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"Tenho receio de que a crise gere atos autoritários"
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"Tenho receio de que a crise gere atos autoritários"

| Mundo pós-coronavírus | Pesquisadora das formas de autoritarismo, Lilia Schwarcz adverte para riscos de cenário de pandemia resultarem em ações de restrição das liberdades
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FORTALEZA, CE, BRASIL, 14-10-2016: Lilia Moritz Schwarcz, antropologia, fala ao microfone. Lilia Schwarcz, Antropologia, assina sua biografia no Teatro Celina Queiroz, na Universidade de Fortaleza (UNIFOR). (Foto: Aurélio Alves /Especial para O POVO) (Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves FORTALEZA, CE, BRASIL, 14-10-2016: Lilia Moritz Schwarcz, antropologia, fala ao microfone. Lilia Schwarcz, Antropologia, assina sua biografia no Teatro Celina Queiroz, na Universidade de Fortaleza (UNIFOR). (Foto: Aurélio Alves /Especial para O POVO)

Historiadora e antropóloga, Lilia Schwarcz desconfia de que a pandemia do novo coronavírus pode ter consequências políticas indesejadas no Brasil e no restante do mundo, como o fortalecimento da retórica nacionalista e de formas de extremismo.

"Tenho muito receio de que a crise não só gere atos de solidariedade, mas gere também atos muito autoritários", adverte a professora e estudiosa do tema, cuja obra mais recente chama-se "Sobre o autoritarismo brasileiro".

Em conversa com O POVO na última sexta-feira, 17, Schwarcz alertou para a hipótese de que o problema sanitário resulte em mais populismo. "Cercar as fronteiras e os territórios", continua a pesquisadora, alimentaria "um sentimento de pátria e de isolamento" que são o substrato dessa retórica.

Para ela, a explosão de casos de Covid-19 no país também tem escancarado as desigualdades sociais brasileiras e revelado segmentos mais vulneráveis para os quais a sociedade, de modo geral, estava de olhos fechados.

Docente da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, a historiadora avalia ainda que o grave momento vivido agora está contribuindo para reconfigurar o papel da mulher na esfera pública.

"Talvez haja outra forma de fazer política que não seja aquela que nós conhecemos há tantos séculos", reflete, "uma política sempre dominada por homens da classe média ou mais ricos, dogmáticos. A política sempre foi espaço da virilidade".

O POVO - Como a senhora tem vivido a quarentena?

Lilia Schwarcz - Eu estava dando aula em Princeton (universidade nos Estados Unidos) quando tudo aconteceu. Voltei de uma hora pra outra, dia 12 de março. Tinha que ficar mais, mas a faculdade fechou, e eu comecei a ver notícias do que parecia impossível, que os aeroportos iam fechar também etc. Cheguei (ao Brasil), e os médicos aconselharam que eu ficasse em quarentena. Mas eu me sinto muito privilegiada, pensando no restante dos brasileiros. Este é um dos países mais desiguais do mundo, então as condições do que a gente chama de casa são muito diferentes. A gente sabe que casa não quer dizer lar no Brasil, no sentido do aconchego, da inclusão. Temos muitos casos de violência doméstica, de violência contra a criança. Eu ainda habito numa estrutura familiar muito acolhedora, muito boa e estável. Moro numa casa que permite que as pessoas não fiquem se atropelando a todo momento e tenho uma profissão que é favorável. A minha profissão é feita de dar aula, e isso vem atrapalhando um pouco, não tanto em Princeton, mas aqui no Brasil, que é mais complicado, justamente por causa da falta de equidade. Mas eu vivo também de pesquisar, escrever, de modo que meu cotidiano já era muito feito de sentar na escrivaninha pra ler. Continuo, mas tenho sido muito interrompida por mim mesma porque está sendo impossível não ler notícias. A pandemia faz isso com a gente, nós ficamos muito ligados na nossa dor e na dor dos outros. Como essa doença é muito paradoxal, porque pede de nós a solidariedade mas pede que fiquemos isolados, acho que minha parte na solidariedade pode ser também ajudar as pessoas a refletirem um pouco sobre esse momento, sobre a história, sobre o passado e sobre o nosso desejo de futuro.

OP - Para a senhora, o mundo e o Brasil que vão sair dessa crise serão mais ou menos desiguais?

Lilia - Eu penso que essa pandemia tem escancarado as desigualdades. Quando a infecção chegou ao Brasil, as pessoas no começo desacreditavam... Quer dizer, uma parte continua a desacreditar, inclusive o nosso governo. Então a atitude de negacionismo foi muito grande. Diziam que não éramos um país de tantos idosos, o que não é verdade. O crescimento dos idosos na população brasileira é um fato importante de ser notado. As pessoas também falavam que o vírus não se move no calor etc. Temos visto que essa pandemia da Covid-19 entrou no país a partir dos aviões, sobretudo das elites, que foram viajar à Europa e aos Estados Unidos e voltaram contaminadas, mas, no momento em que nós falamos agora, ela não se localiza mais apenas nos bairros nobres. Pelo contrário. Ontem e hoje li reportagens que mostram que a epidemia está avançando nos subúrbios das grandes cidades, com uma autorreprodução nas comunidades. E o que acontece no Brasil? É um país tão desigual, que transforma a desigualdade numa desigualdade invisível. As pessoas não gostam de ver a desigualdade, preferem silenciar sobre ela. E o que a pandemia está fazendo é abrir os olhos para as populações vulneráveis neste país. Estou me referindo aos mais idosos, aos mais pobres, aos negros, aos indígenas, às mulheres negras, ou seja, todos aqueles que em geral compõem um corpo que a grande sociedade brasileira não gosta de ver. A pandemia acirra, sim, as desigualdades.

OP - Uma que fica evidente é o acesso à moradia.

Lilia - Sim. Os dados vêm mostrando que 50% dos moradores brasileiros não têm acesso ao esgoto e 33 milhões de pessoas não têm abastecimento de água potável. Além de tudo, mais de 20% dos brasileiros moram em casas com três ou mais pessoas. Ora, esses dados mostram a desigualdade nas condições daquilo que a gente chama de lar ou casa no Brasil e como a pobreza é duplamente afetada. É afetada porque essas pessoas não têm acesso aos equipamentos básicos que as elites têm. Não têm acesso também à saúde pública, por mais que nós tenhamos o SUS, essa maravilha criada na Constituição de 1988. Pesquisas recentes vêm mostrando que as populações pobres já carregam pontos vulneráveis na sua saúde, como diabetes, pressão alta, problemas respiratórios, problemas coronários. Portanto, são duplamente vulneráveis. É nesse sentido que eu digo que a pandemia escancara desigualdades que já existem.

OP - Outro aspecto já foi citado pela senhora, que é o aumento da violência doméstica. Como fica o papel da mulher num momento como este?

Lilia - Eu sempre digo que a gente abre uma porta e fecha outra. Qual é a porta que se abre? Em casas estruturadas, talvez os homens, maridos, amantes, namorados e "namorades", comecem a perceber essa dupla jornada de trabalho das mulheres e passem a tomar ciência sobre o trabalho da casa, que em geral é bastante invisível para uma parte da família. Esse é um lado possível. O outro lado é esse de que boa parte dos brasileiros, e eu acabei de citar os dados, não vive em famílias estruturadas, ao contrário. Também não vive em lares. Para as elites, a sala de estar é o local de sociabilidade. Para as populações pobres, é a rua esse local. É muito complicado a gente falar de isolamento de uma forma geral. A gente tem que demandar o isolamento das populações que de fato podem fazer o seu isolamento, mas boa parte dos brasileiros não têm a mesma concepção de lar e estrutura que as elites têm.

Foto reprodução do wikipedia da historiadora e antropologa, Lilia Schwarcz. (Foto Reproducao)
Foto reprodução do wikipedia da historiadora e antropologa, Lilia Schwarcz. (Foto Reproducao) (Foto: Reprodução)

OP - De modo geral, como a senhora imagina que a pandemia afeta o mundo hoje e o que vai ser irreversível depois que a gente sair disso?

Lilia - Como historiadora, sou um pouco teimosa. Acho que, se a humanidade aprendesse com a história, os historiadores estariam noutra posição no mundo. O que a gente tem visto é que nós passamos por outras crises que vêm sendo comparadas com a pandemia: as guerras mundiais, a própria gripe espanhola de 1918, o crack da bolsa de 1929. E a pergunta que se pode fazer é retroativa: o que a humanidade aprendeu naquelas circunstâncias? Eu não sei. Pense no que foi a República de Weimar, entre as duas guerras. Foi um primeiro experimento democrático que não deu certo, e mesmo assim nós não aprendemos. Não deu certo por causa dos extremismos de direita e de esquerda, que resultaram nesse ufanismo e nacionalismo assassinos que foram o fascismo e o nazismo. Então eu, de um lado, acho que a gente aprende pouco. Sou um pouco cética quando as pessoas falam "não vamos sair, vamos ser mais solidários". Enfim, a gente vai ser até uma primeira reunião que a gente considere inadiável, no meu caso uma primeira palestra. Mas eu vou dar dois tipos de saídas possíveis, não sei se são incontornáveis, são algumas frestas que a gente pode ir vendo. Eu penso que as pessoas estão aprendendo, cada uma no seu canto, a serem mais solidárias. Quem sabe a gente consiga estender essa solidariedade para os momentos fora da anomalia, fora da crise. Também tem um fenômeno que está começando a parecer muito interessante, que são mulheres no comando dos seus países, seja como presidenta, seja como primeira-ministra, que estão se saindo muito bem. Estou me referindo ao caso da Islândia, da Finlândia, da Noruega, da Dinamarca, Alemanha, Taiwan, Cingapura. Todos eles têm mulheres e talvez estejam aí inventando uma nova forma de fazer política e de falar com a população. Será que existe uma questão de gênero que se intersecciona com o discurso político? Eu penso que sim. A gente vê aí várias saídas vigorosas de algumas dessas mulheres, mas também saídas inovadoras, como ir para a televisão para falar com as crianças. Estou dando um exemplo, mas poderia citar vários. Talvez haja outra forma de fazer política que não seja aquela que nós conhecemos há tantos séculos, uma política sempre dominada por homens da classe média ou mais ricos, dogmáticos. A política sempre foi espaço da virilidade. Quem sabe a gente não tenha aí uma novidade.

OP - O mundo pós-pandemia será mais feminino?

Lilia - Eu diria que estamos caminhando para um mundo mais feminino. Sem tentar estereotipar nada, porque penso que isso também é uma construção cultural, social e política, o mundo feminino é o mundo do cuidado. A nós, nessa divisão de gêneros, foi dado esse lugar. Talvez seja um mundo de mais cuidado até porque nós somos forçados, já que há quem diga que nós entramos nessa era das epidemias. Eu arrisquei a dizer que o século XXI não começou em 1º de janeiro, começou agora, quando um micro-organismo fez o mundo parar. Quem sabe, diante desse mundo que vai ter de enfrentar essas situações, as mulheres não tenham outro lugar, porque têm essa especialização. Essa é uma questão importante pra gente refletir, que um outro modelo esteja aparecendo, sem que eu tenha a veleidade ou a inocência de achar que esses homens viris vão abrir mão tão facilmente dos seus lugares de comando e de hierarquia - como a gente tem visto no Brasil, inclusive.

OP - A senhora cita a pandemia como uma espécie de marco histórico do início de fato do século XXI. Por quê?

Lilia - Eu arrisquei essa hipótese numa outra entrevista. Sou muito leitora de Eric Hobsbawm. E ele, na sua coleção de livros sobre vários momentos da História, fala que o século XIX foi um século longo que termina apenas com o final da I Guerra Mundial, que colocou um final para a Belle Époque, para aquela ideia de mundo de paz e sem limites do começo do século XX. Daí eu arrisquei dizer que o nosso século XX tenha puxado um pouco a régua do calendário e que só tenha terminado de fato agora, quando nós pudermos dizer que estamos livres dessa pandemia. Porque a grande característica do século passado foi uma ode à tecnologia. É possível que eu fale com você agora, com meus amigos na China e no Japão, mas essa ideia da tecnologia redimindo as nossas barreiras talvez caia um pouco por terra diante do nosso fracasso tão grande frente a um micro-organismo que nós não vemos e não tocamos. Por isso o século XXI só estaria começando agora. Não sou bióloga e não sou da área médica, mas eles têm dito que vamos enfrentar não apenas esta pandemia, mas uma série de outras.

OP - Nesse sentido, a sociedade depois da pandemia pode ser mais fechada do ponto de vista das fronteiras e de intercâmbios entre pessoas e países?

Lilia - Sobre isso, com certeza. O século passado criou essa ideia de uma Europa unida, que foi a grande utopia. Além da quebra com a Inglaterra, o que temos visto agora com a pandemia é que cada país voltou aos seus territórios. Quando houve o primeiro isolamento na Itália, isso foi uma questão muito forte. As pessoas se perguntavam: cadê a miríade de uma União Europeia? Caiu por terra.

OP - Isso fortalece os discursos nacionalistas e populistas?

Lilia - Eu penso que sim. É um outro tipo de populismo. Cercar as fronteiras e os territórios, que não eram fechados há muito tempo, pode gerar um sentimento de pátria e de isolamento e acirrar esses governos nacionalistas, que usam o nacionalismo como moeda forte para criar esses populismos. Tenho muito receio que a crise não só gere esses atos de solidariedade, mas gere também atos muito autoritários.

OP - O Brasil tem uma trajetória de negacionismo quando se trata de política de saúde pública?

Lilia - Acho que não só o Brasil, mas os demais países demonstraram não estar preparados para lidar com uma guerra sanitária como essa. No caso brasileiro, depende do contexto. Quando ocorreu, a Revolta da Vacina, em 1904, foi o oposto. O governo tomou medidas radicais, desde caçar os ratos até colocar a vacina contra a varíola. Isso porque o Brasil é descrito no começo do século passado como um "grande hospital". A média de vida era de 33 anos. Mas nem sempre fomos negacionistas, do contrário a gente cria uma estrutura rígida para pensar um pretenso caráter brasileiro que não existia. Naquele momento, por exemplo, nós temos um caso contrário. O erro do governo foi não ter informado a população sobre os riscos que ela corria e sobre a importância da vacinação coletiva. Mas o que aconteceu foi que deu certo, e durante muito tempo ficamos longe da febre amarela, da varíola etc. Agora, estamos vivendo um momento particular em que temos um governo que pratica uma política negacionista, populista, que não preza a ciência. E o que acontece nessas situações? Ele mesmo pretende ter respostas mágicas. Todo mundo gosta de pensamento mágico, não é só o nosso presidente. Mas, como presidente, ele não tem direito de dar respostas tão negacionistas e ambivalentes como ele vai dando. Não acho que há um caráter negacionista do brasileiro, mas que estamos vivendo um momento de muito negacionismo, sobretudo patrocinado pelo chefe do Executivo.

OP - Quais os riscos disso?

Lilia - É termos os números da pandemia semelhantes aos dos Estados Unidos, que têm um presidente que, durante certo tempo, negou o perigo da pandemia. O mesmo aconteceu na Inglaterra, com Boris Johnson, que por muito tempo também negou. Todos eles se abraçam a esse tipo de pensamento mágico, ora a ideia de que, quanto antes nos contaminarmos, melhores ficaremos, ora a ideia de um remédio milagroso, também sem prova alguma. O perigo é adiarmos muito os procedimentos necessários e que estão sendo experimentados em todo o resto do mundo, e termos uma pandemia de fato. Sabemos que temos grande subnotificação porque não está testando. Tenho receio de que os números sejam muito maiores.

OP - A senhora já escreveu uma biografia do Brasil. Numa atualização do livro, como contaria este capítulo que estamos vivendo agora?

Lilia - Nós fizemos uma atualização do livro porque, quando o escrevemos, não tínhamos ainda a história do impeachment da Dilma. Acho que a Heloisa (Heloisa M. Starling) e eu precisamos agora fazer uma outra atualização refletindo um pouco sobre uma questão. Afinal, que outra temporalidade é essa que a pandemia nos trouxe?

FORTALEZA, CE, BRASIL, 14-10-2016: Lilia Moritz Schwarcz, antropologia, fala ao microfone. Lilia Schwarcz, Antropologia, assina sua biografia no Teatro Celina Queiroz, na Universidade de Fortaleza (UNIFOR). (Foto: Aurélio Alves /Especial para O POVO)
FORTALEZA, CE, BRASIL, 14-10-2016: Lilia Moritz Schwarcz, antropologia, fala ao microfone. Lilia Schwarcz, Antropologia, assina sua biografia no Teatro Celina Queiroz, na Universidade de Fortaleza (UNIFOR). (Foto: Aurélio Alves /Especial para O POVO) (Foto: Aurélio Alves)

 

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