Dona Lourdes era no mínimo três: mãe de nove filhos, dos quais quatro foram presos e torturados na ditadura. Mas também esposa diligente e mulher cuja imagem era indissociável da luta contra o arbítrio. Para amigos e companheiros, coragem, acolhida e alegria eram traços da mesma Maria de Lourdes Miranda de Albuquerque, que faleceu ontem, aos 98 anos.
"É até difícil falar", diz Rosa da Fonseca, uma das muitas pessoas que partilharam a mesma trincheira contra o regime de exceção ao lado de Lourdes e de seus protegidos. Aos bocados, no entanto, Rosa falou.
"Para nós, que participamos da luta, ela foi e continua sendo uma referência. Teve vários filhos perseguidos, presos, torturados", conta. "A vida toda enfrentou, ou com marido ou com os filhos, essa perseguição. Sempre foi exemplo de resistência, alegria, determinação e carinho."
Nessa segunda, 12, enquanto familiares recordavam dona Lourdes, Rosa se recolheu no sítio onde cultiva um projeto político de emancipação. Lá, reuniu seu grupo e homenageou "a mãe da anistia", como a nonagenária ficou conhecida.
Ex-deputado estadual, Mário Mamede Filho relembra a carga de sofrimento que Lourdes precisou carregar.
Segundo ele, embora o fardo do regime tenha sido pesado porque se abateu diretamente sobre os de casa, impondo à mãe o exercício constante da esperança, Lourdes "lutou com todas as forças, denunciou tudo, mas para defender não apenas seus filhos".
"Mais importante foi que ela teve compreensão de que a luta era muito maior do que a família dela", prossegue. "Nunca desanimou. Foi uma batalhadora. Impossível não lembrar o que ela significou."
Hoje deputado federal, José Guimarães (PT) foi um dos "filhos" políticos de Lourdes. Em conversa com O POVO quando fez 90 anos, em 2012, ela brinca ao lembrar daquele jovem mirrado que chegou a sua casa apenas de chinela vindo do Interior.
Hoje, é o parlamentar que fala sobre a acolhida de Lourdes: "Deixei os sertões do Quixeramobim para estudar na Capital. Jamais esquecerei seu bondoso coração e espírito de justiça. Sua luta pelos perseguidos permanecerá viva na história do Ceará e do Brasil".
Era 1977 quando um recém-ingresso no curso de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) ouvia falar de Lourdes pela primeira vez. O tom era de reverência, revela João Alfredo (Psol), ex-deputado estadual e ex-vereador.
"Com as conversas com o Mário Albuquerque (filho de Lourdes), a gente passa a conhecer essa mulher, que é um exemplo de coragem, determinação, é um símbolo muito forte", continua. "Não dá para pensar a luta pela anistia sem pensar em dona Lourdes, sem pensar em Maria Luíza, em Rosa da Fonseca."
Nessa mesma entrevista ao O POVO oito anos atrás, Lourdes é questionada sobre sua maior felicidade na política. Não titubeia: "A volta dos filhos (da prisão) foi uma glória para mim. Mas continuo na mesma luta. O que eles fizeram, tinha que ser feito".
Em seguida, pergunta-se: "Se eles não tivessem feito isso, o que seria do Brasil? Continuar do mesmo jeito? Apesar de hoje não estar bom, foi um alicerce. É daqui pra frente. Não pode voltar de maneira alguma".
Para os tantos filhos de carne ou adoção, é exatamente para evitar retrocessos históricos que o exemplo de Lourdes será sempre um testemunho valioso contra todas as tiranias, em qualquer tempo.