Há alguns dias, só se fala em coisa: a nova série da Netflix, "O Gambito da Rainha". A direção é de Scott Frank, mas quem rouba, mesmo, a cena, é a personagem Elizabeth Harmon, uma prodígio no xadrez - interpretada por Anya Taylor-Joy -, que "nasce" uma jogadora nata, sem nunca ter tido contato, antes, com o jogo. Apesar de todo o drama, consequente, em partes, pela forma com que o alcoolismo é adicionado à história (tire suas conclusões!), a produção é um retrato da ambientação escolhida - dos anos 1960 -, que mostra - desde à época - o enfrentamento de mulheres nesse tipo de prática esportiva; o que vem repercutindo, após essa 1ª temporada. "Vou até rever!", diz Wellington Albuquerque Jr., que também faz crítica.
Para o diretor técnico da Federação Cearense de Xadrez, que se formou analista de sistemas, mas, hoje, dedica-se totalmente ao xadrez, atuando também como árbitro nacional e professor, existe ainda a falta de representatividade feminina no xadrez, por vários aspectos. "Hoje em dia vemos um aumento, ainda pouco, mas mais mulheres aparecendo. O xadrez já foi considerado um esporte elitista, mas hoje não, ele está próximo de todos, mulheres, crianças e qualquer nível social. Espero que com o sucesso da minissérie mais mulheres participem e embelezem o esporte. Onde elas podem jogar de igual para igual", indicou um desses talentos, @aenxadristanegra Vanessa Ketlyn Sousa Rodrigues.
Aos 22, a estudante universitária do curso de Letras (Português-Inglês), bolsista de incentivo ao desporto da Universidade Federal do Ceará (UFC) já é árbitra - na modalidade universitário feminino absoluto -, e com muito a dizer. "Por muitas vezes ao longo da minha vida fui a única jogadora dos torneios. A única menina — sempre acompanhada de minha mãe —, a única mulher. Consequentemente, sempre tive o hábito de pensar a respeito do porquê disso — afinal, por que eu não via outras meninas jogando também? Por que eu raramente via/vejo outras mulheres jogando os torneios? Por que, nos casos em que havia/há outras, eram/são sempre as mesmas?", reflete, hoje, ciente.
"Hoje percebo que, como um esporte que está dentro de um contexto social e cultural — seja lá qual for —, o xadrez está sujeito a ser mais um espaço no qual se reproduzirão ideias e preconceitos presentes em um espaço e um tempo. Portanto, em uma sociedade como a brasileira, que reproduz valores patriarcais e de constante desvalorização, objetificação, violência, violação e silenciamento das mulheres, o xadrez — esporte estatisticamente composto por mais homens que mulheres — também têm sido e ainda é um espaço no qual nós, mulheres, somos objetificadas, assediadas, desrespeitadas, silenciadas, violadas, desvalorizadas e infelizmente tudo o mais que se pode imaginar", assume essa maturidade na fala.
Vanessa, como Wellington, atualmente do Top 70 Brasil, descobriram o xadrez ainda cedo. "Comecei a jogar xadrez quando tinha entre quatro e cinco anos. Aprendi com meu pai. Ele aprendeu com um amigo e em seguida ensinou para meus irmãos e para mim. Posteriormente mamãe também aprendeu para jogar comigo, já que eu sempre chorava quando perdia minha Dama em uma partida, então ela aprendeu a jogar para me deixar ganhar e eu não chorar. É uma história engraçada", lembra-se. Já a paixão de Wellington, pelo jogo, começou aos 15. "Antes eu sabia apenas mover as peças. Hoje tenho 38 anos", e uma vasta experiência, concentrada, por conta da pandemia, em participações online via Chess.com - maior plataforma de xadrez do mundo - onde é membro da equipe -, e em lives para os seguidores e inscritos no Twitch (twitch.tv/NMFortitudine).
"Xadrez me ensinou a ver praticamente tudo com um olhar mais clínico e observador, também a analisar e realizar problemas com calma e paciência", extrai de aprendizado. Vanessa também vê frutos. "Esse esporte me mostra todos os dias como sou forte, mesmo quando eu mesma não consigo acreditar. Além disso, o xadrez me ajuda a pensar estrategicamente meus passos, escolhas", e a encarar - também - os desafios. "Sou uma mulher negra, pobre, nordestina e que não se encaixa nos padrões de feminilidade e sexualidade que a sociedade impõe e cobra de nós mulheres. O maior desafio que o mundo do xadrez me impõe é continuar jogando e acreditando todos os dias que ali também é o meu lugar", tem certeza que sim.
Companhia de uma vida inteira
Nomeado há pouco mais de um anoMestre Nacional de Xadrez, o jornalista André Capiberibe reconhece: "xadrez é um jogo fascinante que faz parte da minha vida". Atualmente com 43 anos, diz praticar a modalidade desde os nove. "Dentro da modalidade temos alguns títulos, desde mestre nacional, meu caso, a grande mestre internacional. Comecei a jogar muito cedo, mas em certo momento tive que priorizar os estudos, mesmo sem nunca ter abandonado o xadrez", e não abandonou, mesmo. "Para se chegar ao título de grande mestre é necessário muito esforço e estudo do jogo e via de regra ser profissional do jogo, o que no Brasil ainda é muito difícil, dada a remuneração que se consegue com prêmios em torneios e dando aulas. Como jogador amador (já que não sou profissional) estou muito feliz em ter me tornado mestre e jogar e ter bons resultados ocasionais com vários jogadores fortíssimos do Brasil e do exterior". André conta que já teve a oportunidade de jogar pela internet com vários grandes mestres, "dentre eles consegui ganhar do húngaro Gyula Sax e do sueco Ulf Andersson, que já estiveram entre os melhores do mundo", orgulha-se. Além de um praticante, um estudioso do jogo, é ao lado jornalista, que mergulhamos na história. Conforme ele, o xadrez cearense teve seu ápice dos anos 1960 até o início dos anos 1990. "Durante essa época tivemos um jogador que foi duas vezes campeão brasileiro, Ronald Câmara, e outro que foi vice-campeão brasileiro e ex-presidente da Federação Brasileira de Xadrez, Luiz Gentil. Ambos já falecidos". Mal sabia André que, anos mais tarde, faria parte da "nova" memória. "No ano passado, 2019, depois de vários anos sem jogar um torneio mais forte, participei em São Paulo do XIV American Continental Chess Championship 2019, que serviu para classificar quatro enxadristas para a Copa do Mundo da FIDE (Federação Internacional de Xadrez). A competição reuniu 198 enxadristas de 16 países, incluindo 17 Grandes Mestres e 75 Mestres. Fiquei muito feliz com minha atuação, joguei com vários jogadores fortíssimos do Brasil e exterior e ganhei conquistei o título de mestre nacional", detalha como chegou à posição atual. "O jogo de xadrez é uma das grandes paixões da minha vida e me ajuda em vários momentos quando preciso tomar uma decisão estratégica, como me ajuda na previsão de possíveis situações na vida cotidiana", vê de ensinamento.
Mudança de planos
Que o povo cearense gosta - e tem talento - para o xadrez, talvez já não seja novidade. Atualmente, o Ceará ocupa a 10ª posição no Brasil e a 3ª no Nordeste, em relação à quantidade de jogadores federados. São, segundo Ignácio Barreto, presidente da Federação Cearense de Xadrez: 1.028 jogadores, no total, sendo 65 mulheres. Mas, e o movimento todo, com os jogos, em tempos ainda de pandemia? Teve de ser redirecionado. "Nesse exato momento, por conta das restrições oficiais aos torneios presenciais, o xadrez tem se utilizado da internet para seguir com sua atividade. Muitos torneios online tem sido realizado, não apenas no âmbito estadual, mas também no nacional e no mundial", comenta. Especificamente sobre o feminino, coincidindo, por acaso, com a alta da produção da Netflix, "foi realizado na última semana o Circuito Cearense de Xadrez Rápido Feminino, contando com dez competidoras e que terminou com a vitória da Marina Lima Miranda, de 17 anos de idade", dá destaque. Quanto à volta dos torneios presenciais, é - mesmo - aguardar. "Temos programado para Fortaleza um grande festival em abril/2021, incluindo o campeonato Amador Norte-Nordeste e o campeonato Sênior Norte-Nordeste", garante Ignácio, à frente da federação cearense.
"O Gambito da Rainha" ou "O Gambito da Dama"?
A correção é do jornalista cearense André Capiberibe, atualmente Mestre Nacional de Xadrez. "Curiosamente a melhor tradução para a série 'The Queen's Gambit' seria O Gambito da Dama, e não 'O Gambito da Rainha', pois em nossa língua chamamos por convenção essa peça de dama e não rainha", explica. Para André, no mundo do xadrez desde criança, hoje com 43 anos de idade, a série é bem interessante e retrata vários aspectos fidedignos aos jogadores da modalidade a ao jogo em si.
"Importante mencionar que o ex-campeão mundial Gary Kasparov, para muitos o maior jogador da história, hoje aposentado, foi consultor da série", revela outros pontos, indo mais além. "Destaco, contudo, uma certa forçada de barra que não condizem com a realidade ao quererem criar um estereótipo de alcoolismo e excentricidade em muitos dos personagens, em específico na personagem principal", avalia.
"Importante destacar que de forma subliminar a série faz menção ao ex-campeão mundial de xadrez, era norte-americano, Bobby Fischer, que assim como Kasparov é considerado por muitos como o maior jogador da história. Fischer e Kasparov são os maiores. A questão se dá por conta de Fischer ter lutado contra toda 'máquina humana de xadrez soviética' que era considerável imbatível. Os maiores jogadores do mundo eram soviéticos e jogavam unidos, muitas vezes combinando resultados para que um deles fosse o campeão dos torneios e campeão mundial. Fischer quebrou essa tradição e o mesmo aconteceu com a personagem principal na série", contextualiza panorama.
Para entender + curiosidade
Para quem não entende ainda à respeito dessa modalidade e se sentiu instigado a partir da nova produção da Netflix, aqui vai um resumo, para não deixar dúvidas: "o jogo do xadrez se trata de uma grande batalha entre dois exércitos em que um lado tenta vencer o outro, sempre com muita técnica e estratégia", diz simples o mestre nacional de xadrez, André Capiberibe.
"Ganha quem der xeque-mate, ou seja, quem capturar o rei adversário. Às vezes, é necessário ser mais agressivo no desenrolar do jogo fazendo um ataque direto às peças do oponente e em outros casos mais defensivo, realizando uma defesa para não ser capturado", dá a dica.
A respeito de aspectos históricos, André também divide conhecimento. "Existe muita controvérsia sobre a origem do jogo, contudo, a mais provável é que tenha sido criado na Índia no século III a.C.", data.
Curiosidade? Há mais jogadas possíveis de xadrez do que todos os átomos do universo inteiro. "É conhecido como número de Shannon", uma estimativa da complexidade de jogo do xadrez, que tem, como número da "sorte": o 10120. Segundo Capiberibe, foi calculado pela primeira vez por Claude Shannon, considerado o pai da teoria da informação.
É a partir dele, do número - e da descoberta por Shannon -, que podemos calcular que, em média, há disponível, só para se ter uma ideia, 40 movimentos durante o jogo; sendo possível, a cada jogador, escolher dois movimentos entre 30, podendo, ainda, ser menos, ou, nenhum (será xeque-mate ou empate?). Vale expandir sobre a técnica.
Íntegra: visão feminina por "A enxadrista negra"
A seguir uma fala ainda pertinente, no meio enxadrístico, assinada no depoimento de Vanessa Ketlyn Sousa Rodrigues, à frente de uma nova geração de mulheres na modalidade esportiva.
"É um fato que, a presença feminina no meio enxadrístico é muito menor quando comparada com a presença masculina — nos papéis de jogadoras, treinadoras, professoras, árbitras ou mesmo patrocinadoras e apoiadoras. Por muitas vezes ao longo da minha vida fui a única jogadora dos torneios. A única menina — sempre acompanhada de minha mãe —, a única mulher. Consequentemente, sempre tive o hábito de pensar a respeito do porquê disso — afinal, por que eu não via outras meninas jogando também? Por que eu raramente via/vejo outras mulheres jogando os torneios? Por que, nos casos em que havia/há outras, eram/são sempre as mesmas?
Por muito tempo carreguei comigo estes questionamentos, no entanto, à medida em que fui compreendendo uma série de questões relacionadas a alguns aspectos que fazem parte da sociedade como um todo, comecei a entender que não se tratava e não se trata apenas de uma 'ausência de interesse' ou 'falta de capacidade' de mulheres para jogar xadrez, como por vezes muitos homens e até mesmo mulheres argumentaram. Hoje percebo que, como um esporte que está dentro de um contexto social e cultural — seja lá qual for —, o xadrez está sujeito a ser mais um espaço no qual se reproduzirão ideias e preconceitos presentes em um espaço e um tempo.
Portanto, em uma sociedade como a brasileira, que reproduz valores patriarcais e de constante desvalorização, objetificação, violência, violação e silenciamento das mulheres, o xadrez — esporte estatisticamente composto por mais homens que mulheres — também têm sido e ainda é um espaço no qual nós, mulheres, somos objetificadas, assediadas, desrespeitadas, silenciadas, violadas, desvalorizadas e infelizmente tudo o mais que se pode imaginar.
Enxergo a participação de mulheres no xadrez como mais um ato de resistência, mas que nem sempre é consciente. É infeliz esta realidade, mas se eu perguntar a todas e a cada uma das minhas amigas que jogam xadrez — desde as que são crianças até as mais experientes — pelo menos nove em cada dez já sofreram algum tipo de desrespeito, assédio moral ou sexual em competições de xadrez; já foram desacreditadas, já riram de homens que perderam para elas; já deixaram de jogar torneios por medo de ser a única mulher no salão; já dispensaram a hospedagem gratuita em viagens por saber que não teriam outras mulheres no alojamento; já foram proibidas pelos pais de ir jogar por 'ser coisa de homem'.
Todos os fatores mencionados, tornam as competições de xadrez um ambiente não muito confortável para mulheres e meninas enxadristas, por mais talentosas que sejam. Para além disso, o papel social que ainda é imposto às mulheres pela sociedade, o papel de mãe e esposa, por vezes acaba por ser mais um fator de afastamento das mulheres no que se refere à prática do esporte. É muito simples de compreender que o que afasta as mulheres não é simplesmente a maternidade e o casamento — uma vez que muitos dos jogadores homens são também pais e maridos —, mas o que realmente faz diferença é como a mulher é vista nestes papeis e como, uma vez os tendo assumido, a sociedade espera e impõe que doravante elas abram mão de muitas outras partes de sua vida — o que não acontece com os homens.
Para além disso, não restam dúvidas que, uma vez excetuados os fatores anteriormente mencionados, nós mulheres temos toda a capacidade intelectual necessária para o xadrez e por mais de uma vez isso foi demonstrado nos tabuleiros. Algumas das jogadoras em quem busco inspiração são: a Grande Mestre húngara (GM) Judit Polgár; a candidata a Mestre FIDE (WCM) ugandense Phiona Mutesi, sua história é contada no livro 'Rainha de Katwe' (2012) e no filme da Disney de mesmo título, Phiona é uma grande referência de jogadora negra para mim; a Mestre Internacional (WIM) brasileira Regina Ribeiro — que é particularmente uma grande referência para mim enquanto jogadora negra aqui do Brasil; minha colega enxadrista Janete Mateus, também do Ceará em quem me inspiro desde criança; minha amiga Ellen Larissa Bail, uma grande jogadora e uma mulher admirável que está sempre lutando por mais igualdade de gênero e respeito no meio enxadrístico. Além destas, há muitas outras em quem me inspiro, mas a lista é muito grande para citar o nome de todas aqui."
Vanessa também comenta sobre os ensinamentos e os desafios, na fase atual com o xadrez.
"Sempre fui muito tímida, introvertida, e nunca tive muita facilidade de fazer parte de grupos. O xadrez foi o esporte que me recebeu de braços abertos. Eu aprendi a pensar, ponderar alternativas, fazer simulações de cenários resultantes de minhas escolhas. O xadrez me ajuda me concentrar, me manter focada mesmo quando sou surpreendida por algum imprevisto. Esse esporte me mostra todos os dias como sou forte, mesmo quando eu mesma não consigo acreditar. Além disso, o xadrez me ajuda a pensar estrategicamente meus paços, escolhas, me ajuda a pensar rapidamente também, e me ajuda a improvisar, a ser criativa, a correr riscos necessários e evitar os desnecessários.
O xadrez também me proporcionou e proporciona muitas experiências boas — viagens, conhecer novas pessoas, fazer amigas e amigos, conhecer novas culturas, entrar em contato com falantes de outras línguas e expandir meus horizontes em geral.
Os desafios que encontro no xadrez, não são exclusivos do esporte em si, mas da sociedade em que vivo. Sou uma mulher negra, pobre, nordestina e que não se encaixa nos padrões de feminilidade e sexualidade que a sociedade impõe e cobra de nós mulheres. O maior desafio que o mundo do xadrez me impõe é continuar jogando e acreditando todos os dias que ali também é o meu lugar."