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Felipe Ribeiro: "Fazer basquete no Nordeste é difícil"
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Felipe Ribeiro: "Fazer basquete no Nordeste é difícil"

Principal jogador do Carcará, ala-pivô Felipe Ribeiro relembra trajetória de dificuldades e conquistas que o esporte lhe proporcionou
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Felipe Ribeiro, destaque do Carcará, pouco jogou nesta temporada em virtude de  contusões (Foto: Stephan Eilert / Divulgação)
Foto: Stephan Eilert / Divulgação Felipe Ribeiro, destaque do Carcará, pouco jogou nesta temporada em virtude de contusões

Foram muitos "não" na trajetória de Felipe Ribeiro, 40 anos. As negativas não frearam a vontade e a determinação de seguir no esporte, nem o impediram de trilhar uma carreira de sucesso no basquete profissional. Títulos importantes, como o Campeonato Brasileiro e o Campeonato Paulista, serviços à seleção brasileira, participação em todas as edições do Novo Basquete Brasil (NBB) e status de ídolo no Basquete Cearense.

Surgiu no basquete profissional sem passar pelas categorias de base. Precisou compensar com muito treino para aprimorar as falhas. Superou as dificuldades como amador. Desde morar no alojamento debaixo das arquibancadas do ginásio do Olaria-RJ a improvisar um fogão com pedaço de madeira e lata de atum. A família foi contrária ao sonho. Mas Felipe seguiu firme e irredutível. E construiu uma carreira sólida forjada na perseverança com a bola laranja.

Em entrevista ao O POVO, Felipe Ribeiro passeia pela carreira, lembra de momentos marcantes no esporte e fala da relação de amor com o Basquete Cearense e a cidade de Fortaleza.

O POVO - Vamos começar pela infância. Você nasceu em Minas Gerais, mas foi criado em São Paulo?

Felipe Ribeiro - Meus pais moravam em São Paulo, capital, e minha vó morava em Santa Rita-MG (do Sapucaí). Até para ajudar no parto e com a criança recém-nascida, minha mãe foi ter lá em Santa Rita. Só nasci em Santa Rita e, logo cedo, voltamos para São Paulo. Morei em São Paulo até os seis anos e minha família foi para Campinas-SP. Fiquei muito tempo em Campinas. Só saí para jogar.

O POVO - Como era a infância, o que traz na memória dessa época?

Felipe Ribeiro - É um momento muito especial da minha vida. Era um garoto que vivia na rua. Praticava muito esporte, vivia em clubes. Meu sonho era ser jogador de futebol. Com um tempo comecei a andar de skate, era viciado. A gente ia para as quadras de basquete porque o piso era mais liso. No fim da tarde, sempre faltava um ou outro no time e eu entrava para completar. Nem sabia jogar. Todo dia fazia isso e ficava lá para completar. Até que chegou um dia que eu não estava mais indo para andar de skate, mas para jogar basquete. Na época, o Jordan estava no auge. Fiquei vidrado em NBA. Comecei a treinar muito, mas só jogava na rua. Fazia testes em times, mas nunca passei. Minha infância foi mais no futebol e skate.

O POVO - Não tinha ninguém do basquete na família?

Felipe Ribeiro - O basquete veio entrar na minha vida como uma paixão. Não venho de família de esportistas. Meu pai é tecnoeletrônico. Minha mãe faz depilação. Meus tios são engenheiros ou comerciantes em grande parte.

O POVO - É curioso que você tenha uma ligação até forte com o futebol.

Felipe Ribeiro - Eu sempre fui muito viciado em jogar futebol. Teve uma fase que fiquei encantado pelo São Paulo, quando foram campeões mundiais, o Raí, o Zeth. Assistia todos os jogos, mas não ia em estádio. Essa paixão foi acabando, parando de torcer. Hoje eu acabo torcendo pelo time da minha cidade, a Ponte Preta, adoro ver. E vou muito em estádio para ver o Ceará e o Fortaleza.

O POVO - E voltando a basquete. A ida para o esporte acabou sendo algo natural. Mas como foi o início para valer?

Felipe Ribeiro - Foi difícil. Uma coisa é racha de colégio, outra é ter nível para jogar nas categorias de base. Quando cheguei para fazer teste no Tênis Clube de Campinas, não tinha condições nenhuma. Era peladeiro. Fiquei nesse clube um ano e meio. Joguei cinco, seis partidas. Na minha brilhante carreira como amador, só fiz dois pontos. Eu vi que não tinha espaço e procurei um clube menor para não desistir. Fui parar no Olaria-RJ. Morava debaixo da arquibancada. Recebia ajuda de custo. Tive um ano para treinar e melhorar taticamente e tecnicamente. Evoluí bastante. Quando voltei (para Campinas) achei que arrumaria um clube, mas só recebi não. Fui jogar os campeonatos universitários para ganhar bolsa. Fomos jogar em Natal e um pessoal de João Pessoa me viu e chamou. Joguei dois meses e depois fui para Sport. Quando estava com 21 anos, o Sport montou um projeto parecido com o Basquete Cearense, de colocar o clube na elite. Nesse ano veio o Ary Vidal (treinador). No terceiro treino ele me mandou embora. Chorei muito.

 

 

O POVO - E como foi depois disso?

Felipe Ribeiro - Voltei para casa e fui jogar na Unip (Universidade Paulista) para ganhar bolsa. Estava com 22 anos, era caixa de uma papelaria (em Campinas). A Unip treinava no Clube Esperia. Faltou um jogador, uma semana antes de começar o campeonato. Perguntaram se eu queria fazer parte do time, eu disse que queria. E nesse ano fui eleito a revelação do Campeonato Paulista junto com Marcelinho Huertas. O Guerrinha (treinador) me viu. No outro ano eu estava jogando no Bauru. Aí eu pude dizer que jogava basquete de verdade.

O POVO - Voltou a encontrar o Ary Vidal?

Felipe Ribeiro - É até engraçado porque o Ary me mandou embora do Sport. No primeiro All-Star Game do NBB fui convocado. O troféu era com o nome dele. Quando chegamos no hotel, ele estava lá. Fiquei com medo de falar, mas ele me chamou. 'Felipe, queria pedir desculpas. Raramente eu erro com jogador, meu olhar é muito clínico. Sei quando o jogador vai pra frente e quando não vai. Eu errei com você em Recife e estou muito feliz que você deu a volta por cima'. Foi emocionante.

O POVO - Você conseguiu estudar mesmo trilhando a carreira como jogador. Como foi isso?

Felipe Ribeiro - Nunca deixei o estudo. Me formei em Turismo e Hotelaria. Fiz MBA em Gestão Empresarial. Sempre fiz cursos de língua. Eu não sabia se iria ser jogador. Carreira de atleta é difícil, você não consegue apenas estudar. Fui devagar, mas consegui. O basquete me deu muito mais do que esperava.

O POVO - E quando foi o estalo na carreira de jogador?

Felipe Ribeiro - Quando fui para o Bauru. Estava em uma equipe campeã brasileira. Quando terminou a temporada, recebi propostas de vários clubes. Fui para o Corinthians Mogi-Mirim. Na época, montou um timaço. Quando acabou o time do Corinthians, eu percebi que era um jogador de nível. Todas as equipes me procuraram.

O POVO - O que não te fez desistir de ser jogador depois de tantas dificuldades?

Felipe Ribeiro - A maior motivação veio dentro de mim. É uma coisa que queria, acreditava que seria bem-sucedido. Foi muito trabalho, tirava forças não sei nem de onde.

O POVO - Os teus pais te apoiaram no começo?

Felipe Ribeiro - Eles achavam que eu estava perdendo tempo. Não foi fácil, fui contra minha família. Mas hoje são agradecidos. Tive que mudar a cabeça da minha família.

O POVO - Quais momentos de dificuldades que te marcaram?

Felipe Ribeiro - No Olaria-RJ, a gente tinha direito a três refeições. A janta era servida às 17 horas, bem no começo do treino. Tinha que levar para o quarto, guardar e comer às 20 horas, após o treino, mas não tinha fogão para aquecer. Tinha dia que não conseguia comer porque era enjoativo ou estava gelada. Lembro que eu e os meninos do futebol - só morava eu do basquete no alojamento do Olaria - pegamos um pedaço de madeira e pregamos três pregos. No meio, colocamos uma lata de atum. Jogávamos álcool e acendia o fósforo. Colocávamos a panela e fazíamos o miojo toda noite. Tenho essa foto até hoje.

Outra história no Rio. Eles me davam bolsa em colégio particular, mas não tinha dinheiro para pegar ônibus. Lá no Rio, se você usasse camisa de colégio público, não pagava o ônibus. Todo dia usava camisa de colégio público e entrava no ônibus. Quando descia, colocava outra camisa normal para estudar no meu colégio. As meninas tiravam onda comigo. Mas era a necessidade.

Em Recife, morei em um lugar que não tinha janela porque atrás tinha um córrego e o cheiro era forte. Não sabia se era dia ou noite.

O POVO - Como se fortaleceu o laço com o Basquete Cearense?

Felipe Ribeiro - Ele entrou na minha vida como desafio muito grande. Eu estava muito bem em São Paulo, capitão do Paulista, tinha acabado de ficar na seleção paulista. Eu falava que para deixar tinha que ser algo muito bom, não só financeiramente, mas algo que me desafiasse. Não esperava que o desafio seria tão grande. Você fazer basquete no Nordeste, em Fortaleza, é muito difícil. Recebi um feedback maravilhoso do cearense, da cidade, fui gostando de kitesurfe, da comida. Comprei uma casa perto da praia, do shopping, de tudo. Fui me identificando, conhecendo pessoas, fazendo amizades. Criei um elo grande. Conheci o Titanzinho, onde escrevi meu livro. É um amor que não para de crescer.

O POVO - Como define a relação com Fortaleza?

Felipe Ribeiro - De paixão e amor. O amor entre os dois existe e a gente não deixa apagar o fogo da paixão.

O POVO - Já se sente um cearense?

Felipe Ribeiro - (Eu) Me sinto bastante. Pelo cotidiano que peguei, pela paixão que tenho, por tudo que fiz pela cidade, pelo Estado. Penso que sou, sim.

O POVO - Você escreveu o livro Mistério do Titanzinho. Como surgiu a ideia?

Felipe Ribeiro - Na verdade fui fazer um projeto social no Titanzinho. Fui conhecer, tentar pegar onda lá. Vi um lugar muito bonito, mas comecei a ver que não tinha quadra e tinha muita criança. Do lado, tem o bairro das Dunas. Comecei a verdade a diversidade social, o grande abismo. Do nada, um dia, comecei a rabiscar. Nunca tinha escrito uma frase. Saiu um livro maravilhoso que foi muito bem ilustrado e diagramado. Hoje é paradidático em alguns colégios de Fortaleza e tem atestado de qualidade de recomendação do secretário de educação do Ceará.

O POVO - O Basquete Cearense não foi bem nesta temporada. Por que o time deixou a desejar?

Felipe Ribeiro - Foi um somatório de coisa. O orçamento diminuiu. Eu fora de quadra (por lesão no púbis) prejudicou o time porque vinha muito bem. Trouxe jogadores novos. Para se adaptar é difícil. O nível do NBB subiu demais. Perdemos dez jogos nos últimos minutos. É uma série de fatores que fez com que a campanha fosse abaixo. Para o ano que vem temos que estar mais bem preparados e contar com um pouco de sorte também.

O POVO - Você teve uma lesão que lhe atrapalhou na temporada. Já está 100%?

Felipe Ribeiro - Estou. Tive uma má sorte grande. Foi uma lesão no púbis. Qualquer pessoa em qualquer idade pode ter. Mas é uma lesão chata, leva dois meses para tratar. E você perde metade da temporada. Joguei apenas 15 jogos. Foi momento muito ruim, estava com os melhores números na minha carreira. Me preparei muito porque não sabia se seria a última temporada.

O POVO - O Basquete Cearense ainda tem vida longa?

Felipe Ribeiro - Tem sim. Mas ele não anda com as próprias pernas, precisa de apoio do governo, privado. Mesmo com a campanha ruim, eu estava muito otimista com a continuação do time. Falar hoje, fazer uma projeção do coronavírus é difícil. Campeonato parou, o mundo parou. Eu espero que a gente consiga manter o esporte. Viram o quanto é a importante a cultura do esporte na vida das pessoas.

O POVO - Como tem sido a sua vida na quarentena?

Felipe Ribeiro - Em casa tenho um sistema de mini-academia. Consigo me manter saudável. Ando no condomínio, corro sempre que posso de forma isolada. Colocar o atleta em casa em sem fazer nada é complicado. É para endoidar qualquer um. Estou mantendo a rotina de treino.

O POVO - Como está a questão salarial com a equipe?

Felipe Ribeiro - Por conta do coronavírus, o processo de renovação de patrocínio travou. Aconteceu de atrasar salário. Acabou o campeonato, mas o time honra o contrato inteiro. Mas é um momento financeiro complicado que estamos passando.

O POVO - Quais são os momentos mais marcantes da sua carreira?

Felipe Ribeiro - O que mais me marca, tirando as conquistas, são os lugares que conheço. Fui duas vezes a China, achei maravilhosa a Turquia. Me encontrei com grandes atletas, personalidades, artistas, políticos e famosos. Mas valorizo os caras que são minhas referências. Posso dizer que meus amigos são meus ídolos. Já me satisfaz de ter contato com Anderson Varejão, Marcelinho Huertas, Rogério, JP, Tiago Splitter, Leandrinho, Alex.

O POVO - E qual o balanço você faz da sua trajetória?

Felipe Ribeiro - Às vezes, paro para olhar e penso que poderia ter ido mais longe, com carreira mais longa na seleção, poderia ter tentado jogar na Europa se tivesse me dedicado mais, começado mais cedo. Mas sou muito orgulhoso de tudo que conquistei. São 21 anos de profissional, sempre jogando na primeira divisão, joguei todos os NBB. Conquistei títulos, cheguei à seleção. Me tornei referência com quase 41 anos jogando em alto nível.

O POVO - Você diz que poderia ter passado mais tempo na seleção. O que faltou?

Felipe Ribeiro - Acho que tem que ter um sonho muito grande. Meu sonho era virar jogador, participar de campeonatos. Acho que falto eu sonhar maior ainda. Como era um jogador ruim, de rua e descoordenado, ser um belo jogador já estava bom. Quando acordei já era esse jogador consagrado. Poderia ter apertado um pouco mais e treinador mais. Mas não me arrependo. Atleta é muito ambicioso e quero mais.

O POVO - Quais seus planos futuros?

Felipe Ribeiro - Por enquanto, estou me cuidando bastante, aproveitando o momento para cuidar da minha filha, cuidar de casa, da minha vida. Vamos esperar as oportunidades depois do coronavírus. Quando acabar tudo isso, quero brilhar muito na quadra ainda.


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