Benjamin Lessing é professor-assistente na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, e se debruça, desde 2017, a compreender conflitos armados entre organizações criminosas e o Estado no Brasil, na Colômbia e no México, bem como os movimentos de expansão dessas organizações. Ele veio a Fortaleza a convite do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas na Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Lessing centra esforços em pesquisa que pretende compreender alastramento desses grupos do Sudeste para o resto do território brasileiro. A partir disso, o pesquisador separa a tônica do crime do Rio de Janeiro, comandado por um Comando Vermelho dado aos conflitos, e de São Paulo, preponderantemente sob administração do Primeiro Comando da Capital (PCC), mais afeito aos negócios.
O POVO - O PCC, com suas "sintonias", penetra em vários setores da sociedade. Recentemente, tivemos dois casos desmentidos: um envolvendo "diálogos cabulosos" entre a facção e o Partido dos Trabalhadores; outro, no Ceará, nasceu com o deputado André Fernandes (PSL), que denunciou o colega de Assembleia Legislativa, Nezinho Farias (PDT), de envolvimento com a organização criminosa. Num plano geral, dá pra se pensar num trânsito entre facções criminosas e a política tradicional?
Lessing - Eu diria quase o contrário. Se você olhar o poder das facções, hoje em dia têm uma grau de poder considerável sobre a massa carcerária e sobre a população que vive na informalidade em comunidades. Eles colocam regras, governam bastante. Colocam lei do silêncio, resolvem disputas entre moradores e têm poder sobre uma população significativa. E eu não vejo um envolvimento na política eleitoral muito contundente. Na maioria dos casos, nem têm candidato preferido. Existem casos de acusação, às vezes surgem esses assuntos, mas se fosse uma investida central, vocês teriam muito mais (informação). Corrupção de deputados e senadores deve rolar, mas não parece uma coisa central.
O POVO - E as milícias?
Lessing - Se você comparar, é dia e noite (a atuação). A milícia tem um projeto político aberto. Eles têm candidatos preferidos. Antigamente, antes da CPI das Milícias, eles se candidatavam. Hoje eles não se candidatam eles mesmos, mas colocam candidatos amigos, aliados. É um projeto político. Eu estava falando de uma política em que o Estado poderia colocar condições aos chefes presos. Eles diriam que o "Estado jamais pode negociar com criminoso". Acho que os próprios criminosos (faccionados) têm uma visão parecida sobre os políticos.
O POVO - São fenômenos particulares do Rio de Janeiro?
Lessing - Se diz restrita ao Rio, mas é ameaça que quem quiser olhar, vai descobrir indícios de que tem coisas parecidas com milícia, de que está indo no caminho da milicianização aqui e em todo o Brasil também.
O POVO - "Aqui" é no Ceará?
Lessing - Já ouvi falar de várias coisas que você já vê nesse caminho. A Polícia há muito tempo pega comida de graça. Agora, já estão em alguns lugares com donos de negócios dando pagamentos à Polícia. Esse é um caminho. Acho que é coisa pra se investigar. Porque vou fazer um paralelo. Nos 2000 a 2015, aqui no Ceará, a política oficial era de que "não existe facção aqui". Isso ajudou a vacinar o Estado da chegada das facções? Não. Essa coisa de "isso é coisa do Rio", "é coisa de São Paulo" não ajuda em nada. A mesma coisa está acontecendo com milícias.
O POVO - Como observa as políticas públicas de segurança implementadas no Brasil e no Ceará?
Lessing - Posso dizer que, entre os governos estaduais, é um governo que pensa segurança pública. Mas todo o Brasil enfrenta problemas estruturais. A divisão das polícias entre Civil e Militar é como se fosse uma "descapacidade". Em vez de se ter uma Polícia integrada, todo estado tem essas duas.
O POVO - Desmilitarização seria um caminho eficaz?
Lessing - Uma fusão… é bem complicado. Vários estados têm vários experimentos, de criar duas secretarias, uma secretaria, sabe? Vários jeitos de organizar. Em alguns estados o chefe da Polícia Civil é um secretário, noutros tem secretário acima das duas polícias. Da mesma forma, ter ou não secretário específico para assuntos penitenciários. É legal que tenha uma secretaria própria, porque realmente precisa ter um corpo administrativo. Fato é que segurança pública e assuntos penitenciários são a mesma coisa. Tudo o que é segurança pública do lado de fora é atrelado ao que está acontecendo dentro do sistema penitenciário. É bom que se tenha secretário próprio, mas tem de ter comunicação boa.
O POVO - E nos outros estados, sobretudo no Ceará, como é a dinâmica?
Lessing - No resto do Brasil, é entre uma (realidade) e outra. Aqui, não é que nem São Paulo, mas também não chega a ser como no Rio. Aqui você tem briga entre as facções e houve a onda de ataques neste ano, que realmente pareceu com São Paulo (que foi submetida a ataques em maio de 2006). Pelo que eu entendo, aqui não tem armamento no nível do Rio de Janeiro.
O POVO - Como o senhor acompanhou a sequência de ataques no Ceará no início do ano?
Lessing - Isso é um exemplo muito claro de duas dinâmicas, a primeira foi que as facções se juntaram inesperadamente. Estava rolando uma guerra entre as facções e inesperadamente eles fizeram uma trégua entre eles para enfrentar o Estado. Isso ficou muito claro nas próprias comunicações das facções. Em segundo, o uso de um tipo de violência muito específico, um lobby violento. Uma coisa é a facção usar violência para conquistar o território da outra. Outra tipo é contra a polícia, para fugir ou amedrontar a polícia. Mas tem um terceiro uso da violência, que se usa contra os tomadores de decisão. Você taca fogo nas coisas com o intuito de causar danos políticos aos líderes.
O POVO - O então recém-anunciado secretário Mauro Albuquerque (Administração Penitenciária), motivador dos ataques, se manteve.
Lessing - Mas eu te pergunto: misturou os presos (ignorando facções às quais pertencem), estão misturados? Não sei. O secretário está aí, não saiu. Isso, pra mim, foi erro estratégico das facções. Pedir que as facções se mantenham separadas custa pouco para o governador, ninguém vai apurar. Era uma demanda fácil. Agora, tirar secretário daria manchete, é muito humilhante para o governador. Acabaram não cedendo nesse ponto, mas naquele outro (separar presos por facção), não sei.
O POVO - À época, o secretário André Costa descartou trégua entre facções, sob alegação de que a intensa rivalidade entre grupos impossibilitaria acordos desta natureza.
Lessing - Sendo assim, como você caracterizou, é a fala de alguém que não quer enxergar a realidade. Se é possível ou não, é uma questão empírica, não é o secretário que vai, sentado ali, dizer se é possível ou não. Existem comunicados das facções chamando trégua. Eu falei com moradores de bairros dominados pelas facções e um deles me disse “estamos de trégua” como a coisa mais normal, “antes tinha que mostrar meu celular para o dono, o caro do tráfico”. Essa é uma pessoa, eu, como cientista social, não posso tirar a conclusão de que vale para toda a cidade. Agora o secretário teve o trabalho de pesquisar isso? Só é impensável se você não quer pensar.
O POVO - Os dois ambientes devem estar interligados.
Lessing - Não posso advogar como política formulada, mas uma coisa que vale a pena pensar é… Geralmente, lideranças das facções estão presas. Depois, tem esses problemas na rua. A política que acho interessante investigar, arriscada e, talvez, politicamente difícil, mas vejo que, com os líderes presos, você tem muito poder de barganha com eles. O secretário (Albuquerque) mandou todo mundo para o sistema federal. Quando você perguntar, ele vai falar que “estou mandando para quebrar, enfraquecer as facções”. Talvez vá funcionar. Mas, Comando Vermelho tem 38 chefes do Comando Vermelho estão no sistema federal há muito tempo. Acabou Comando Vermelho? Não acabou. Se você negociar com essa liderança, acalma o que está acontecendo nas favelas. É um tipo de negociação.
O POVO - Governadores fariam isso?
Lessing - Governo vai dizer “ah, jamais vamos negociar com criminosos”. Então não chama de negociação, chama de outra coisa. Mas permite que esse cara voltar ao sistema estadual condicionando a situação daqui. Faz com que os chefes do tráfico tenham incentivos para minimizar a violência na rua. Fato é que hoje em dia a dinâmica entre as facções faz diferença enorme na dinâmica da cidade.
O POVO - Quando os índices de violência caem, facções têm relação?
Lessing - É muito difícil provar isso cientificamente, mas eu acho que sim. Pra mim é muito evidente, olha janeiro, caiu drasticamente os homicídios (no Ceará, em 60%). Ataques a ônibus todo dia, mas não queriam matar ninguém. Vai me dizer que isso não tem a ver com facção?
O POVO - O senhor já disse à Folha de S. Paulo que eliminar facções é impossível. Como conviver com elas, então?
Lessing - Boa pergunta. Não é que eu não ache que um dia poderia enfraquecer, diminuir ou até acabar com as facções. Talvez seja possível, mas seria de muito largo prazo. O que quero dizer é que essa maneira de falar, “não reconheço facções”, “vou acabar com facções”, geralmente é atrelado a política de linha dura, que envolve mais encarceramento, penas mais duras ou policiamento mais letal. Essas políticas não vão acabar com as facções, vão piorar. As facções surgem para proteger o preso do abuso do Estado e do caos dentro do sistema (penitenciário). Se for um rigor dentro da lei, dentro dos direito dos presos, tudo bem. Agora, se o preso está sofrendo abusos, ele vai procurar uma facção para resistir ao estado.
O POVO - Muito do que conversamos tem a ver, direta ou indiretamente, com drogas. O País precisa encarar um debate que aponte, por exemplo, para a legalização das drogas?
Lessing - Eu diria sim, com certeza. Mas quero enfatizar um ponto que, às vezes, se perde. Não é uma opção binária entre legalizar a droga e ter uma guerra militarizada contra facções e não sei o que. Caracterizar dessa forma faz mal, porque nos tira um leque de políticas possíveis situadas entre uma guerra contra as drogas e a legalização. A legalização é politicamente inviável? É. Tem muitas políticas no meio que funcionam como descriminalização parcial. A empresa de cerveja vende droga que se chama cerveja. As empresas de cerveja são violentas? Não. Essas empresas nunca usam violência, porque enfrentariam salto enorme na repressão. O traficante já enfrenta a repressão. Se ele for violento, não vai enfrentar muito mais repressão. Então, ele não tem muito incentivo de não ser muito violento. Você pode aumentar não descriminalizar por completo, mas pode tratar o tráfico de drogas, pacífico, como crime menor. O cara que está vendendo no varejo, sem matar ninguém, passa a ser reprimido de maneira menor. Se eu já sou traficante e mato alguém, quase não muda minha chance de ser preso. Então, não tem porque não matar.
O POVO - Se o estado criasse meios para que esse varejista não fosse violento, não continuaria a existir a disputa por territórios e, consequentemente, a violência?
Lessing - É uma boa questão. Você vendendo no varejo, ali no seu território, teria certo grau de repressão, mas não seria com tanta força. Mas teria que ser muito claro na cabeça daquele dono, daquele chefe do tráfico local, que na hora de ele invadir uma favela, vai atrair muita atenção da polícia, e ele vai se ferrar. “Melhor ficar na minha, aqui está tranquilo.”
O POVO - Mas estes empresários do crime têm pretensões de expansão.
Lessing - O contexto atual, as políticas de repressão a varejo, por anos têm funcionado de uma forma que valorizam certos tipos dentro do crime e desvalorizam outros. Você vê isso claramente com PCC e GDE (Guardiões do Estado). Que eu saiba, são mais ou menos aliados, mas o PCC, num primeiro momento, queria expandir aqui, mas a GDE surgiu, o PCC ficou mais como aliado. E o GDE tem essa fama de ser porra louca, mas funcionou. No crime, sempre tem isso, o que é mais de se impor, de menos negócio e mais guerra. E o que é mais frio, de negócios. Tem contextos em que guerreiro sobe na carreira. Num momento de paz, os guerreiros ficam sem ter o que fazer e o cara do negócio ganha protagonismo. Quando a política do Estado facilita a guerra entre eles, isso têm efeito dentro das facções. Se a política cria uma situação em que a violência traz custos, dentro da organização criminosa os esquemas mais negociadores e não violento vão subindo.
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