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Tudo outra vez
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Tudo outra vez

Seja no cinema (os streamings todos apostando nos clássicos), na literatura (pessoas relendo livros da infância e adolescência), na dramaturgia, no décor e ou na moda, com artigos originais, o passado volta à tona
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COMEBACK das tendências, de manobras que gerem conforto e estabilidade (Na foto, Levi's® Vintage Clothing celebra o cool californiano dos anos 1960) (Foto: Reprodução/Levi.com)
Foto: Reprodução/Levi.com COMEBACK das tendências, de manobras que gerem conforto e estabilidade (Na foto, Levi's® Vintage Clothing celebra o cool californiano dos anos 1960)

Apesar de um estilo que pode ter vindo antes, misturando novo e antigo, em uma releitura de saudades e afins, por puro propósito, a pandemia e todo o rebuliço que o mundo viveu geraram uma nova onda de busca pelo passado que, de tão presente, nunca ficou para trás. Quem nos ajuda a atualizá-lo, a partir de uma compreensão das massas e o que ocorre agora, é a socióloga Manuela Barros.

Na visão da cientista social, o afastamento do mundo público significou, dentre outras questões, um regresso ao nosso lar, à nossa casa, em outras palavras, às nossas raízes emocionais. "Os tempos sombrios, cheios de incertezas, que estamos vivenciando com a proliferação da covid-19 requerem a necessidade de rearrumação dos nossos sentimentos e emoções", diz.

Essa imersão interior a qual refere-se demanda a companhia da memória, parceira de sempre dos sentimentos intensos, dos eventos significativos, de tudo o que constrói nossa história dando-lhe sentido, direção e contorno. "Não é à toa, pois, que os indivíduos, em períodos de grande instabilidade emocional, sob algum tipo de ameaça significativa à sua própria existência, procurem refúgio em expressões culturais que reorientem seu universo emocional, selecionando preferencialmente bens que acionem de forma intensa esse mundo interior", justifica a professora socióloga.

Como exemplos, os clássicos do cinema mais exitosos, assim como a literatura romântica mais popular ou as telenovelas mais melodramáticas, segundo Manuela, têm algo em comum: "são capazes de despertar essa memória emocional, fornecendo nesta viagem pelo passado o alento para encarar os desafios do presente e a esperança para imaginar um futuro mais pleno e satisfatório", acende à reflexão.

"Durante a II Guerra Mundial, e em especial na década posterior ao seu encerramento, houve o boom de produções cinematográficas de natureza profundamente emocional", ela lembra. "O cinema melodramático brilhou intensamente neste período. Recentemente, durante a pandemia, a venda de romances de amor disparou nas grandes livrarias", destaca. "Em períodos de risco imediato à nossa sobrevivência sempre nos aventuramos em relação ao que é vital para a humanidade: o reordenamento de sentimentos e emoções que são a base imediata das tomadas de decisões que direcionam nossa trajetória pelo mundo", percebe a socióloga.

 

FORTALEZA, CE, 16-09-2020: O Novo Vintage e o vintage em tempos atuais, um retorno ao passado e uma tendencia fortissiima no momento. Perola e a idealizadora da Revival e abriu sua loja para a reportagem. Centro, Fortaleza. (BARBARA MOIRA/ O POVO)
FORTALEZA, CE, 16-09-2020: O Novo Vintage e o vintage em tempos atuais, um retorno ao passado e uma tendencia fortissiima no momento. Perola e a idealizadora da Revival e abriu sua loja para a reportagem. Centro, Fortaleza. (BARBARA MOIRA/ O POVO)

Revival

Pérola Castro, 30, sempre buscou peças como uma caça ao tesouro. Antes mesmo de empreender na área, com artigos de segunda mão, costumava garimpar em brechós, o que acabou lhe motivando, um ano após se formar em moda, a lançar um. "A Revival nasceu em 2018 a partir de várias pesquisas e também pela paixão em procurar e encontrar peças que eu sempre quis ter em qualquer brechó que visse pela frente", conta, indo além do vestível, para ser memória.

"Em viagens para várias cidades, um ponto turístico são também os brechós daquele lugar", o que também a levou, a partir de outras experiências, a criar e a continuar com um espaço físico, adaptando-o, porém, à realidade ainda de pandemia. "Agora somos um brechó on-line que dispõe de um estúdio criativo/showroom no Centro, que é um bairro vivo e cheio de história", anuncia Pérola.

"É muito bom ver o movimento de brechós crescendo nas redes porque isso significa também que as pessoas estão adotando um estilo menos refém do fast-fashion. A melhor coisa de saber garimpar em brechó é poder exercer um estilo que é só seu", destaca.

Nesta fase, ela também é atenta às ressignificações que surgem com o tempo. "Interpreto o 'novo vintage' como o resgate da estética de brechó sendo também adotado pelas grandes empresas da moda. Isso surge para suprir uma demanda de mercado que o garimpo de peças ímpares nem sempre pode dar conta. É aí que mora a diferença entre quem garimpa pelo conjunto do todo; valor, memória e consumo consciente e entre quem o faz para seguir uma tendência", diferencia.

"Quanto mais as pessoas tiverem consciência do que consomem e de onde vêm as coisas, mais independentes elas estarão de um sistema de produção que é o segundo mais poluente do mundo, o fast-fashion", Pérola acrescenta.

Yamor da Ethel
Yamor da Ethel

Bau da Vovó - Espaço Vintage

É o batismo de uma ideia cheia de afeto - o Baú da Vovó - Espaço Vintage -, recém-incluída na Yamor da Ethel, de Ethel Whiterhurst, que, durante a pandemia, se viu mergulhada entre lembranças e propósito. "Ficando em casa comecei a arrumar os meus armários e observei que muitas toalhas de mesa de três metros ou mais eu não usaria mais porque hoje a minha mesa é menor e não pretendo aumentar", foi o início de um insight. "Com a família diminuída (os quatro filhos já constituíram família) eu pensei em vender o que eu tinha guardado. Toalhas de mesa, caminhos de mesa, panos de bandeja, lençóis etc", cita do acervo agora fixo, no interior da loja. "Eu sempre gostei desde muito tempo de peças antigas e obras de arte, chegando a comercializar quadros e peças antigas desde 1980", diz Ethel, de uma paixão, que começou faz tempo, com o artesanato. Em caso de orientação sobre o assunto, o primeiro nome é o dela. Coincidentemente, também foi desta forma que ela deu estalo à criação do Baú. Perguntada por uma amiga onde ela poderia encontrar toalhas bordadas, de crochê, labirinto, rendas de bilro e outras peças também, a artesã foi logo à curadoria, aproximando gente querida. "Conversei com mais três amigas e todas tinham peças antigas e também gostariam de vender", deu assim vida à ideia, acrescentando mais à lista. "Pratinhos, xícaras, tacinhas e outros objetos (tudo antigo)", garante Ethel. "(São) peças que contam histórias", como as que, antes, já faziam parte do cotidiano Yamor. "Os nossos bordados tradicionais, vestidinhos e mandrião de batizado…". "As pessoas passaram a valorizar as peças antigas porque sabem que é de uma outra era... Não teremos mais o feito a mão de verdade. Hoje existem cópias perfeitas mas feitas à máquina. Daqui a algumas gerações essas peças serão de museu, as crianças e jovens só conviverão se seus pais conservarem essa cultura de valorizar a arte", diz observar uma mudança, sendo também essa ponte. "Inovar e dar oportunidade a outras pessoas de se reinventarem", afirma.

Cinéfilo Ailton Monteiro anota os filmes que vê em um caderninho desde 1998
Cinéfilo Ailton Monteiro anota os filmes que vê em um caderninho desde 1998

Fora do circuito

Para Ailton Monteiro, 48, cinéfilo assumido, filiado à Abraccine e à Aceccine, não há prazer maior do que aquele deixado pelo tempo. “Engraçado que, como cinéfilo que tem o hábito de ir muito ao cinema e ver muita coisa do circuito, eu já costumava dizer que o melhor do cinema não estava no cinema”, sim nessa volta aos clássicos, filmes que, segundo ele, ficam fora do circuito por falha das distribuidoras. “Então, durante a pandemia eu procurei, além de ver e rever vários filmes mais antigos, também fazer o que eu chamo de peregrinação pela obra de cineastas. Pude fazer isso com a obra de Abel Ferrara e agora estou fazendo o mesmo com Fritz Lang. Está sendo muito bom”, diz.

A lista é ainda mais longa, para quem tiver fôlego de acompanhá-lo. “Eu anoto os filmes que vejo em um caderninho desde 1998, o que é uma pena, pois meu ano de início da cinefilia é 1989”, lamenta ter deixado de anotar muita coisa legal, em sua opinião. Ailton tem mesmo fome por filmes. Só durante o isolamento, que ele nos listou, de destaques, foram 15, incluindo, aqui, de forma aleatória, como indicação, “A Liberdade É Azul” (1993), de Krzysztof Kieslowski, “Amor Maior Que a Vida” (2000), de Keith Gordon, Espelho de Carne (1984), de Antonio Carlos da Fontoura, e “Tudo sobre Minha Mãe” (1999), de Pedro Almodóvar.

“Alguns filmes revistos crescem com a nossa percepção de hoje. Outros, vistos no início da pandemia, como ‘O Anjo Exterminador’, acabam adquirindo um tom muito próximo ao dessa realidade que se impôs. Outros são exemplares escapistas que fazem com que a gente esqueça de todos os problemas do momento e nos concentremos apenas no filme. Isso é muito bom também. Como também é bom fazer ligações do passado com o presente, como quando revi ‘Faça a Coisa Certa’, por ocasião dos movimentos anti-racistas nos EUA e no mundo”, menciona.

No cinediario.blogspot.com.br, o crítico, que é mestre em literatura, convida a um mergulho muito mais fundo, a muitas outras narrativas. “Quando bate aquela vontade de rever determinado filme visto em algum momento especial da vida, gosto de fazer, e de escrever a respeito em tom memorialista, muitas vezes” - um tanto saudosista.

Socióloga Manuela Barros repercute
Socióloga Manuela Barros repercute "Um século de romances de amor" em novo livro

(Re)viver o passado, de forma presente

Conforme esclarece a socióloga Manuela Barros, a necessidade de estarmos mais em casa significa potencialmente que estamos mais antenados com a vida doméstica. "Este mundo privado carrega necessariamente consigo maiores contatos emocionais com nossos familiares, isto é, com os indivíduos que habitam conosco o espaço simbólico daquilo que denominamos de lar", explica.

Ainda segundo a cientista social, as inúmeras restrições impostas pelas novas condições sanitárias de combate à pandemia incluem, de um lado, a diminuição da frequência aos espaços públicos nos quais se encontram amigos, companheiros de trabalho, colegas de entretenimento etc, do outro, a ampliação do contato físico e emocional com nossos familiares. "O tempo que dispensamos para estar em casa se modifica não só quantitativamente mas também qualitativamente. Neste sentido, as relações familiares começam a ser repensadas, redimensionadas, re-avaliadas. Assim, as telenovelas, que giram fundamentalmente em torno dos problemas, dificuldades e obstáculos encontrados nas relações familiares, passam a ter um lugar mais significativo nos novos tempos que vivenciamos", compara. Para Manuela, elas passam a funcionar simbolicamente como um mapa emocional para nos orientar em nossos próprios desafios familiares.

"Não é à toa que a Rede Globo seleciona 'Laços de Família' como a próxima novela a ser reprisada durante a pandemia. No momento em que os telespectadores estão enfrentando fortemente os impasses domésticos da convivência nossa de cada dia, uma novela que se centra no enfrentamento mas também na resolução de inúmeros percalços que a vida familiar traz consigo é um alento para os indivíduos que se defrontam com a necessidade de co-existir juntos em uma era de tantas incertezas".

A contribuição do cinema

Em tempos de pandemia, continua a socióloga, há, sem dúvida, uma necessidade imperiosa de nos reordenarmos emocionalmente, de encontrarmos a nossa esperança equilibrista em um mundo que exige de nós novas posturas, percepções e atitudes para nos situarmos dentro dele. "Neste universo, retornamos ao passado porque nele os problemas inerentes à vida em sociedade pareciam guardar se não soluções ao menos pontos de reflexões que abriam possibilidades de nos situarmos de forma mais responsável em nossa trajetória pela vida. No momento em que a indústria cultural reativa o que os círculos cultos nomeiam como clássicos do cinema, despontam novas perspectivas para encararmos os impasses que enfrentamos em nossa própria contemporaneidade", repercute.

Para pesquisadora, que atua, principalmente, na área de Sociologia da Cultura, Sociologia da Literatura e Sociologia da Comunicação de Massa, o distanciamento temporal dessas obras é uma ferramenta importante que nos ajuda a sair de nós mesmo, a encararmos velhas formas de ver o mundo com novas roupagens fornecidas pelo olhar das gerações atuais. "Trata-se de um diálogo entre o passado e o presente que nos traz futuros alternativos para os impasses produzidos por uma crise econômica sem precedentes na história da humanidade mas que é, ao mesmo tempo, uma crise social, moral e política. E quem melhor para nos falar disso tudo do que um velho e empoeirado e ao mesmo tempo vivo e dinâmico clássico de todos os tempos?", devolve a pergunta.

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