"Que faço com a minha cara de índia?/ e meus cabelos/ e minhas rugas/ e minha história/ e meus segredos?". Maria de Lourdes de Souza, filha de Chico Solón, fugiu com a família de terras indígenas paraibanas quando o pai foi brutalmente assassinado por volta de 1920. Migraram para o Rio de Janeiro num navio em condições subumanas e se quedaram num morro carioca. Morto por colonizadores ingleses ao defender territórios originários nordestinos, Chico é bisavô de Eliane Potiguara — autora dos versos que iniciam a reportagem e primeira mulher indígena a publicar um livro no Brasil.
As mais de 270 línguas faladas por cerca de 305 povos indígenas brasileiros ganham corpo nas palavras de Eliane Potiguara, Aline Rochedo Pachamama, Telma Pacheco Tremembé, Márcia Wayna Kambeba, Lia Minapóty, Vãngri Kaingáng, Graça Graúna e tantas outras escritoras. Na língua do povo Puri, Mbaima Metlon significa “mulher forte”, “mulher corajosa” — e são essas mulheres originárias que unem toda a vida dessa terra em narrativas de memórias, ancestralidades, presente e futuro.
"Minha avó chorava muito por toda a família deixada na Paraíba", relembra a escritora, professora, poeta, contadora de histórias e empreendedora carioca Eliane Potiguara. Nascida em 1950, Eliane foi alfabetizada em casa, numa tentativa de bordar saudade em folhas de papel: "Como minha família era toda sem essa instrução do mundo ocidental, eu tive que começar a escrever para minha avó — eu escrevia as cartas dela para a Paraíba e lia as cartas que ela recebia de lá. Meu primeiro ato de escrita foi este, quando eu era uma intermediária entre o sofrimento de uma mulher indígena imigrante e uma comunidade altamente massacrada e oprimida pelo neocolonizador".
Fundadora da primeira organização de mulheres indígenas no Brasil, o Grupo Mulher-Educação Indígena (GRUMIN) em 1988, Eliane foi indicada foi uma das brasileiras indicadas para o projeto internacional Mil Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz e participou por seis anos da elaboração da Declaração Universal dos Povos Indígenas da ONU em Genebra. Autora de obras como "Metade cara, metade máscara" (2004), a carioca foi ameaçada de morte pelo amplo trabalho em defesa de povos e territórios originários. "Foi uma situação muito difícil, eu fiquei doente, mas continuei escrevendo. Escrevi, escrevi muito". Aos 71 anos, Eliane tem dois novos livros prontos e aguarda editoras interessadas para lançá-los.
"Minha avó era vendedora de bananas e foi com esses recursos que eu consegui estudar. Quando eu tinha 10 anos, ela ia para a porta da minha escola também vender banana. As crianças riam, debochavam, todo mundo zombava porque ela era uma indígena, uma mulher barriguda. Eu passei a vida inteira sofrendo bullying por ser indígena. A minha militância indígena, então, sempre foi paralela com a minha literatura, com a minha escrita, com meus poemas — meus poemas são todos revolucionários. Onde eu passei, onde eu vivo, o que eu senti, o que eu previ no futuro, o que aconteceu no passado... A minha poesia é de luta e resistência", compartilha.
Fundamental nas veredas da literatura escrita e publicada por mulheres originárias brasileiras, Eliane Potiguara escreve sobre as muitas vivências femininas indígenas. "A importância da mulher indígena se tornar escritora e ser lida é que é essa mulher a testemunha de suas experiências. A voz da mulher indígena é importante porque esteve invisibilizada, calada e oprimida nesses cinco séculos. Chegou o momento de essa mulher colocar para fora — e eu acredito que tive uma grande participação nisso ao passar por cima da ditadura, da neocolonização e da opressão de gênero e raça e colocar um grande microfone para que a voz da mulher indígena reverbere através da minha literatura. A leitura fala da essência do ser, da transformação, do indivíduo como um observador conservador da natureza e do planeta, do amor, da família, das crianças, dos velhos, da ancestralidade. Quando a mulher indígena resgata a ancestralidade dela, toda uma consciência política se forma", finaliza.
Indígena da etnia Puri, a historiadora, escritora e ilustradora Aline Rochedo Pachamama vive o exercício de escrever como uma necessidade. "É um grito, é o som do rio, é a voz do meu povo. Eu não posso dizer que eu sonhei em ser escritora — isso foi acontecendo durante a minha vida. Eu sempre gostei de desenhar palavras; e desenhar palavras é o que eu chamo de poesia", narra. Doutora em História Cultural pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Aline é autora de obras como "Guerreiras: Mulheres Indígenas na Cidade, Mulheres Indígenas da Aldeia" e do livro infanto-juvenil polilingue "Taynôh".
Aline é idealizadora de uma importante iniciativa literária: a Pachamama Editora, casa editorial formada por mulheres indígenas. "A Pachamama Editora começou comigo e com minha mãe, Jecy, muito pela necessidade de a nossa história ser escrita em primeira pessoa, não manipulada. É uma história que pode salvaguardar o nosso protagonismo. Como editora, eu tomei para mim a tarefa de trazer os parentes, de cuidar desses parentes. É um projeto de reparação linguística, histórica e cultural e a gente vem acolhendo mulheres originárias de vários povos. Voz elas já têm, mas esse espaço é para que elas sejam acolhidas porque essas palavras fazem diferença no nosso tempo. Nós trazemos memórias ancestrais em nosso corpo — e muitas dessas memórias não são fáceis de serem escritas. Trazer essa literatura é muito precioso", continua.
"É uma escrita sentida, uma escrita de realidade, uma escrita de amor pela Mãe Terra — e uma escrita que é também um grito pelo hiato que há na história brasileira em relação aos povos originários. Para mim, palavras escritas são semeaduras, de forma que as pessoas escutem o que eu sonho por meio das minhas palavras e desenhos", acredita a autora.
Entre palavras e imagens, a escritora cartografa culturas indígenas vivas, fortes, presentes. "Eu sou historiadora por formação pela necessidade de trazer as narrativas do meu povo. Como historiadora, eu trabalho com narrativas do tempo presente e memória. As narrativas contadas por mulheres têm uma riqueza de detalhes impressionantes. A questão do parir não é só parir um filho: a mulher originária está parindo muitas outras questões ao longo da história, é parir a terra, parir ideias. A mulher originária está parindo por sua arte, por seu pensamento, por sua experiência. Precisamos de palavras que possam irrigar, curar", deseja Aline Rochedo Pachamama.
Confira galeria de fotos do arte-educador, artista e comunicador comunitário:
Bate-pronto com Aline Rochedo Pachamama:
O POVO: Além da escrita, a oralidade é fundamental para os mais diversos povos originários. Qual a importância da fala e da escuta?
Aline Rochedo Pachamama: Por a colonização não valorizar a oralidade, nós estamos vivendo várias questões. A Mãe Terra é a primeira voz que a gente ignora — essa oralidade desse coletivo tão lindo que são as florestas, as plantas que têm seus ciclos... A primeira não escuta é para esse processo. O ser humano tem desenvolvido uma capacidade de só falar. Por mais que seja importante a fala, eu também chamo atenção pra oralidade na escuta. Esse ser humano que só fala é o colonizador que quer impor uma verdade, que quer impor uma história, que quer impor uma religião, que quer impor um currículo escolar a partir do seu olhar porque falta a ele essa capacidade da escuta. Eu amo muito a minha mãe porque, se não fosse o que ela me passou e do jeito que ela me passou, eu não tinha o envolvimento que eu tenho hoje com o meu povo. Nas minhas caminhadas e semeaduras, eu venho entendendo que no povo Puri as mulheres que repassam esse conhecer. Infelizmente, como acontece de eu honrar essa minha ancestralidade, acontece muito das pessoas ignorarem porque não escutam. Para que exista uma fala, ela precisa estar numa generosa proposta de escuta. As memórias elas se fortalecem quando são compartilhadas.
Metade cara, metade máscara
Metade cara, metade máscara
Eliane Potiguara, 2004
Grumin Edições
Taynôh: o menino que tinha cem anos
Aline Rochedo Pachamama (Churiah Puri), 2019
Editora Pachamama
Saberes da Floresta
Márcia Wayna Kambeba, 2020
Editora Jandaíra
Com a noite veio o sono
Com a noite veio o sono, 2011
Leya
Criaturas de Ñanderu
Graça Graúna, 2010
Amarilys Editora
Taynôh: o menino que tinha cem anos
Aline Rochedo Pachamama (Churiah Puri), 2019
Editora Pachamama
Saberes da Floresta
Márcia Wayna Kambeba, 2020
Editora Jandaíra
Com a noite veio o sono
Com a noite veio o sono, 2011
Leya
Criaturas de Ñanderu
Graça Graúna, 2010
Amarilys Editora
O fotógrafo
A capa deste caderno e galeria de imagens disponível no O POVO Mais são do arte-educador, artista e comunicador comunitário Iago Barreto. Colaborador do Museu Indígena Tremembé desde 2014, foi professor escola de cinema indígena jenipapo-kanindé, curador da exposição "Nas aldeias: o cotidiano sob o olhar da juventude indígena do Ceará", a primeira exposição multiétnica de fotógrafos indígenas do Estado. Desde 2018, trabalha junto aos Anacé da Japuara fotografando o projeto "Memórias da Retomada de São Sebastião" e com o Cine Japuara, cineclube de luta pela terra e emancipação humana.