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Superfície de afeto, memória e sabor
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Superfície de afeto, memória e sabor

O confinamento permitiu a muitas famílias retomar um hábito que a rotina de antes dificultava: sentar à mesa para refeições.
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Na casa da defensora pública Andréa Coelho, a decoração da mesa a partir de diferentes temas vem alegrando as refeições em família
 (Foto: acervo pessoal)
Foto: acervo pessoal Na casa da defensora pública Andréa Coelho, a decoração da mesa a partir de diferentes temas vem alegrando as refeições em família

"A mesa tem somente o que precisa / para estar, circundada de cadeiras, / fazendo parte da vida familiar / entre alimentos, flores e conversa", versa o poema A Mesa (1950), do maranhense Bandeira Tribuzi. Em abordagem simbólica e terna, o poeta dá conta de uma relevante recomendação relacionada à alimentação: a importância da comunhão nesse processo. Dentre as três orientações básicas relacionadas ao ato de comer, que lista o Guia Alimentar para a População Brasileira - publicação de 2014 do Ministério da Saúde que funciona como norteadora de diretrizes alimentares oficiais - está a de "comer em companhia". Segundo o texto do documento, adotar essa sugestão no dia a dia proporciona maior interação social e prazer com a alimentação. A comensalidade, conceito que se refere ao ato de ter refeições em companhia, é um fator importante da construção sociocultural do mundo e tem no "estar à mesa" um de seus símbolos mais significativos.

A psicóloga Yara Senna foi criada pelos avós, a quem se refere como pai e mãe, e por isso mesmo traz na sua essência a importância da comunhão nas refeições. "Casa de avó é casa cheia. Sempre tinha alguém para almoçar, sempre vinha alguém de fora. O lugar da mesa era sagrado, seja no almoço, jantar ou café da manhã", rememora. "Quando meu pai e minha mãe sentavam à mesa, tínhamos que sentar também e depois tínhamos a refeição completa, todos ali conversando", destaca. Ao sair de casa por conta do casamento, conseguiu manter o ato de comer em família ainda por alguns anos com os filhos, Lucas, 21 anos, e Amanda, 12. "Era o momento onde a gente fazia a revisão do dia, contava alguma novidade. Era o momento de convívio, mesmo, de troca de informações", avança.

A defensora pública Andréa Coelho também traz a comensalidade como herança. "Fui criada numa família que tinha o hábito diário de almoçar ao redor da mesa posta. Mesmo depois dos filhos casados, meus pais recebiam a mim, meus irmãos e à família para o almoço de domingo", lembra. A correria da contemporaneidade, com as demandas das próprias profissões e o crescimento dos filhos, acabou por dificultar a manutenção do hábito para elas. Com o atual contexto que demanda ficar em casa, as famílias de Andréa e Yara, porém, têm tido o privilégio de redescobrir a mesa. "Em tempos, digamos, 'normais', eu, meu marido e os filhos temos horários diversos para realizar as refeições, só conseguimos nos reunir ao redor da mesa, às vezes, nos finais de semana. Com a pandemia, ficou possível ter o prazer de sentarmos juntos à mesa pelo menos no jantar, pois tenho uma filha que é médica e não consegue almoçar em casa todos os dias", afirma Andréa.

"Com meu trabalho, meu filho fazendo faculdade, enfim, de um tempo para cá a possibilidade (de comer juntos) não existia. Nessa nova dinâmica, a gente passou a internalizar novamente os valores da família e a almoçar e jantar juntos, conversar à mesa", conta Yara. Para a psicóloga, o resgate de um hábito antigo tem tido gosto, de fato, da época da casa dos avós. "A gente está se habituando, nesse momento, a se concentrar novamente na família, a ter aquela relação de conversa. Voltei-me realmente para a época que eu ainda morava na casa dos meus avós, em que a gente desligava a televisão e se concentrava na interação com a família", relaciona. "Tanto que se eu pegar no celular por alguma mensagem, já escuto dos filhos um 'ah, mãe, celular na hora do almoço?'", ri-se.

Para Yara, os momentos em família estão ainda mais especiais já que ela própria teve covid-19 e se curou. "Com essa pandemia, você muda seus padrões. Peguei a covid-19 logo de início, em março, numa viagem. Então, você começa a repensar valores e eu tive a oportunidade de perceber como eu poderia ter mudado algumas coisas antes, como a questão da refeição. Tive que parar, recentralizar e redefinir valores. Na volta da rotina, sei que não vou poder almoçar com eles, mas não quero mais perder o jantar", atesta.

O período da quarentena também é especial para Andréa, mas por ser uma forma de apoiar a filha médica, residente de pediatria no hospital Albert Sabin. Desde o início do isolamento, a defensora pública vem promovendo, com o núcleo familiar, uma série de "mesas temáticas". A brincadeira começou, ela explica, porque "queria ocupar minha mente e fazer aquilo que mais gostava, daí passei decorar a mesa todos os dias". "No início eram apenas as peças básicas de louças e jogos americanos, depois comecei a garimpar na casa e jardim tudo o que poderia 'enfeitar' a mesa e com isso surgiu a mesa temática, eu buscava tudo que pudesse combinar com o tema daquele dia", avança.

A estreia foi uma homenagem à Itália, mas depois os temas passaram a ser mais subjetivos e afetivos, como "sou energia", "sou perseverança" e "sou cearense cabra da peste". "Depois da minha filha passar um dia tenso e estressante, adoro quando ela chega do expediente e olha a mesa linda e arrumada para nosso encontro diário no jantar. Essa é uma pequena alegria que estou podendo oferecer. A mesa posta permite uma intimidade com os membros da família que é difícil nos tempos atuais. Penso que, com todo esse drama que enfrentamos, com tantas mortes em nosso País, posso deixar uma memória afetiva para minha família", reconhece. Como o poeta Bandeira Tribuzi define no encerramento de seu poema, a mesa é um "Mistério de madeira rodeado / por cadeiras, lembranças, / utensílios, / e um leve odor de tempo / alimentício".

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