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"Estruturas de escuta são invenções cotidianas de insubmissão", defende Rômulo Silva
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"Estruturas de escuta são invenções cotidianas de insubmissão", defende Rômulo Silva

Poeta e pesquisador Rômulo Silva reflete sobre invenção de estruturas de escuta na sociedade brasileira, ainda tão marcada pela colonização
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Poeta e pesquisador Rômulo Silva reflete sobre invenção de estruturas de escuta na sociedade brasileira.
Foto: Gabriel Dias/Divulgação
Poeta e pesquisador Rômulo Silva reflete sobre invenção de estruturas de escuta na sociedade brasileira.

"No panorama atual do mundo, a questão capital é saber-se como ser um eu mesmo sem sufocar o outro, e como abrir-se ao outro sem asfixiar o eu mesmo", refletiu o escritor, poeta, romancista, teatrólogo martinicano Édouard Glissant. No dialogar, qual é o lugar da escuta? O Vida&Arte conversou sobre o tema com o poeta e pesquisador Rômulo Silva.

O POVO: O que são estruturas de escuta?

Rômulo Silva: Eu tenho pensado nessa ideia desde 2017, juntamente com várias pensadoras e pensadores, entre eles as e os poetas das periferias de Fortaleza. Estrutura de escuta é uma força que só pode ser coletiva e essa força é a favor do reconhecimento radical. Estruturas de escuta são invenções cotidianas de insubmissão. Elas existem e resistem na sua forma, inclusive perecível. Em outras palavras, não se trata de uma instituição ou de um aparato, refém de determinadas logísticas... Quando eu penso em estrutura de escuta, eu penso na imagem do encontro. A imagem mais próxima, se pudéssemos visualizar, é a do quilombo ou da comunidade. Não no sentido do "uno", da ideia de unidade, mas sobretudo na dimensão da ideia do diverso. Aqui, penso que o diverso não significa o relativo, mas sim esse gesto de nomear sem fixar. É, portanto, esse gesto sempre a favor e a partir das existências das histórias rasuradas, apagadas, despossuídas, silenciadas. Trata-se de um gesto, então, sempre em movimento, que é esse gesto de borrar o que foi borrado — isto é, entender como poder estar a todo momento se metamorfoseando para então inventar uma arma de combate e de defesa também, totalmente provisória e perecível. Outra imagem pode ser a dos saraus de periferias, como eles se organizam com o microfone aberto, o estar em círculo, o encontro, a palavra. Penso também nas manifestações e nos engajamentos sem rosto nas ruas nos últimos anos e, ainda, nas redes sociais contra toda a forma de populismo autoritário que a gente sabe ser, por natureza, racista e misógino. Vivemos nesse estado social de guerra que está ancorado nestas duas ficções coloniais de dominação: a raça e o gênero. Quando a gente pensa nessas violências, é tudo aquilo que as democracias ainda não conseguiram ser, visto que só é possível uma democracia radical se reimaginarmos uma forma de vida. Quando eu me refiro a uma forma de vida, é uma forma de vida anticolonial, contrária a essa lógica. Trata-se, portanto, de uma redistribuição da vida e da morte. Há uma indecisão cortante que range, estala e grita entre a ideia de escuta e de entendimento. Entre essas duas audições, essas duas feições do mesmo, eu penso que entre as palavras não se trata de compreender. Escutar e entender não é sinônimo de compreender, muito menos de assimilar, visto que compreensão e assimilação são forças coloniais de dominação. Estou me referindo a uma força como relação — eu diria efetivamente uma poética da relação. Eu me pergunto: é uma relação da escuta ou por uma relação à escuta? Eu penso esse lugar da escuta como uma força que nos dispõe a, que nos dispõe a alguma coisa ou a alguém; que nos vulnerabiliza, que nos perturba, que nos afeta e nos coloca em crise.

OP: Como criar essas estruturas?

Rômulo: Eu substituiria a palavra "criar" por "inventar", visto que inventar é esse exercício de transgressão daquilo que foi criado. Como inventar estrutura de escuta? Junto-me ao poeta e filósofo martinicano Édouard Glissant, que formulou uma pergunta que eu penso ser a questão capital do nosso tempo: "Como ser um eu mesmo sem sufocar o outro e como abrir-se ao outro sem asfixiar o eu mesmo?". Essa pergunta me chega, ao mesmo tempo, como um convite a sairmos dos confinamentos que nos foram impostos pelo menos nos últimos cinco séculos. Impostos a existências racializadas — seja população negra, população indígena — assim como a formas de mulheridade, a população LGBTQIA+. Vale pontuar que, quando a gente pensa essa ideia de inventar esses lugares de escuta, entender que só existe sujeito no gesto de viver. Logo, falar é existir efetivamente e que para a grande maioria das pessoas, viver é simplesmente não morrer. Se a gente pensar no nosso tempo, para cada vez mais pessoas, viver é simplesmente não morrer. Morte e vida participam da possibilidade de agir no presente e modelar o amanhã — seja por meio da transgressão ou pela demolição de todo e qualquer clausura que nos foi imposta. Estar vivo, nesse sentido, é se ver aberto ao mundo. Essa fenda, essa abertura, anuncia por si só a chance de corrigir as assimetrias da relação. Acredito que inventar estruturas de escuta é abrir fendas que buscam corrigir essas desigualdades, essa distribuição desigual da vida e da morte. Essa correção passa também pela dimensão da reciprocidade, da prestação de cuidado, da mutualidade de tudo que é vivo, as diversas formas de existência humana e não humana. Precisamos pensar que os corpos cristalizados e alvos desse poder colonial, que é um poder que mata não somente corpos humanos, mas a própria natureza, à medida que vão tomando consciência eles passam a ter uma postura de recusa a essas políticas confinamento e de castração. Trata-se da consciente negação de tudo aquilo que nos mantém de cócoras. Aqui, a meta é erguer-se, olhar no olho dessa força colonial e sepultá-la.

Rômulo Silva é integrante do Laboratório de Estudos da Conflitualidade e Violência (COVIO/UECE), onde coordena a linha de pesquisa "Estudos afro-atlânticos" e também pesquisador-colaborador no Laboratório de Arte Contemporânea (LAC/UFC).

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