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O prazer do texto: escrita como arte, ofício e memória
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O prazer do texto: escrita como arte, ofício e memória

"Confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?", questionou Rainer Maria Rilke. Escritores Vanessa Passos, Antônio Xerxenesky e Tayná Saez abordam os entrelaçamentos de vida e escrita
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FORTALEZA, CE, BRASIL, 11-03-2021: Mãos, canetas  papéis coloridos. Reportagem sobre a arte da escrita para o Vida e Arte.  (Foto:Júlio Caesar / O Povo) (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR FORTALEZA, CE, BRASIL, 11-03-2021: Mãos, canetas papéis coloridos. Reportagem sobre a arte da escrita para o Vida e Arte. (Foto:Júlio Caesar / O Povo)

"A minha vida faz-se ao contá-la e a minha memória fixa-se com a escrita; o que não ponho em palavras no papel, o tempo apaga-o". Em dezembro de 1991, Paula Frías Allende adoeceu gravemente e mergulhou em coma irreversível por complicações oriundas da porfíria. A escritora chilena Isabel Allende, mãe de Paula, uniu-se à filha em horas intermináveis num hospital de Madri. Nos corredores do sexto andar e no leito de Paula, Isabel escreveu. Encheu páginas e páginas de uma resma de papel amarelo com linhas e gerou um livro que carrega o nome da filha, publicado em 1995. Escreveu para não morrer de angústia. "A escrita é uma longa introspecção, é uma viagem até às cavernas mais obscuras da consciência, uma lenta meditação. Escrevo às apalpadelas no silêncio e pelo caminho descubro partículas de verdade, pequenos cristais que cabem na palma da mão e justificam a minha passagem por este mundo".

FORTALEZA, CE, BRASIL, 11-03-2021: Mãos, canetas  papéis coloridos. Reportagem sobre a arte da escrita para o Vida e Arte.  (Foto:Júlio Caesar / O Povo)
FORTALEZA, CE, BRASIL, 11-03-2021: Mãos, canetas papéis coloridos. Reportagem sobre a arte da escrita para o Vida e Arte. (Foto:Júlio Caesar / O Povo) (Foto: JÚLIO CAESAR)

A história da escrita é atravessada por oralidades e símbolos — as pinturas rupestres nas paredes das cavernas foram um dos primeiros registros da vida humana há mais de 40 mil anos. A sistematização iniciou-se por volta de 3.500 a.C., quando os sumérios desenvolveram a escrita cuneiforme na Mesopotâmia; na mesma época, os hieróglifos surgiram no Egito. Tabuletas de argila, óstraco, papiro, pergaminho, máquina de escrever, desktop, notebook, celular: em múltiplos suportes, as marcas do escrever são permanência, pacto selado com o tempo, tatuagem grafada no amanhã.

"Há três momentos distintos no processo de evolução da escrita", explica Antônio Távora, professor do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Ceará. "O primeiro é pictográfico, no qual os ícones representam palavras inteiras — como nos hieróglifos, por exemplo. Num segundo momento, começa-se a perceber que determinados sons têm uma relação muito direta com determinados ícones, numa mescla de imagem e som. Depois, vivemos um processo de evolução para o sonoro". O pesquisador destaca que o debate sobre escrita é amplo: envolve desde a relação entre falar e escrever à estrutura curricular das escolas na alfabetização.

Foi na biblioteca do colégio, ainda durante a infância, que a escritora cearense Vanessa Passos encontrou seu primeiro refúgio na palavra. "A minha relação com a escrita surgiu do meu amor pela leitura. Eu era uma garota muito tímida, me escondia na biblioteca na hora do intervalo. Eu me dei conta de que os livros foram os meus primeiros melhores amigos e que eles me compreendiam mais que qualquer pessoa no mundo. Daí veio o desejo de contar e escrever minhas próprias histórias. Eu sempre andava com um bloquinho de anotações e uma caneta, estava sempre escrevendo ou lendo desde a sétima série", relembra.

Vanessa Passos é escritora, professora de escrita e fundadora do Pintura das Palavras.
Foto: Leandro Pereira
Vanessa Passos é escritora, professora de escrita e fundadora do Pintura das Palavras.

Doutoranda em Literatura e autora da obra “A mulher mais amada do mundo”, Vanessa é fundadora do Pintura das Palavras, um espaço para falar sobre leitura e escrita com o objetivo de formar leitores e novos escritores. "Em 'Cartas a um jovem poeta', Rainer Maria Rilke faz um questionamento para quem quer começar a escrever: 'Você morreria se deixasse de escrever?' E eu gosto de sempre responder que sim, que morreria, porque a escrita para mim é algo vital, é uma necessidade, eu só estou bem se tiver escrevendo. Minha escrita é muito movida por algo que me intriga, por algo que me inquieta", compartilha.

Nos cursos e oficinas de escrita criativa que ministra regularmente, Vanessa aborda da construção de personagens à divulgação das obras. "Eu poderia dar muitas sugestões para quem está começando a escrever, mas a primeira e a mais óbvia é a leitura. Não tem como escrever boas histórias se você não lê e não consome boas histórias", defende. Para o escritor e tradutor gaúcho Antônio Xerxenesky, o acesso à biblioteca diversificada da família desde a infância foi primordial no flerte com a escrita. "No meu caso, eu lia tanto que escrever foi uma forma de extravasar, de tentar me expressar através do meio que mais consumia: a literatura", ressalta o autor.

Antônio Xerxenesky é escritor e tradutor.
Foto: Renato Parada/Divulgação
Antônio Xerxenesky é escritor e tradutor.

"O que me mobiliza (o escrever), imagino, é o que move qualquer escritor — uma série de angústias que não conseguimos resolver nem na melhor terapia, e que nos impele a criar ficções para discutir e verbalizar esses conflitos", acredita Xerxenesky. Autor das obras "As perguntas" e "Areia nos dentes", entre outras, o escritor oferta uma oficina direcionada a pessoas que procuram um curso introdutório para aprender a estruturar e produzir textos ficcionais. "Começo com duas aulas teóricas que servem para colocar todos os alunos no mesmo patamar de conhecimento de termos relativos à escrita — 'conflito', 'nó e desenlace', 'narrador indireto livre', 'registro linguístico', etc. Então, ao longo de um semestre, passo exercícios de escrita que forçam o aluno a experimentar diferentes estilos, até que ele encontre sua própria voz, isto é, uma forma de escrita na qual se sinta à vontade para contar suas histórias. O objetivo, afinal, é despertar uma espécie de autoconhecimento literário", pondera.

Aos novos escritores, Xerxenesky aconselha: "Jamais pensem em prêmios ou em dinheiro. Quase ninguém no Brasil vive de venda de livros. Eu, por exemplo, publico meus romances na mais destacada editora do país e não seria capaz de pagar minha alimentação básica com o que ganho de direitos autorais. Você deve escrever para você, antes de mais nada. Como costumo dizer, quem escreve para os outros é publicitário. E a publicação também não deve ser voltada para atingir um mercado, conquistar um Jabuti, mas para estabelecer uma forma de comunicação artística, mediada pela linguagem literária, com os seus leitores".

Fundadora da página profissional Sutilezas Atômicas, a escritora carioca Tayná Saez oferece aulas de escrita criativa na Oficina Escritas de Mim, que tem duração de 1 mês, e também em aulas avulsas com temas variados — como gatilhos de escrita e microcontos. "O que me guia para construir as aulas é o desejo de fazê-las do jeito mais democrático e prazeroso possível. São aulas para quem já escreve e busca novas inspirações, trocas e ferramentas, aulas para quem está começando escrever e para quem nunca escreveu. Muito além do desenvolvimento da escrita, participar de oficinas nos põe em movimento, provoca e estimula o contato com pessoas que dividem a mesma paixão. Sempre digo que a escrita é um hábito solitário, mas quem escreve não precisa ser".

Tayná Saez, do projeto Sutilezas Atômicas.
Foto: Divulgação
Tayná Saez, do projeto Sutilezas Atômicas.

O encantamento de Tayná pelo exercício da escrita nasceu com as cartas. "Desde que eu era criança minha mãe percebeu que a escrita era a forma com a qual eu me sentia mais à vontade para expressar sentimentos, medos e opiniões. Ainda que morássemos na mesma casa, escrevíamos longas cartas uma para a outra. Aos poucos essa escrita escoou também para os diários e um pouco depois para histórias ficcionais. Não vim de uma família leitora, mas fui filha única por muitos anos e tinha que reinventar minha própria companhia. A imaginação foi mostrando o caminho e leitura chegou para fazer companhia".

São muitos os motivos que deságuam Tayná na escrita. "Sem contar aqueles que não dá para encaixar na razão", pontua. "Ainda escrevo para organizar as ideias, me entender, extravasar. Escrevo por curiosidade a respeito de mim e do outro, escrevo por vingança, pela ilusão de decifrar certos mistérios e a teimosia de fantasiar mesmo vivendo tempos tão duros. A escrita me ajuda a salvar algumas coisas do esquecimento, experimentar o que jamais me aconteceu, transformar a falta — abdicando, ainda que momentaneamente, da escolha de ser quem sou para ser outros. Sinto que essa resposta muda a cada texto", finaliza.

Cursos de escrita

Oficina de escrita literária com Antônio Xerxenesky (@xerxenesky):

lugardeler.com

Oficina Escritas de Mim com Tayná Saez (@sutilezasatomicas)

sutilezasatomicas.com/oficina 

Jornada da Escrita à Publicação com Vanessa Passos (@pinturadaspalavras):

Gratuito. Inscrições: pinturadaspalavras.com.br/inscricaomar21organico

Aula Ato de Escrever com Pedro Bial (@pedrobial):

Gratuito. Inscrições em: curseria.com/captura/bial/ato-de-escrever/

Tayná Saez, do projeto Sutilezas Atômicas.
Tayná Saez, do projeto Sutilezas Atômicas.

Sugestões aos que desejam enveredar pela escrita

"Não compare seu ritmo e seu processo criativo com o de ninguém;

Aceite textos ruins como parte do percurso e guarde-os para aprender com eles;

Exercite com a maior constância e concentração que puder: mais vale escrever uma frase honesta que três páginas vazias.

Por fim, desobedeça todos os conselhos que te deram sempre que for melhor para o seu texto".

Tayná Saez é escritora, professora de escrita criativa e fundadora do Sutilezas Atômicas.  

 

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