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Denúncia revela que 9 laranjas ajudaram a esconder suposta propina de desembargadora
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Denúncia revela que 9 laranjas ajudaram a esconder suposta propina de desembargadora

| EXPRESSO 150 |Ação afirma que magistrada aposentada Sérgia Miranda teria recebido R$ 700 mil após negociar sentença que liberou cheques de R$ 2,7 milhões em ação rescisória
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Expresso 150 - CAPA (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Expresso 150 - CAPA

A operação Expresso 150 completou cinco anos e ainda tem novidades a serem mostradas. Antes, é preciso voltar os ponteiros. Em 15 de junho de 2015, a Polícia Federal (PF) amanheceu entrando em gabinetes do Palácio da Justiça, sede do Judiciário cearense, vasculhou residências e escritórios.

Juntou provas colhidas em celulares, documentos e com a quebra de sigilos bancários e telemáticos. Confirmou como funcionava um balcão para venda de decisões durante os plantões do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE).

O esquema teria sido praticado entre desembargadores e advogados. A clientela das sentenças eram traficantes, homicidas, concursados ou empresários locais. A combinação se dava por aplicativo de mensagens e nas redes sociais, feita diretamente ou por terceiros próximos. O nome fez referência ao valor médio de R$ 150 mil cobrado por decisão negociada.

A "150" se estendeu por cinco fases (até agora) - a mais recente em outubro de 2018. O relógio girou bastante: cinco desembargadores "caíram". Foram punidos com aposentadoria ou pediram o benefício antes do tempo.

Estátua de Themis, a deusa da Justiça, no saguão de entrada do Tribunal de Justiça do Ceará
Foto: FCO FONTENELE
Estátua de Themis, a deusa da Justiça, no saguão de entrada do Tribunal de Justiça do Ceará

Também foram denunciados dois juízes de primeira instância (um faleceu em março de 2018), mais de 20 advogados responderam a processos disciplinares e alguns ainda têm seus nomes atrelados a ações penais e cíveis.

Há também réus fora do meio do jurídico, como “intermediários” ou em planos para lavagem do dinheiro obtido ilegalmente. Como dito, o caso não parou.

Leia mais | Após 4 anos, veja as punições a desembargadores e advogados por vender sentenças

O POVO acompanhou de perto nos últimos cinco anos a Expresso 150 e seus desdobramentos

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Os lances da investigação da PF que passam a ser contados a partir de agora ainda não haviam sido expostos publicamente. Pelo “serviço” de uma única decisão “vendida”, dentro de uma ação rescisória movida pela Caixa Econômica contra a massa falida de uma construtora e imobiliária, em 2013, a desembargadora Sérgia Miranda teria recebido R$ 700 mil. Foi muito mais do que o valor médio da propina no esquema investigado. A recompensa teria chegado até ela “ainda que de forma indireta”.

Conforme o trabalho da Polícia Federal, nove “laranjas” foram recrutados, numa “trama” para que não aparecesse rastro em contas particulares da desembargadora. “Não seria inteligente”, aponta trecho da ação civil pública para apurar atos de improbidade administrativa.

Seriam as vantagens indevidas supostamente obtidas por ela enquanto servidora pública. A denúncia foi apresentada pelo Ministério Público Estadual (MPCE) no dia 6 de fevereiro deste ano. É assinada pelo promotor Kennedy Carvalho Bezerra, da 22ª Promotoria de Justiça de Fortaleza.

“Dá-se à causa o valor de R$ 2.709.232,00”, estabelece a ação, sobre a cifra a ser ressarcida. Mais adiante é possível entender o porquê desse valor. Por conta da pandemia do novo coronavírus, as notificações aos denunciados ainda estariam em andamento.

A magistrada já é ré em ação penal - que tramitou inicialmente no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e “desceu” para a primeira instância - onde sempre negou os crimes imputados.

Está na 15ª Vara Criminal, em Fortaleza. Sérgia foi aposentada compulsoriamente, em abril de 2019, punição disciplinar máxima prevista a quem comete ilícito grave e veste toga. Na Expresso 150, ela foi alvo da 2ª fase, em setembro de 2016.

Dia da primeira fase da Expresso 150, em junho de 2015, quando a Polícia Federal amanheceu na sede do Poder Judiciário atrás de provas de venda de sentença cometida por desembargadores: foram cinco fases realizadas em cinco anos
Foto: FÁBIO LIMA
Dia da primeira fase da Expresso 150, em junho de 2015, quando a Polícia Federal amanheceu na sede do Poder Judiciário atrás de provas de venda de sentença cometida por desembargadores: foram cinco fases realizadas em cinco anos

Como funcionava o esquema dos ‘laranjas’

Quem teria plantado o laranjal no entorno da desembargadora, conforme o enredo da denúncia, foi o então namorado de Sérgia, o empresário Frankraley Oliveira Gomes.

Os nove seriam gente do “círculo de amizade e negócios” dele: um amigo, a esposa desse amigo, um funcionário, um credor, um devedor, a nova namorada, a mulher do devedor, mais duas empresas - uma delas administradas pelo próprio Frank. O rastro bancário aparece em minúcias.

A propina, segue o detalhamento na ação, teria sido repartida em 12 cheques para os ‘laranjas’. Em valores diferentes (veja quadro abaixo). Depois, gerido pelo empresário, o valor passou a cobrir despesas pessoais da magistrada.

“Trocas de emails e intenso fluxo de numerário” teriam evidenciado, por exemplo, o pagamento de taxas condominiais e compras de passagens aéreas.

“A prova coligida revelou, contudo, que tais pessoas, dentre elas duas pessoas jurídicas, não tinham ciência de que estavam, na verdade, lavando dinheiro para Sérgia Miranda e seu namorado Frankraley Gomes”, pontua o MPCE.

“Sérgia Miranda jamais direcionou diretamente qualquer quantia da propina recebida para suas contas pessoais”. Teria se mantido sempre “o mais distante possível”.

A denúncia até reconhece certa surpresa com os ilícitos descobertos contra a desembargadora. “Era tida por todos, à época, como magistrada séria e de conduta ilibada”.

“Trama”, “serviço” e “venda” são termos que O POVO reproduz da denúncia do MPCE. Na ação rescisória (número 0079636-56.2012.8.06.0000), a desembargadora liberou “dois cheques vultosos” em uma decisão do dia 13 de maio de 2013. Um de R$ 1.119.932,00, o outro de R$ 1.589.300,00. Juntos somavam R$ 2.709.232,00. Eis o mesmo valor exigido pela ação de improbidade.

Mais dois nomes são denunciados nesta ação de improbidade e também não são servidores públicos. O advogado Thalys Bitar, descrito como amigo de Frankraley, foi o autor do pedido de liberação dos tais “cheques vultosos”. “Pelo serviço, recebeu, à vista, R$ 133 mil, cuja quantia foi depositada na conta de uma construtora pertencente à família do mesmo”, diz a denúncia.

A outra seria a advogada Cláudia Adrienne Sampaio de Oliveira. O documento do MPCE informa que ela teria cedido seu escritório de advocacia “para simular uma atuação jurídica na ação rescisória”.

A denúncia apontou que, embora tenha havido contrato de prestação de serviços entre o escritório e a massa falida da Simcol, para acompanhar a ação rescisória, “a prova revelou que o escritório jamais realizou qualquer ato no processo que justificasse o recebimento de honorários”. A ela foram pagos R$ 286.932,00.

O pedido para liberar os cheques foi formulado por Thalys, “advogado sem qualquer vínculo com o escritório (de Cláudia)". O promotor considerou que a medida teria sido "para dificultar a descoberta da trama”. Os laranjas que receberam os depósitos também afirmaram, durante o inquérito, não conhecer o escritório nem a proprietária.

Em depoimento ao MPCE, Thalys chegou a contar que recebeu “valores mensais em espécie de R$ 5 mil durante dez meses, o que totalizaria R$ 50 mil. Flagrado pela quebra de sigilo bancário requerida pela PF, Thalys admitiu o valor real recebido”, diz a ação.

Nenhum ‘laranja’ foi denunciado até o momento. Um deles chegou a ser descrito como um "faz tudo" (outro termo da ação) para os pedidos de Frankraley e da desembargadora. Apesar disso, foi poupado. Todos os nove nomes que teriam emprestado suas contas serão notificados para comparecer na fase de depoimentos como testemunhas de acusação.

A cronologia levantada
Foto: luciana pimenta
A cronologia levantada

O que dizem os denunciados

O POVO tentou, ao longo da última semana e até esta segunda-feira, dia 29, contato com os quatro denunciados na ação de improbidade resultante da operação Expresso 150 e com seus advogados de defesa. Três responderam. Apenas a defesa do empresário Frankraley Gomes e ele próprio não foram localizados.

A desembargadora aposentada Sérgia Miranda e o advogado Thalys Bitar retornaram através de nota e em entrevista, respectivamente, afirmando que ainda não haviam sido notificados e que souberam da apresentação da denúncia somente pela ligação do repórter. A defesa da advogada Cláudia Adrienne disse que ela é inocente e que se manifestará nos autos.

"Ainda não fui citada e não posso me manifestar sobre o que não conheço. Vou aguardar a citação para fazer a minha defesa", respondeu Sérgia Miranda, por aplicativo de mensagem. Segundo sua assessoria, que intermediou o contato, ela está passando o período da pandemia fora de Fortaleza e até então não sabia da atualização do caso.

Antes de falar com a desembargadora, O POVO havia contatado com Anamaria Prates, advogada de defesa da magistrada, que confirmou não ter recebido nenhuma notificação a respeito e só ter sido informada pela reportagem. Em entrevistas anteriores, relativas à ação penal do caso, a defesa alegava que não havia nada que provasse o envolvimento da magistrada no suposto esquema.

Em entrevista ao O POVO, em outubro de 2016, Sérgia respondeu que “se receberam um real ou um milhão”, por decisões concedidas por ela, o esquema de corrupção não teria se dado com a “participação, o conhecimento ou a autorização” dela.

O advogado Thalys Bitar, além de informar que não sabia da ação de improbidade, se disse surpreso ao aparecer como denunciado. "Eu fui ouvido pelo Ministério Público como testemunha. Não tô sabendo que sou parte dessa ação". O depoimento ao promotor Kennedy Carvalho Bezerra, segundo ele, teria sido dado em agosto do ano passado.

Alagoano radicado em Fortaleza, ele afirmou que atuou de fato na ação rescisória entre a Caixa Econômica e a massa falida da construtora e imobiliária Simcol - processo onde teria sido descoberta a suposta propina de R$ 700 mil dada à desembargadora.

Mas tudo, segundo Bitar, acertado legalmente em contrato de substabelecimento (transferência provisória dos poderes da procuração do cliente) com a advogada titular.

"Atuei nesse processo, sim. Tinha um contrato com a doutora Cláudia (Adrienne Sampaio de Oliveira). Ela me chamou para fazer uma parceria nesse processo. Ela me deu substabelecimento. Eu nem consto no contrato (com a Simcol, para quem a advogada Cláudia Adrienne atuava). Por isso fui ouvido como testemunha. A denúncia é surpresa pra mim", declarou o advogado.

E reforçou: "Se eu estiver sendo acusado, com certeza é injustamente. Fiz meu trabalho, recebi meus honorários, depositei na minha conta. Quem vai fazer coisa errada deposita dinheiro na conta própria? Sou advogado, tem procuração nos autos, tem petição minha feita".

Sobre a diferença entre o valor pago pelos honorários (R$ 133 mil) e o que chegou a informar inicialmente no depoimento (R$ 50 mil, em dez parcelas), Bitar disse ter se confundido. "Houve uma falha de memória. Assim que tomei conhecimento do que era, olhei nos extratos e retifiquei. Era muito tempo, foi 2013. Negócio veio para 2019, são seis anos".

Alguns minutos depois de finalizada a entrevista, o advogado retornou a ligação e pediu para acrescentar: "Pelo que eu li (na denúncia), a única participação que eu tenho é porque eu recebi meus honorários. Não consta na denúncia qualquer ato ilícito praticado por mim. A questão aí, que entendo, é que fui jogado dentro porque recebi meus honorários. Se isso for crime de improbidade, tá difícil advogado trabalhar. Assim que eu for notificado vou responder à ação lá", concluiu Thalys Bitar.

O advogado Jáder de Figueiredo Correia Júnior representa a advogada Cláudia Adrienne Sampaio e reforçou a inocência da cliente. "Em relação à minha constituinte, ela é absolutamente inocente e a gente prefere se manifestar nos autos. Sobre o que está na denúncia, é um tremendo absurdo. Em relação à doutora Cláudia Adrienne, isso vai ficar provado nos autos e é lá que vamos nos manifestar a esse respeito. É completamente sem cabimento o envolvimento da minha cliente", enfatizou.

O POVO não conseguiu localizar quem está atuando na defesa do empresário Frankraley Gomes. Também não conseguiu completar ligação em números disponíveis que eram dele à época em que foi deflagrada a fase 2 da Expresso 150 (setembro de 2016).


Fachada do Tribunal de Justiça do Ceará
Foto: FCO FONTENELE
Fachada do Tribunal de Justiça do Ceará

30 mil páginas remetidas pelo STJ alimentaram ação

O Ministério Público Estadual se abasteceu de mais de 30 mil páginas com informações da ação penal (APn 885) resultante da Expresso 150, no trâmite anterior do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Foram juntados quase 8 Gb de documentos para guiar a ação de improbidade administrativa apresentada contra a desembargadora e os outros três denunciados.

Em abril de 2019, Sérgia Miranda foi punida com a aposentadoria compulsória em processo administrativo disciplinar conduzido no Tribunal de Justiça do Ceará. A decisão do Pleno foi por unanimidade, por violação da Lei Orgânica e do Código de Ética da Magistratura. No mês seguinte, com a perda do foro privilegiado, o processo penal desceu para a Justiça estadual.

O processo disciplinar considerou que a magistrada violou deveres funcionais: por receber vantagens indevidas na concessão de liminares em habeas corpus durante plantão judiciário (corrupção passiva); atuar como relatora de ação rescisória que liberou recursos em favor de escritório de advocacia; liberar recursos por honorários advocatícios para escritórios específicos; exercício de advocacia administrativa e tráfico de influência; receber vantagens de empresa laranja.

Para magistrados (juízes, desembargadores e ministros), as penas previstas, de acordo com o caso, podem ser: advertência, censura, remoção compulsória, disponibilidade, aposentadoria compulsória e demissão (esta aplicada a juízes substitutos, os que ainda não completaram dois anos na magistratura e não foram incluídos como vitalícios).

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