O poeta e pintor brasileiro Ismael Nery (1900 - 1934) seguia uma corrente ideológica própria que perpassa toda sua obra. O "essencialismo", definido e explicado por pessoas próximas depois de sua morte, defendia a ideia de encontrar a abstração completa para atingir a universalidade da existência. É um conceito que talvez seja difícil de compreender em uma primeira leitura, mas está presente na maioria de suas produções, como no poema "Eu" (1933). Entre os versos, expõe: "Eu sou o que não existe entre o que existe. Eu sou tudo sem ser coisa alguma. Eu sou o amor entre os esposos. Eu sou o marido e a mullher. Eu sou a unidade infinita. Eu sou um deus como princípio. Eu sou poeta". Esse texto, que está na parede do Espaço Cultural Unifor, faz relação com seu autorretrato divulgado na exposição "50 Duetos".
Esta reportagem percorre as salas e os quadros da mostra que celebra os 50 anos da Fundação Edson Queiroz. O ambiente faz conexões entre pintores de diferentes gerações, técnicas e correntes artísticas para promover reflexões nos espectadores. E, assim como Ismael Nery descreveu em seu poema, esta matéria busca se tornar "o profeta, desconhecido, cego, surdo e mudo. Quase como todo mundo". Funde-se em dois, em um diálogo entre o leitor e o papel, para levá-lo a uma exposição que promove, a todo momento, a ligação entre duetos.
O espaço estava previsto para inaugurar em março deste ano, no mês em que o segundo período de isolamento social rígido no Ceará começou. Por isso, houve uma adaptação para o virtual a partir de um vídeo divulgado no canal do Youtube da Universidade de Fortaleza (Unifor). Agora as visitas presenciais retornaram com adequações. Com a obrigatoriedade de máscaras, distanciamento entre pessoas e álcool gel nas portas, os visitantes adentram em um universo diferente daquele didatismo presente em "Da Terra Brasilis à Aldeia Global", que propunha um conhecimento histórico do acervo.
Em "50 Duetos", a ideia é traçar paralelos entre artistas que, em uma exposição com temas mais específicos, talvez nunca seriam encontrados juntos. Essas conexões, sob responsabilidade da curadora Denise Mattar, é o resultado de uma extensa pesquisa acerca das pinturas e das instalações disponíveis no catálogo.
Algumas associações são mais evidentes, apesar das distinções nas técnicas. Na entrada da primeira ala, há a série "Dom Quichotte", do espanhol Salvador Dalí (1904 - 1989). Com seis produções diferentes, ele primeiro atirou tinta para, a partir disso, criar uma pintura. Entre manchas com predominância vermelha e preta, demonstra formas que podem ser identificadas com a narrativa original. Seu duo é "Dom Quixote", do escultor austríaco Francisco Stockinger (1919 - 2009). A obra, feita em ferro soldado e madeira, revela o icônico cavalo da narrativa com o protagonista de Miguel de Cervantes em cima.
A sala seguinte propõe conexões entre as paisagens. "Paisagem Azul", do cearense Antonio Bandeira (1922 - 1967), dialoga diretamente com a escultura "Paineira", do escultor polonês Frans Krajcberg (1921-2017). Os dois se unem por meio do abstracionismo e do jogo de sombras. O mesmo acontece entre "Paisagem, Enseada de Botafogo", de Nicolao Antonio Facchinetti (1824 - 1900), com "Nazaré", de José Albano, e "Paisagem do Novo Mundo com Índios e Holandeses", de Bonaventura Peeters (1614-1652), com "A Fragata La Bele Ancorada na Baía do Rio de Janeiro", de Auguste Mayer (1805-1890).
Talvez um dos maiores destaques seja a interlocução do fotógrafo Christian Cravo com a artista plástica Tomie Ohtake (1913-2015). A primeira é uma fotografia denominada "Namíbia I", da série "Luz e Sombra". A segunda é uma pintura feita em óleo sob tela que não tem título. As cores acinzentadas e as curvas escuras parecem até que foram elaboradas a partir de um mesmo objeto. Caso alguém não conheça o trabalho dos dois, é quase impossível identificar o que foi pintado ou fotografado.
Já no segundo salão, o espectador se depara com um conteúdo que pode suscitar várias memórias nos brasileiros. Ao lado de "Duas Amigas", de Lasar Segall (1889 - 1957), está um rosto familiar, que acompanhou as casas do Brasil por muitos meses entre 2010 e 2011. Era uma imagem exibida diariamente na Rede Globo, na abertura da famosa novela "Passione", dirigida por Denise Saraceni. Com autoria de Vik Muniz, a cópia digital "Melancholy" mostra uma mulher com expressões de melancolia desenhada ao redor de um lixão.
Várias outras temáticas são motivos de ligações diversas. O feminismo, a infância e as festas populares do País são algumas das conexões abordadas até chegar no voyeurismo. Dentro de um pequeno espaço, o visitante se insere em local similar ao que está sendo retratado nas pinturas. Entre quatro paredes rosas, é como se estivesse dentro de um quarto, observando o íntimo dos artistas da mesma forma que um voyeur. Cristiano Mascaro retrata em "Interior com porta e cortina" a visão de alguém acerca de uma sala externa em perfeito estado. Por outro lado, "Interior (Saleta de descanso em Mônaco)", da modernista Anita Malfatti (1889-1964), revela um ambiente desarrumado, com livros no chão, gavetas abertas e panos jogados em uma cadeira.
Ao atravessar o salão e adentrar a segunda ala, as pessoas logo são confrontadas com conteúdos religiosos. A modernista Tarsila do Amaral (1886 - 1973) está ao lado de Francisco de Almeida. Os dois representam a herança do barroco - estética que trabalha com o dualismo entre corpo e espiritualidade, principalmente, na religião católica - com pinturas e colagens de santas.
Na frente deles, o espectador se distancia do catolicismo e conhece duas produções baseadas nas religiões de matrizes afro-brasileiras. Na fotografia de José Bento, um menino negro está sentado nos pés da escultura de um bode. À esquerda do garoto, está a estátua de um homem preto com armas na cintura, posicionado de uma maneira que parece proteger o jovem. A obra intitulada de "Floresta Invisível" faz um dueto com a produção "Onijó Ibirin - A Dançarina", de Mestre Didi (1917 - 2013). Com madeira e tecido, o artista plástico afro-brasileiro expressa a anscestralidade através da estética.
Durante o caminho, aquele que admira a mostra se coloca diante de dezenas de artistas com técnicas abstratas. Entretanto, tudo começa a ficar ainda mais subjetivo ao andar pelas salas desta ala. Há, por exemplo, a pintura "Composição Geométrica", de Samson Flexor (1907-1971) que se assemelha com a instalação "Bicho", de Lygia Clark (1920-1988).
A série "Metaesquema", de Hélio Oiticica (1937-1980), também mantém comunicação direta com "Cubo Movediço", de Luiz Hermano. Ambos os duetos se conectam pela forma e, por vezes, pela cor.
Na última ala, é possível conhecer aspectos da criação de Brasília, que ocorreu no início de 1960. As fotografias de Thomaz Farkas (1924-2011) revelam o então presidente Juscelino Kubitscheck com pessoas que provavelmente pretendiam se mudar para a nova capital brasileira. Estes eram operários, que foram chamados de "candangos" e que estão representados na escultura de bronze de Bruno Giorgi (1905-1993).
A "50 Duetos", entretanto, não realiza apenas um diálogo entre artistas. Proporciona, logo no fim da visita, uma conexão com outra exposição do Espaço Cultural Unifor. O último salão traz uma produção do artista Sérgio Helle, que está com uma mostra individual no mesmo local.
A "Águas de Março" passeia por duas séries do cearense que mescla conhecimentos das ferramentas digitais com as técnicas de desenho e pintura. E, caso o visitante decida conhecer o ambiente autoral do artista, será convidado a imergir nos ciclos da vida durante a pandemia.
Artistas e seus duetos
Djanira da Mota e Silva e Cândido Portinari
Emiliano di Cavalcante e Mariana Palma
Salvador Dali e Xico Stockinger
Vicente Leite e Chico Albuquerque
Antonio Bandeira e Frans Krajcberg
B. Peeters e Auguste Mayer
Facchinetti e José Albano
Parreiras e José Albano
Tomie Ohtake e Christian Cravo
Félix-Émile Taunay e Rodrigo Frota
Pedro Alexandrino e Cláudio Valério
Francisco Oeirense e Simplício de Sá
Belmiro de Almeida e João Câmara
Lasar Segall e Vik Muniz
Timótheo da Costa e Geraldo de Barros
Décio Villares e Rodolfo Amoedo
Di Cavalcanti e Botero
Di Cavalcanti e Sebastião Salgado
Anita Malfatti e Cristiano Mascaro
Portinari e Djanira
Almeida Júnior e Irmãos Campana
Lasar Segall e Ismael Nery
Ismael Nery e Iberê Camargo
Gomide e Brecheret
Tarsila do Amaral e Francisco de Almeida
Meste Didi e José Bento
Rego Monteiro e Raimundo de Oliveira
Rego Monteiro e Cícero Dias
Antônio Poteiro e Nelson Leirner
Rego Monteiro e Volpi
Cícero Dias e Volpi
Raoul Dufy e De Fiori
Rubem Valentim e Mira Schendel
Beatriz Milhazes e Irmãos Campana
Palatnik e Leda Catunda
Visconti e Sacilotto
Flexor e Lygia Clark
Hélio Oiticica e Luiz Hermano
Franz Weissmann e Mira Schendel
Rebolo e Lygia Clark
Sacilotto e León Ferrari
Arden Quin e Sérvulo Esmeraldo
Palatnik e Sérvulo Esmeraldo
Antônio Maluf e Claudio Tozzi
Babinski e Gerchman
Adriana Varejão e Sérgio Helle
Volpi e José Guedes
Sérgio Camargo e Heloysa Juaçaba
Flexor e Bruno Giorgi
Thomaz Farkas e Bruno Giorgi
50 Duetos
Quando: de terça-feira a sexta-feira, das 9h às 18 horas; aos sábados e domingos, das 10h às 18 horas
Onde: no Espaço Cultural da Universidade de Fortaleza (avenida Washington Soares, 1321 - Edson Queiroz)
Mais informações: pelo telefone (85) 3477.3319