneira de alguma coisa. Talvez não porque eu almejasse chegar primeiro, mas porque tava faltando ali e eu ia lá e realizava. Por exemplo, quando comecei a trabalhar com educação especial, lá em Pedra Branca, ninguém falava disso. Criei um projeto lá chamado "A vida - Arte de brincar", que a gente estudava a vida das crianças em relação a família. A arte foi a metodologia que eu trabalhava, a arteterapia. A família que estava sendo atendida se descobria mais feliz brincando. Até hoje existe esse projeto lá. Para mim, na minha vida, foi algo inédito e ficou. Fico feliz. Me despedi sem nenhum choro, sem nenhuma saudade, pois foi criado para as pessoas.

Depois, começamos a fazer uma formação dos agentes comunitários de saúde. Fui fazer parte de um grande projeto, formamos, ao mesmo tempo, todo o Estado. Aí eu fui convidada para escrever uma cartilha de educação e saúde para um projeto do Ministério da Integração Nacional, que era justamente o programa Água Para Todos. O desafio era implantar as cisternas de polietileno no Estado, mesmo tendo toda mídia, todas as ONGs dizendo que o negócio dava câncer, isso e aquilo. Tive que realmente me diluir nas comunidades para pesquisar sobre isso, mas eu já tinha trabalhado com outro modelo de armazenamento de água e conseguimos implantar no Estado mais de 44 mil cisternas, deixando a esperança para as pessoas. Minha cartilha foi um marco também. Conseguimos espalhar isso pelo Ceará todo, serviu de modelo para outras pessoas. Também me despedi desse projeto sem nenhuma saudade porque, de novo, estava deixando algo para que as pessoas se tornassem donas de suas decisões.

Depois, com a energia solar, da mesma forma. Ainda é uma coisa que as pessoas têm dúvidas, nem têm acesso. Na empresa que eu trabalhava, criamos um projeto de formação. Claro, era bem caro, mas fomos pioneiros no Ceará em relação a formação de energia solar. Depois fiquei cansada de tantos desafios que não eram mais desafiadores. Talvez o futebol também, chegue um momento que não vá ser desafiador e vou me despedir sem saudade nenhuma, mas é muito difícil não sentir saudade de futebol. Quando termina um campeonato, a gente já fica quase chorando.

OP - E quanto a sua família, como ela recebeu esse desafio?

Maria - Eu já morava na mala, viajando pelo Estado. Com o futebol, teve um estranhamento, mas ninguém fala, não. Acho que o maior desafio disso tudo foi ter que ficar longe da minha família. São dois anos que tenho que atravessar a Cidade para vir trabalhar todo dia. Venho de manhã, só vou embora à noite. Não tenho horário. Minha filha é uma adolescente e, de repente, eu chego em casa e ela tá maior do que eu. A gente quase não nota. Moramos minha mãe (dona Margarida), minha filha (Mariana Margarida) e é realmente uma punição, às vezes, porque no domingo, é o dia que todo mundo pode ficar em casa, eu vou pro estádio. Então, eu acho que elas sentem um pouco.

Infelizmente, nós moramos em um país que não está muito preocupados com a qualidade de vida das pessoas. Tem que lutar mesmo para ir vivendo como você pode. O que posso cuidar da minha família é trabalhar e elas têm que entender. A minha mãe me acorda para que eu possa ver jogo na TV, gosta de torcer, ela critica o jogo. Tô vendo a hora ela virar uma analista de desempenho.

A Mariana, quando era menorzinha, eu levava ao estádio, trazia aqui, mas agora não dá mais, pois sou ciumenta. Ela é muito linda, tem 16 anos e tá bem maior que eu, então não dá. Um dia desses, ela comemorou um gol e um camarada disse que ela estava fazendo uma declaração para o atleta. Eu não gostei. Ele nem sabia quem era ela, nem o porquê ela estava ali. Achei machista, sexista, horrível, pois não tinha nada o que comentar isso. Ela só tava torcendo. Como a mulher é vista no futebol me entristece.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 10-03-2020: Maria Vieira, Presidente do Atletico Cearense Clube de Futebol. Fala sobre o protagonismo feminino no futebil e como ser presidente dentro do futebol machista. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)..
FORTALEZA, CE, BRASIL, 10-03-2020: Maria Vieira, Presidente do Atletico Cearense Clube de Futebol. Fala sobre o protagonismo feminino no futebil e como ser presidente dentro do futebol machista. (Foto: Aurelio Alves/O POVO).. (Foto: AURELIO ALVES)

OP - Como é que esse título de ser a única mulher entre os dez dirigentes dos clubes do Campeonato Cearense, pesa no seu cotidiano?

Maria - Às vezes, eu me acho um pouco solitária nesse fazer, queria que tivesse mais mulheres para gente comungar de ideias, porque muitas vezes são ideia boas, mas não são absorvidas porque ainda há um corporativismo, há uma união maior entre os homens. Ser presidente de um clube é muito difícil, mas tem gente que passa por isso com tranquilidade, porque tem um estafe maior, um preparo maior, dinheiro maior.

Mas ser mulher dentro do futebol é uma coisa impressionante: você é julgada a todo o momento. No último jogo que fui, com o Fortaleza, no Castelão, eu tinha que pagar a conta. Pedi licença (ao segurança) para ir ao vestiário e o homem perguntou quem eu era. Antes da minha resposta, outro disse: "É mulher de jogador, deixa ela entrar". De novo, você vê como as mulheres são julgadas por estarem nesse âmbito de futebol. Ser mulher de jogador não é ser desclassificada, mas porque só pode ir até ali? Eu só posso ir a um estádio se tiver um namorado que joga futebol? Só posso ir pro estádio se for procurar um namorado?

Isso me entristece muito, porque coloca as mulheres hoje no futebol no anonimato. Tem a dona Inês Cabral, ela é uma das primeiras mulheres a ser dirigente em um clube de futebol, e é da diretoria do Ceará. Temos a Federação cheia de mulheres que exercem cargos importantes como dirigentes, coordenadoras, o financeiro todo é feito por mulher. Tem muita gente que deveria ser mostrada no futebol administrativo. Mas, em nenhum momento, eu sofro as pressões de pensar como homem. Pude trazer mulheres pra estar no Atlético. Vou acertando, vou errando. Todas que chegam aqui, espero que elas compreendam a mensagem do que é estar no futebol: é você também lutar para você não ser objeto.

Porque nós temos uma carga machista muito antiga. Temos, infelizmente, uma misoginia muito disfarçada de bons costumes, que é uma farsa, um subterfúgio de achar que as mulheres boas são aquelas que exercem papéis que não estão na linha de visão dos homens, competindo com eles. Não sou superior, não acho que a mulher seja superior ao homem. Eu acho que os gêneros tem que se completar, estar ali para dialogar. Aí sim, quando a gente consegue dialogar com o outro, eu enxergo como uma evolução, mas estamos bem longe disso ainda.

OP - Que situações você passou, foram difíceis e que tem esse machismo enraizado?

Maria - A primeira coisa que pergunto quando uma pessoa vem buscar um emprego aqui, é: "Você consegue ser mandado por uma mulher? Se você não conseguir, veio ao lugar errado". Eu sou muito mandona, controladora, porque não gosto de ver nada errado ou alguém fazer pela metade. Então, eu tenho que realmente dizer. Mando com amor, às vezes (risos). Às vezes, a gente vai em uma entrevista e a pessoa encontra um jeitinho de dizer um negócio bem escroto. Pode ser quem quer seja, eu falo na hora. Amo trabalhar no Atlético, amo a história do Ari, tenho muito respeito por ele, mas me incomodo das pessoas acharem que sou presidente do Atlético "porque eu sou irmã do Ari", ou mãe. As pessoas sempre dão um jeito de aliar uma falsa proteção à mulher para ela chegar naquele ponto. Se ela chegou mais alto, é porque ela foi protegida por alguém, né? E nenhum dia é fácil. Nas votações (com os dirigentes) não é fácil, nunca. Só teve um ou dois homens que votaram com a minha ideia. A pessoa não vota por perrengue, porque é uma mulher que tá dando a ideia, e já vi muita coisa assim. Na rede social, nem leio. Só posto meus gatos porque não vou perder meu tempo com isso.

Só um dia desses, que eu quis brigar no estádio, com um homem, porque ele foi muito chato. Mas ainda bem que tem pessoas boas que seguram a gente. Os homens acham que a mulher é sempre obrigada a ser pacífica, mas não sou obrigada a isso, porque não sou dessas.

OP - Você acha que nesses dois anos, de alguma forma, a sua presença serviu para educar essas pessoas?

Maria - Acho que uma coisa que é muito dura, fechada, ela leva algum tempo para ser quebrada. Talvez, tudo que está sendo feito agora só reverbere daqui a dez anos. Mas, por exemplo, já estive em reuniões de homens que um certo homem começava a discursar e outro dizia: "Eita, já virou aluno da Maria". Eu pensava "que bom", mas não dizia nada. Fazia de conta que não tava ali, porque as minhas ideias já estavam passeando por ali. Mesmo que de forma muito tímida.

Outro dia, aconteceu um negócio e fui pra cima da pessoa com gosto de gás, porque eu brigo mesmo. Todo mundo falou do assunto, mas ninguém apoiou a minha ideia. Porque era outro homem a quem eu estava dando a chamada. Depois eles ligavam dizendo: "Gostei muito do que você disse no grupo, parabéns pela sua fibra". E eu dizia: "Pois diga lá no grupo, é bom você dizer lá". Mas que homem tem coragem de ficar contra outro homem? Ainda precisamos avançar muito. Mas já existe um pontinho de esperança.

OP - Como você vê o trabalho brasileiro feito nas categorias de base, que foi o seu caminho no futebol? Você enxerga falhas?

Maria - A maioria desses meninos vêm de uma realidade muito sensível, socialmente muito frágil, lhes faltam coisas básicas como alimentação e transporte. Acho que nós ainda estamos fazendo, no Brasil, a categoria de base errada. Porque terminam os campeonatos, o menino não serve mais, ele vai embora. A categoria de base é a esperança que nós temos de ter uma seleção de 1982, e nós estamos muito distantes disso. Hoje, temos um laboratório de fisiologia que estuda o potencial dos meninos. De uma forma institucional, estamos bem preparados para desenvolver esses atletas. Mas a consciência do que é a categoria de base ainda está muito distante. Nós temos, hoje, alguns perigos que são muito mais perigosos do que os de antes.

Antes a gente tinha que lidar com a evasão escolar, porque o menino que joga futebol, não quer estudar, não quer faltar o treino. Se ele não for conduzido, ele não vai conseguir desenvolver as habilidades para a aprendizagem. E aí tem os casos de pedofilia, que todo mundo sabe e fecha os olhos. Todo mundo sabe onde está, mas ninguém fala nada. É uma coisa terrível, quando a gente começa a escutar as histórias dos meninos que foram assediados, a gente vê o quão monstruoso é fazer isso nos sonhos desses adolescentes. Ele não consegue mais se relacionar com ele mesmo, imagina com a família, que muitos já crescem longe. Aí tem a questão das drogas, que hoje, principalmente, em que eles anseiam muito fazer parte de um grupo social. Eles querem pertencer a algo, e acabam pertencendo ao que não é bom.

Tem várias coisas que, dentro desse caminhar, muda a carreira deles para sempre. A base é onde estão todos os valores que nós podemos aplicar. Tem de se pensar a forma de inserir esses meninos na educação de forma responsável, ver o que eles gostam de aprender, contextualizar a aprendizagem dele, nessa transversalidade de temas; proporcionar uma segunda língua, principalmente adequá-los a outras culturas.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 10-03-2020: Maria Vieira, Presidente do Atletico Cearense Clube de Futebol. Fala sobre o protagonismo feminino no futebil e como ser presidente dentro do futebol machista. (Foto: Aurelio Alves/O POVO)..
FORTALEZA, CE, BRASIL, 10-03-2020: Maria Vieira, Presidente do Atletico Cearense Clube de Futebol. Fala sobre o protagonismo feminino no futebil e como ser presidente dentro do futebol machista. (Foto: Aurelio Alves/O POVO).. (Foto: AURELIO ALVES)

OP - O que ser mãe da Mariana lhe proporciona como gestora?

Maria - Às vezes me dizem assim: "Maria, você é uma mãezona". Eu digo: "Eu não sou uma mãezona, eu sou uma gestora". Mãe eu sou da Mariana. Agora, a minha sensibilidade adquirida enquanto mãe, que eu sei que às vezes que minha filha adolescente apronta, me dá dor de cabeça, é usada. Eu a preparei para ser uma mulher forte e não estou arrependida, porque fiz um bom trabalho. Mas é muito difícil criar uma mulher, e eu espero que minha filha entenda o que é ser mulher verdadeiramente: que a beleza de tudo está no que ela vai se propor fazer.

Aqui, eu olho pros meninos e penso quais as dificuldades que eles estão passando naquele dia, que eles não podem contar com conselho, com colo, com carinho, porque estão muito longe de casa. E eles têm de comer na hora, seguir uma disciplina rígida. E é um cuidado não só técnico, mas de imaginar os sentimentos desses meninos em relação a isso.

Fizemos um plano-piloto de nutrição, em 2018, e fiquei desesperada de ver os meninos sofrendo em um regime e comecei a fazer a dieta juntamente com eles. Eu fiquei magrinha, mas era emocionalmente terrível. Eu disse: "Opa, peraí, os meninos não vão passar por isso". Porque além da pressão de dentro do campo, ainda tinha a pressão da alimentação, que não era comer por prazer, era uma obrigação. E aí a gente repensou a alimentação. Essa experiência de mãe faz com que a gente olhe mais atentamente aos sinais.

OP - Qual o balanço que você faz dessa metade de mandato?

Maria - Nós atingimos alguma coisas que ninguém acreditava. No primeiro ano, eu abria os jornais e tinha uma escalinha (tabela) lá e o Atlético estava lá embaixo. O Uniclinic era cotado sempre para cair. Eu nem tinha ciência dessa responsabilidade e já começamos com o 4 a 0 com o Fortaleza, o Gustagol infernizando a minha vida (risos). Mas eu tinha a certeza que nós tínhamos a capacidade. Eu não estava mais vendo o futebol da arquibancada, agora era do campo. E a gente passava a semana trabalhando, é possível que a gente não vai vencer? No outro jogo ganhamos de 4 a 1. Isso deu fôlego, e nesse ano conquistamos a vaga da Copa do Brasil e da Série D. Para quem tava entrando com um Uniclinic desacreditado, foi um marco principal de chegada e com muitos desafios.

No segundo ano, nós chegamos em quinto (no Estadual). Perdemos calendário, nosso planejamento foi quebrado por outras pessoas que não pensavam permanecer. Esse ano, tivemos que reformular pensamentos, conceitos. Ao invés de ter 90% do time de fora, passamos a ter um time mais cearense, com meninos que nós formamos, com coragem de subí-los pro profissional. Jogamos a (Taça) Fares Lopes e fomos vice-campeões. Fomos para Copinha (Copa São Paulo de Futebol Júnior) e, para ser o primeiro ano, fizemos muito bem feito, passamos da primeira fase e nossos meninos saíram bem avaliados.

Tivemos erros, claro, mas acho que tivemos mais acertos do que erros. A necessidade que vem é de nos reprogramar, eu estou indo buscar mais literatura, falar e entender mais sobre gestão, buscar pessoas que se proponham a fazer o futebol extracampo, que não é só bola rolando. O futebol administrativo é muito difícil de fazer, tem de vencer e todos os dias levar três pontos. Porque se não, essa derrota entra em campo. Eu não sou convencida, mas sou convicta de que fizemos um trabalho muito bem feito. Nada resiste ao trabalho e já tem dado frutos. Já temos meninos sendo projetados para o futebol, não apenas cearense, mas de outros estados e de outros países. Eu acredito que nós estamos no caminho certo, mas, claro, ninguém se iluda, tudo tem que melhorar muito em todos os setores.

OP - Por mais masculino que seja o ambiente em que você está, você se cerca de mulheres, tanto como assessoras, como na sua vida pessoal, você mora com duas Margaridas (a mãe e a filha). Diante dessa força feminina pela qual você se cerca, o que podem as mulheres?

Maria - Elas podem tudo. Primeiramente, eu acredito que a alma não tem barreiras, ela é infinita. Então, todas as possibilidades que você se propuser, você pode alcançar, contato que você realmente se entregue. Esse entregar-se exige muitas abdicações, espera, paciência. Tem dias que você não quer sair da cama, não quer ver as pessoas, mas se você tem objetivos, você tem de passar por tudo isso e ir lá fazer. E, uma vez que a mulher venha a se expandir, ela nunca mais voltará ao mesmo tamanho. Por isso, que eu valorizo muito a luta do feminismo, valorizo o despertar de mulheres que estavam em seus casulos. Que todas as mulheres se protejam, criem uma rede de proteção, que são muito importante.

Eu tive uma experiência como ouvidora, na minha época com educação comunitária em saúde, que era ouvir mulheres que sofriam abusos. E, para cada uma daquelas mulheres, eu criava um pensamento do que poderia se transformar uma mulher, que às vezes a carência afetiva fazia com que elas ficassem impostas a algumas situações. Mas não é só carência afetiva, é carência financeira, de atenção para com ela mesma. E eu acho que se todas as mulheres poderem sair e ir à luta, elas podem chegar onde elas quiserem. Claro, que precisam de preparo e de entrega.

Quando assumi aqui, tinha um escritório no shopping, e depois que comecei, não voltei mais lá, porque eu precisava estar aqui, eu tinha de ser de fato o que eu estava me propondo ser. E não me arrependo me um dia de estar aqui. As pessoas me conhecerem e saberem do meu trabalho é um termômetro que mede onde uma mulher pode ir quando ela quer, e não tem nenhuma que não possa ir. Todas são capazes, mesmo que os embargos sejam grandes. Acho que as mulheres têm de empoderar-se.

Tem um movimento chamado "empowerment", que traduziram para empoderamento e fazem coisas que não tem muita relação com empoderamento, que é, justamente, o poder que está dentro de você tem de ser despertado por você, é intrínseco. Você tem de fazer ele fluir de você, não pode esperar por estímulos externos, você tem de que dizer: "Eu posso e venha alguém me dizer que eu não posso!". Todas as mulheres podem. (Colaborou Iara Costa / Especial para O POVO)

Autodefinição

Ao ser questionada sobre uma definição dela mesma, Maria se declara uma mulher forte, mas diz não gostar do termo guerreira. "Eu não gosto da alcunha de guerreira. Porque é uma forma romântica das pessoas desconsiderarem as dores que nós sentimos. Então, eu prefiro dizer que eu sou forte e que tenho coragem de dizer que sou fraca".

 

Pioneira

Antes de Maria, o futebol cearense teve outra mulher no comando de um clube. Mileide Morais foi presidente do América-CE, que na última década disputou a Série C do Campeonato Estadual.

 

Leitura

Nn dia da entrevista, sobre a mesa do escritório em que trabalha, na sede do Atlético-CE, no bairro Lagoa Redonda, estava o livro Mulheres que Correm com os Lobos. De autoria da psicanalista Clarissa Pinkola, a obra é a interpretação de 19 lendas e histórias antigas, em que analisa a essência da alma feminina, sua psique instintiva mais profunda.

 

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