A tensão entre o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF) foi ampliada ontem após a Polícia Federal (PF), pela manhã, executar 29 mandados de busca e apreensão autorizados pelo ministro Alexandre de Moraes, no âmbito do inquérito das fake news. A investigação apura esquema de disseminação de ataques virtuais contra membros da Corte. A operação, coordenada em cinco estados e no Distrito Federal, teve como alvo diversos aliados do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que, incomodado, convocou reunião ministerial no fim da tarde para discutir respostas ao STF.
A decisão de Moraes incluiu a apreensão de computadores, celulares e outros dispositivos eletrônicos que possam estar relacionados à disseminação de ataques. O ministro também afirmou que as investigações apontam para a "real possibilidade de existência de uma associação criminosa, denominada em depoimentos de parlamentares como Gabinete do Ódio", como ficou conhecido núcleo de assessores com influência sobre o presidente.
Dentre os alvos de busca estavam o empresário Luciano Hang, dono da rede Havan, o presidente nacional do PTB, Roberto Jefferson, o blogueiro bolsonarista Allan do Santos do site Terça Livre e o deputado estadual Douglas Garcia (PSL-SP). Moraes também determinou que oito paramentares alinhados a Bolsonaro sejam ouvidos no inquérito já nos próximos dias, entre eles as deputadas federais Carla Zambelli (PSL-SP) e Bia Kicis (PSL-DF).
O desconforto do Governo Federal foi debatido em reunião que teve como um dos objetivos discutir eventual reação. Sem citar o STF, Bolsonaro disse a apoiadores que trabalharia até meia-noite junto com o ministro da Justiça, André Mendonça. "Tô trazendo trabalho para casa, tô com o ministro da Justiça para trabalhar até a meia-noite para resolver alguns problemas, tá ok?", afirmou o presidente.
De acordo com auxiliares, dentre as possíveis reações do governo estão sendo cogitadas a divulgação de uma nota conjunta rechaçando a atuação do STF e um habeas corpus preventivo em favor de Abraham Weintraub. O ministro da Educação foi convocado pelo STF a prestar depoimento na PF após críticas e ofensas aos membros da Corte na reunião ministerial de 22/4.
Também não está descartada pelo Planalto uma nova tentativa de nomeação de Alexandre Ramagem, atual chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), para a chefia da PF, barrada pelo STF no último mês. Bolsonaro teria listado decisões do Supremo que considera como excessos, dentre elas a divulgação do vídeo da já citada reunião ministerial.
Bolsonaristas questionam a legalidade e a constitucionalidade do inquérito das fake news, aberto no ano passado pelo presidente do STF, Dias Toffoli, sem provocação de outro órgão. Filho do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro caracterizou o inquérito como "inconstitucional, político e ideológico".
Acesse a cobertura completa do Coronavírus > À tarde, o vice-presidente do STF, Luiz Fux, abriu a sessão de ontem com pronunciamento no qual afirmou que a Corte segue "vigilante contra qualquer forma de agressão à instituição" e que ofender a instituição representa "notório desprezo pela democracia". Ele também fez gesto de apoio ao decano da Corte, Celso de Mello, alvo de ataques de integrantes do governo e de seus apoiadores após determinar divulgação da íntegra do vídeo da reunião ministerial.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao STF a suspensão do inquérito das fake news, pois entende que caberia ao Ministério Público dirigir a investigação e definir quais provas são relevantes. Apesar do questionamento da PGR, o inquérito contou com o aval da Advocacia-Geral da União (AGU) no ano passado. À época, a pasta era comandada pelo atual ministro da Justiça, André Mendonça.
Especialistas vinculados ao Direito comentaram ao O POVO sobre o andamento dos processos que levaram à operação realizada pela Polícia Federal ontem, que mirou pelo menos 29 pessoas com mandados de busca e apreensão. Adriana Spengler, professora da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e mestre em Ciência Jurídica, destaca que um dos maiores questionamentos sobre o inquérito foi a forma como ele foi aberto, pelo próprio STF em março do ano passado.
“O que estranha nesse caso, é que trata-se de um inquérito de ofício, ou seja, os órgãos públicos fiscalizadores não participaram, não provocaram o STF. O poder Judiciário é inerte, normalmente ele é provocado para agir. É legal, mas a forma como foi feita não é habitual. Na época a então procuradora-geral Raquel Dodge disse que era inconstitucional”, destaca.
Sobre a questão de liberdade de expressão, Spengler defende que os direitos do cidadão não são absolutos. O Luciano Hang (dono da rede Havan) está nas redes sociais falando que o que ocorreu é cerceamento da livre expressão, mas não é bem assim. Não é porque sou cidadão que posso falar o que quiser. Há limites”, explica.
Fabiano Oldoni, advogado criminalista e também professor do curso da Univali, endossa o ponto levantado pela colega. “A liberdade de expressão não foi cerceada. Você tem o direito de falar o que quiser, mas terá que arcar com as consequências. Quando são manifestações mentirosas e que influenciam no eleitoral, no jurídico, na questão das instituições e da ordem democrática isso tem um peso. O que pesa mais, a ordem pública ou o direito de falar o que quiser, mesmo que sejam mentiras? Nesse caso a ordem pública pesa muito mais”, defende.
Ele também alerta que há inúmeras possíveis implicações relacionadas ao direito penal. “Pode refletir em crimes contra a honra, crimes que atentam contra questões eleitorais, E aí se tiver uma organização por trás das fake news, nós podemos ter um crime de associação criminosa”, pontua.