O mar como elemento central na Odisseia de Homero; as Águas de março de Tom e Elis; o “mar sonoro / mar sem fundo / mar sem fim” de Sophia de Mello Breyner Andresen; as Lágrimas de São Pedro do baiano Vinícius S.A.; o metafórico verso “O mar não se tinge de vermelho / porque o sangue do Ceará / é azul” de Demócrito Rocha. A arte há muito encontra na água inspiração para obras de diferentes linguagens. As possibilidades de leituras e interpretações artísticas do elemento são, assim como ele próprio, múltiplas e incontroláveis. Pensando nisso, o Vida&Arte procurou artistas com distintas bagagens e abordagens para refletir sobre as poéticas possíveis da água enquanto potência artística.
Para o artista visual Léo Silva, o elemento surgiu inicialmente como memória. “A água me acompanha desde meu primeiro trabalho (Banho de Ruínas, 2018), onde comecei a fazer uma cartografia dela onde moro, Maracanaú. Estava interessado em pensar a água em relação a como a cidade foi construída em torno de lagoas - Maracanaú é o nome de uma lagoa”, explica. “Na minha obra, me interessa muito pensar a memória da água, que vem ligada às histórias, a como a lógica de cidade é estruturada por ‘processos de encanação’. Em 2018, na Vila das Artes, comecei a pensar em instalações sonoras. Acabo partindo para outras formas de ver e sentir a água”, define. Entre trabalhos sonoros, estão Drenagem - instalação composta por canos de PVC fixados nas paredes do jardim da Casa do Barão de Camocim que, ao invés de água, escoavam memórias da edificação - e 20 Litros - instalação composta por vários garrafões de água e paisagem sonora formada por discursos de entregadores de água.
“Como capturar a água para uma composição, algo que é tão fluido? No meu trabalho, as próprias questões de mídia, suporte, imagem, técnica, materialidade, são fluidas também. Quando a água não é uma ‘presença-ausência’, eu a convoco nos meus trabalhos a partir de outras formas de ver. Na minha poética, prefiro imaginá-la. Ela é sempre um porvir”, estabelece o artista. No balé Sagrada (2011), da Escola de Dança e Integração Social para Criança e Adolescente (Edisca), a água surge fisicamente para agregar reflexões plásticas, conceituais e ambientais. “O espetáculo não fala sobre água, fala sobre vida”, define Dora Andrade, diretora e coreógrafa da companhia. O balé traça percurso simbólico e histórico do desenvolvimento das formas de vida, começando pelas mais simples células que se desenvolvem até chegar ao ser humano para, “numa licença poética, a sequência da evolução do humano ser a iluminação, um corpo menos denso”. Para tanto, eram trazidos 3 mil litros de água ao palco em determinado momento da apresentação. “Todos os movimentos foram criados de forma que os bailarinos pudessem chutar a água e, com isso, expandi-los”, exemplifica Dora.
Mais importante que a plasticidade, porém, era pensar a sustentabilidade desse uso. “Em todos os locais que apresentamos, a água foi reutilizada”, garante a coreógrafa. Afinal, ao falar “da valorização e a preservação da vida no planeta”, o espetáculo “não falava só sobre a vida humana, mas sobre todas as formas de vida”, ressalta Dora. Também foi pelo viés ambiental que a fotógrafa Bárbara Moira, do O POVO, construiu obras artísticas em paralelo ao trabalho fotojornalístico. O Porto Iracema das Artes realizou em 2019 a Mostra Poéticas da Água, em parceria com a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), para pensar diálogos entre arte e preservação de recursos. Neste contexto, Bárbara - que tem no histórico de formação um período voltado à Biologia -criou a instalação Ouro de Tolo, composta por um garrafão de água pintado de dourado posto em cima de um púlpito de veludo vermelho, para falar “sobre a mercantilização e sobre quem tem acesso a essa água-ouro”, define a artista.
Mais recentemente, ela e a artista Beatriz Almeida se uniram para uma pesquisa artística, ainda em desenvolvimento, inspirada nas obras do novo Aterro da Praia de Iracema. Provisoriamente intitulada Desaterramento, ela reflete sobre a resistência da natureza à ação humana e traça paralelos com a resistência das mulheres. “A pesquisa surge pela necessidade de falar da questão ambiental, mas também da apropriação do homem sobre o corpo feminino e a arquitetura da Cidade, tornando-a fálica, opressora. O corpo feminino, o mar, a praia, não conseguem se adaptar a essa arquitetura e querem encontrar outras maneiras de existir naquele espaço”, interliga. “Não fala sobre se acostumar, mas sobre resistir num contexto de opressão e delimitação de poder”, avança.
A resistência é também norte de uma pesquisa em desenvolvimento de Léo Silva. “Me interessam narrativas de como a água é um processo de cura, ao mesmo tempo que destrói. Como ‘desencaná-la’ para processos de cura, fluidez, resistência?”, indaga. Na fotoperformance, o artista aparece em imagens inalando e banhando-se com chá de eucalipto nos arredores de uma fábrica de agrotóxicos no Parque Industrial de Maracanaú. “Sempre que falo de água, não separo da terra, do território, porque me interessa a política que se faz com ela, como ela é moeda para certo pensamento colonial, neoliberal”, relaciona. O lado simbólico espiritual também encontra vazão em Sagrada. “A água foi usada também por esse sentido ligado à espiritualidade. A maioria dos ritos de iniciação, batismos católico e evangélico, tem a imersão na água e a gente usava a substância para falar de um um corpo mais espiritual”, metaforiza Dora.
HERDEIRAS DO MAR, DE MARY LYNN BRACHT + HAENYEO, MULHERES DO MAR, DE LUCIANO CANDISANI
O livro do clube de assinatura TAG Inéditos de março é Herdeiras do Mar. A obra fala de duas irmãs coreanas no contexto da Segunda Guerra Mundial trazendo a cultura "haenyeo" - mulheres do mar, que numa tradição secular da Ilha de Jeju são responsáveis pelo mergulho marinho. Essas mulheres são também o tema de um ensaio do fotógrafo Luciano Candisani (na foto), que passou mais de um mês envolto na tradição secular acompanhando e registrando as atividades das haenyeo. As imagens já foram expostas no Museu da Imagem e do Som - SP.
BANHO, DE ELZA SOARES
Terceira faixa do disco Deus É Mulher (2018), de Elza Soares, a música Banho é uma composição da cantora paulistana Tulipa Ruiz. A letra se constrói a partir de diversas metáforas que mencionam a água: "Acordo maré / Durmo cachoeira / Embaixo, sou doce / Em cima, salgada", "Enxaguo a nascente / Lavo a porra toda / Pra maresia combinar com o meu rio, viu? / Minha lagoa engolindo a sua boca / Eu vou pingar em quem até já me cuspiu, viu?" são algumas das estrofes.
DISCOS DE MARIA BETHÂNIA
É difícil destacar apenas um trabalho da cantora baiana Maria Bethânia que fale de água. O elemento é uma constante na carreira da intérprete. Em Mar de Sophia (2006), Bethânia se dedica a dialogar com a obra da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, que também tem ampla obra afeita ao elemento - entre as canções, Marinheiro Só/O Marujo Português, Debaixo d'Água/Agora e Memórias do Mar. Já Oásis de Bethânia (2012) conta com canções como Lágrima, O Velho Francisco/Lenda Viva e Fado.
LÁGRIMAS DE SÃO PEDRO, DE VINÍCIUS S.A.
A instalação do artista baiano Vinícius S.A. foi sensação quando ocupou a Caixa Cultural Fortaleza em 2018. A obra é formada por cerca de quatro mil "lágrimas", formadas por bulbos de lâmpadas presos por fios de nylon no teto. A iluminação especial compunha a atmosfera da exposição.
TORÓ E MARÉA, DO CPBT
Espetáculos do Curso Princípios Básicos de Teatro, Toró e Maréa abordam questões políticas a partir da água. O primeiro, com direção de Neidinha Castelo Branco, traz alegorias de ancestralidade, coletividade e relação com a natureza a partir da promessa de água para uma comunidade. Já o segundo, dirigido por Joca Andrade, mostra uma comunidade centenária que se encontra à beira de um rio e passa a receber ameaças de expulsão.
ZONA DE REMANSO: INFILTRAÇÃO ÁGUA E SAL
Exposição coletiva que ocupou parte do Museu de Arte Contemporânea a partir do final do ano passado, traz obras de Cadena, Clébson Oscar, Larissa Vasconcelos, Linga Acácio, Jonas Van, Priscilla Sousa, Karine Araujo (na foto) e Zahra Alencar. Cada artista traz obras que se relacionam com debates inspirados por água.
MOSTRA POÉTICAS DAS ÁGUAS
Parceria da Escola Porto Iracema das Artes com a Cagece, a Mostra Poéticas das Águas foi realizada em setembro de 2019, trazendo trabalhos de jovens de 16 a 19 anos. A ideia era debater questões sociais, políticas e culturais da água a partir de obras de diferentes linguagens. Três foram escolhidos para receber ajudar de custo como premiação: É quando a lama vira sal, videoperformance de Vitória Helen; Sertão não vira mar, instalação de Clébson Oscar; e Conta-gotas, vídeo-instalação de João Paulo Duarte.